O trabalho e seus desafios
- Opinión
A crise de dimensão global instalada na primeira década do século 21 poderá ser ressaltada no futuro próximo por ter promovido as bases de uma nova fase de desenvolvimento capitalista. Isso porque a crise atual se apresenta como a primeira a se manifestar no contexto do capital globalizado, uma vez que as depressões anteriores (1873 e 1929) ocorreram num mundo ainda constituído por colônias (pré-capitalista) e a presença de experiências nacionais de economias centralmente planejadas.
Neste sentido, cabe a conformação de uma nova maioria política que responda com protagonismo da mudança social e econômica contemporânea os avanços técnico-científicos que permitem condições superiores para a reorganização produtiva e trabalhista.
De um lado, o aparecimento de novas fontes de geração de riqueza, cada vez mais deslocadas do trabalho material, impõe saltos significativos de produtividade. Isso porque o trabalho imaterial liberta-se da existência prévia de um local apropriado para o seu desenvolvimento, conforme tradicionalmente ocorrem nas fazendas, indústrias, canteiros de obras, escritórios, supermercados, entre tantas outras formas de organização econômica assentadas no trabalho material.
Com a possibilidade de realização do trabalho imaterial em praticamente qualquer local ou a qualquer horário, as jornadas laborais aumentam rapidamente, pois não há, ainda, controles para além do próprio local de trabalho.
Quanto mais se transita para o trabalho imaterial sem regulação (legal ou negociada), maior tende a ser o curso das novas formas de riqueza que permanecem – até agora – praticamente pouco contabilizadas e quase nada repartidas entre trabalhadores, consumidores e contribuintes tributários.
Juntas, as jornadas do trabalho material e imaterial resultam em carga horária anual próxima daquelas exercidas no século 19 (quatro mil horas).
Em muitos casos, começa a haver quase equivalência entre o tempo de trabalho desenvolvido no local e o realizado fora dele. Com o computador, a internet, o celular, entre outros instrumentos que derivam dos avanços técnico-científicos, o trabalho volta a assumir maior parcela do tempo de vida do ser humano.
De outro lado, há a concentração das ocupações no setor terciário das economias. Somente nos países da região, a maior parte das novas ocupações abertas é nesse setor. Para este tipo de trabalho, o ingresso deveria ser cada vez mais acima dos 24 anos de idade, após a conclusão do ensino superior, bem como acompanhado simultaneamente pela educação para toda vida.
Com isso, distancia-se da educação tradicional voltada para o trabalho material, cujo estudo atendia fundamentalmente crianças, adolescentes e alguns jovens. Tão logo se concluía o sistema escolar básico ou médio, iniciava-se imediatamente a vida laboral sem mais precisar abrir um livro ou voltar a frequentar a escola novamente.
Na transição atual da sociedade urbano-industrial para a de serviços, percebe-se o acúmulo de novas e importantes perspectivas para as classes trabalhadoras. Inicialmente, a ampliação da expectativa média de vida, cada vez mais próxima dos 100 anos de idade. Simultaneamente, observa-se a forte concentração do trabalho no setor terciário das economias (serviços em geral), podendo representar cerca de 90% do total das ocupações.
Assim, o terciário tenderia não apenas a assumir uma posição predominante, tal como representou a alocação do trabalho no setor agropecuário até o século 19 e na indústria no século 20, como passar a exigir, por consequência, novas formas de organização e de representação dos interesses deste mundo do trabalho em transformação. Nos países desenvolvidos, por exemplo, os setores industriais e agropecuários absorvem atualmente não mais do que 10% do total dos ocupados.
Embora heterogêneo, o setor de serviços responde fundamentalmente pela dinâmica do trabalho imaterial, não mais vinculado à produção de bens tangíveis. Associa-se à produtividade imaterial e passa a ser exercido em qualquer local e horário, não mais em um espaço específico como era o mundo do trabalho na indústria, na agropecuária ou no extrativismo mineral e vegetal.
As novas tecnologias (internet e telefonia celular), em contato com as inovações na gestão da mão de obra, intensificam profundamente o exercício da atividade laboral no próprio local de trabalho.
Ademais, constata-se também a extensão do trabalho exercido cada vez mais para além do espaço de trabalho, sem contrapartida remuneratória e protetiva, posto que o sistema de regulação pública do trabalho encontra-se fundamentalmente focado na empresa, como bem define o código regulatório do emprego assalariado do Brasil.
Em virtude disto, a lógica de funcionamento da economia capitalista impõe a geração de maior excedente de mão de obra, a partir de ganhos altíssimos da produtividade imaterial. Para isso, o conhecimento, e não mais a força física, torna-se importantíssimo na ampliação das novas fontes de geração de riqueza com o uso disseminado do trabalho imaterial.
Nesses termos que a estratégia de atuação do Estado precisa ser revista, não apenas em defesa da realidade passada, alcançada por segmentos bem posicionados dos trabalhadores, mas cada vez mais no protagonismo de um novo padrão civilizatório. Para isso, a conformação plural, transparente e participativa de novo padrão regulatório do trabalho no Brasil.
De certa forma, a transição entre as sociedades urbano-industrial e de serviços tende a não mais separar nítida e rigidamente o tempo do trabalho do não trabalho, podendo gerar maior mescla entre os dois, com maior intensidade e o risco da longevidade ampliada da jornada laboral para além do tradicional local de exercício efetivo do trabalho.
Ao mesmo tempo, os elevados e constantes ganhos de produtividade tornam cada vez mais possível a construção de nova modulação no tempo de trabalho.
Em síntese, o melhor entendimento acerca do novo mundo do trabalho possibilita a reinvenção da pauta laboral comprometida com a construção de uma sociedade superior. A liberação do tempo de trabalho e avanço educacional são partes constitutivas disso.
- Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas
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