Ensaio sobre a corrupção e outros crimes
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As complicadas relações entre ética e moral e entre moral e política, estão em voga hoje no país, em face das denúncias de corrupção que, embora comuns em todas as épocas e em todos os regimes, adquiriram um relevo extraordinário durante os Governos Lula e Dilma. O debate é saudável, não só porque a luta contra a corrupção deve adquirir cada vez maior importância para a qualidade da democracia, mas também porque a forte dominação que o capital financeiro vem exercendo sobre todos os Estados endividados, vem agravando as condições negativas para o bom exercício da política e decompondo de forma inédita, também pela corrupção, as funções públicas do Estado.
Até hoje não encontrei um empresário, um trabalhador, uma pessoa da classe média, banqueiro, agricultor, intelectual, que defendesse a violência, o assassinato individual ou coletivo, para resolver pendências sociais ou familiares. Ou que defendesse a corrupção, a não ser que o interlocutor vivesse algum problema pessoal grave, que lhe retirasse da sensatez, que nos orienta no cotidiano. Sobre estes temas, com raras exceções, as pessoas se expressam pautadas pela sua história familiar e a herança cultural que assimilaram nas suas vivências.
A vida mostra, todavia, que muitos indivíduos, em determinados momentos da história, pressionados por acontecimentos inesperados, contrariam as suas convicções políticas ou ético-morais, adquiridas na vida comum. Às vezes fazem-no com grandeza e solidariedade e outras vezes o fazem demonstrando brutais fragilidades morais: simples camponeses alemães servindo de guardas nos campos de extermínio, pacíficos policiais que veem televisão com os filhos após torturarem nos porões das ditaduras, médicos dando assistência a carrascos para que o torturado fale, antes de morrer.
Ao contrário do que defendem alguns pensadores, que localizam no ser humano uma tendência irrefreável para o “mal”, ou de outros que defendem que o ser humano é, na sua essência, “bom” –mas deformado por relações sociais que não escolheu- penso que ele não é “bom” nem “mau”. É um ser que “se defende”. Age no imediato, em regra, em defesa da sua vida, do seu futuro ou da sua família, imprimindo na sua perspectiva decisões, mais, ou menos solidárias, mais, ou menos humanizadas, às vezes com grandeza, às vezes com egoísmo, vileza e medo. São os momentos em que os valores, que são, ao mesmo tempo, dominantes e conflitantes na sociedade, entram em ação para moldar o comportamento dos indivíduos.
Os valores “dominantes”, porém, não são tão claros nem lineares. Não raro são conflitivos entre si e, por vezes, radicalmente antagônicos. Perdoem-me os meus amigos filósofos pela irresponsabilidade, mas acho que o ser humano é uma “cruza” daquilo que dele pensava Hobbes (“o homem é lobo do homem”), com aquilo que Kant gostaria que ele fosse: um ser capaz de (a partir da opção por “valores”) “negar-se a usar o outro como instrumento”. Lutar pela vida, eliminando o outro, é uma possibilidade permanente na vida de todos. Mas combinar a sua luta pela melhor vida, sem suprimir a dignidade e a possibilidade do outro, é uma escolha ético-moral, que qualquer ser humano também pode fazer em qualquer circunstância. É o momento em que entram em cena para influir na decisão, por um ou outro caminho, múltiplos fatores que se complementam ou se anulam, promovendo um juízo moral sobre o assunto defrontado.
Pensemos, por exemplo, no sentido que é dado à “honra”, em tempos e situações existenciais diferentes: o peão do conto de Simões Lopes Neto, que pensa em suicídio, porque teria perdido “Trezentas Onças” de ouro do latifundiário a que serve, caninamente, angustiado pelo fato de que o seu “patrão” concluiria que teria sido “roubado” por ele; a “dívida de sangue” –irracionalidade que pode atravessar gerações- pagas com as mortes em sequência, famílias contra famílias, retratada no romance “Abril Despedaçado”, de Ismail Kadaré (aqui filmado por Walter Salles, como “Dívida de Sangue”); a “honra” que deve ser lavada pelo “Tuareg” Gaciel Sayad (no romance do mesmo nome de Alberto Vazquez-Figueroa), que persegue para matar aquele que, violando o costume milenar de hospitalidade da tribo, assassina um hóspede anônimo que estava abrigado na casa da família. Calógero, o sapateiro stalinista e comunista da Sicília, que no conto de Leonardo Sciascia sonha que Stalin está desgostoso com a sua postura política, porque não teria sido suficientemente “duro” com um camarada, que subtraíra alguns torrões de açúcar do estoque de ajuda das Nações Unidas.
São exemplos pouco compreensíveis para o “senso comum”. Nos ambientes históricos e culturais específicos em que ocorrem, porém, não somente são moralmente aceitáveis e se tornam códigos de honorabilidade e autopreservação da vida comunitária, que se une e se estabiliza, a partir de uma visão, não única, mas como algo de “dominante”. É um processo sócio-político e simbólico que se sedimenta com as suas formas de sociabilidade, nas relações entre grupos dominados e dominantes, às vezes pelo convencimento, às vezes criando consensos legítimos e, em muitas oportunidades, estabilizados por diversas formas de coerção.
Quero dizer com estas observações que a luta contra a corrupção, ou contra qualquer outro tipo de crime, que cause estarrecimento ao senso comum (com a falsidade que é sempre inerente a uma parte dos atores destas lutas), não somente não é uma coisa nova na história (como reação coletiva ao que é entendido historicamente como “mal”), como também é sempre uma repetição. Repetição mais, ou menos dramatizada, para atender, não somente a luta contra o “mal”, mas também para defender interesses que nem sempre são expostos à luz do dia. Isso ocorre porque a “defesa” contra o crime, que os homens fazem para defender a si mesmos, embora tenha regras jurídicas universais que vinculam a todos, não tem fundamentos morais idênticos. Nem interesses materiais iguais a serem defendidos, nem premissas capazes de vincular todos na sociedade, aos fundamentos éticos que caracterizam cada luta.
A instrumentalização da luta contra a corrupção pode servir a muitos desejos, legítimos e ilegítimos, justos ou injustos. Esta instrumentalização, portanto, tanto pode ser orientada por valores que são dominantes, mas que também podem ser também conflitantes. Por exemplo: posso usar a luta contra a corrupção como arma política na democracia, para desgastar e substituir meu adversário no poder, o que é legítimo, em princípio; e posso usá-la, também, combinando este motivo com outro motivo: o desejo de substituir o meu adversário no poder, para que ele não constate que, eu mesmo, participo de um sistema de corrupção muito mais amplo e complexo do que aquele que estou combatendo. Isto também não é novo. Com a diferença, hoje, que os meios tecnológicos de comunicação avançados e sofisticados estão à disposição de quem tem poder, dinheiro e influência na burocracia estatal, o que torna a disputa muito mais desigual do que na época do capitalismo do rádio e da TV “preto e branco”.
Creio que todos sabem que o roubo, a violência, a escravidão, o assassinato de populações inteiras na época colonial-mercantil, que prossegue hoje com outras formas (mas não com menor insensibilidade humana), também não são armas originais no processo civilizatório do capital, até mesmo porque ocorreram em todos os períodos da humanidade. A força expansiva e o vigor do capitalismo atual, porém, tem uma particularidade: vem dos saques coloniais, da destruição de populações inteiras em todo o globo e vem de uma época especial. No início da 2ª. Revolução Industrial –como lembra Leo Huberman no seu clássico “História da Riqueza do Homem”- as crianças de cinco anos eram recrutadas para trabalhar nas fábricas insalubres de Manchester e assim sacrificadas no altar da grandeza industrial da civilizada Inglaterra.
A história da humanidade é a história da implementação das formas de opressão de seres humanos, uns contra os outros. E a história particular do capitalismo, além de ser a história da democracia moderna e da representação política moderna (conquistadas no século passado), é também a história do refinamento técnico destes processos de violência e dominação. Eles foram, gradativamente, se transferindo de dentro dos territórios dos países mais “civilizados”, para os territórios fora do espaço nacional, mas o fizeram com os mesmos meios bárbaros que os povos antigos conquistavam as novas terras fora da sua jurisdição de poder local.
As lutas de resistência a estes processos agressivos -de fora para dentro nos países da periferia do sistema colonial ou diretamente imperial- também foram adquirindo as experiências de barbárie dos opressores e assim internalizando os seus valores morais. Não devemos esquecer que uma boa parte dos resistentes ao colonialismo e ao neocolonialismo, transformaram-se, ao longo do tempo, em títeres locais e passaram a usar, contra a sua própria população, os mesmos métodos bárbaros de violência e controle, que os colonialistas usavam contra os povos em luta. Mandela é um gigantesco exemplo da excepcionalidade.
Inclusive nos países que conquistaram os contratos social-democratas de distribuição de renda e proteção social, também foi iniciada uma regressão a novos padrões de exploração e deserção social, que já se pensavam superados. Neles, se destrói a ética do trabalho do capitalismo industrial clássico, pela histeria compulsiva do mercado sufocado de supérfluos. Estes, supérfluos, não somente para uma vida digna, mas também para os próprios padrões de riqueza tradicionais da velha burguesia industrial agora substituída, em termos de poder real, principalmente por uma classe dominante especulativa enriquecida pela acumulação sem trabalho.
A resistência e a luta socialista e os programas sociais-democratas, baseados na “defesa coletiva” de grupos de homens, opostos a outros homens, dotados de maior poder e riqueza, interpõe juntos aos princípios éticos universais (“não usar o outro como instrumento”), uma moral não-universal: é a moralidade “de classe”, que vem de outros costumes, outras necessidades e do enfrentamento com outros embates na vida cotidiana. Esta moralidade propõe aos que sofrem as opressões sociais ou vivem na carência, a possibilidade de se “defenderem” juntos para construir uma sociedade na qual se reduzam as diferenças sociais ao mínimo possível. Ela parte do pressuposto que todos que criam riquezas, devem fruí-las de maneira repartida e isonômica. Independentemente do fracasso do extremo destas utopias, a verdade é que elas impulsionaram o que tem de melhor no capitalismo: a legislação de proteção social, a neutralidade formal do Estado, a legislação internacional de proteção aos direitos humanos, os programas de coesão social mínima, originários do pacto social-democrata e as grandes políticas públicas de saúde e educação, nas quais os países socialistas e sociais-democratas se saíram muito melhor.
A história real, todavia, como diz Agnes Heller, “prescreve papéis sociais”, que as pessoas, pelos seus condicionamentos materiais e morais, pelo seu histórico pessoal, pelas suas opções morais, podem ou não se rebelar. Podem ou não rejeitar, superando o que a história lhes “programou”, mas nada sufoca a verdade de que o ser humano pode “escolher entre alternativas”, como diz Lukács: seja dissimulando, seja graduando as suas ações, seja não aceitando revolucionariamente o mundo como está, optando pela necessidade de reconstruí-lo, e assim, segundo cada opção, não aceitando, total ou parcialmente, as contingências da vida.
Frequentemente, os papéis que as contingências da vida “reservam” às pessoas, como indivíduos, determinam uma inversão ético-moral , na qual opressor e oprimido trocam de papéis. Ali, toda grandeza e miséria dos seres humanos se revela na singularidade de comportamentos, que, mesmo não sendo típicos, tem a capacidade de mostrar a grandiosidade e a miséria potencial de todos os humanos: os “feitores” negros matando a chicotadas os seus irmãos escravizados; Schindler, o burguês alemão, salvando judeus escravos do nazismo, pondo em risco sua vida e sua fortuna; os comunistas bolcheviques, transformados em torturadores na GPU soviética; Mandela, rejeitando a luta armada só quando a democracia política se instituísse de forma plena. Nos grandes movimentos de libertação coletiva e de construção da Democracia e da República -como na Revolução Francesa, durante o Regime da Convenção- também milhares de pessoas – culpadas ou inocentes – foram assassinadas em nome da liberdade. A história, como os homens, não é boa nem má, ela é, ao mesmo tempo, fatalidade e resistência, que se constrói na barbárie e nos sopros de dignidade que os humanos impõem à vida real.
Entendendo estes processos a partir da experiência histórica poderemos, então, ser mais “compreensivos” com o presente. Tomada, aqui, a palavra “compreensão”, como momento determinante para sermos mais eficientes e diretos na luta contra a corrupção. Bradar contra ela todos podem bradar. Mas só “bradar” se torna problemático para democracia quando -nesta desigualdade de meios- forma-se todo um bloco político-financeiro, partidário e comunicacional, para transformar a luta contra a corrupção (trabalhando com vazamentos seletivos, reiteração de acusações sem provas, redução do direito de resposta, manipulação de flagrantes fotográficos) -para transformar a luta contra a corrupção- no obscurecimento das suas próprias responsabilidades no “assalto ao Estado”.
Ao mesmo tempo que procedem desta forma seletiva, fruem da corrupção e da violência sistêmica do capitalismo em crise, ora justificando verdadeiras guerras de conquista com seus “bombardeios limpos” em busca de energia fóssil e lucros fáceis, ora formando corações e mentes (dos pobres) para que aceitem passivamente a austeridade. Maquiavel, Pedro “O Grande”, Robespierre, Lord Cromwell, Winston Churchill, foram mais honestos, nas barbáries que compartilharam, do que atuais detentores do poder de formação da opinião, em nosso país.
Recentemente um jornal local, ao noticiar a descoberta de um funcionário da Polícia Civil, que está sendo incriminado como protetor de traficantes, publicou uma fotografia que ilustra bem a sujeira destes métodos. Publicou uma enorme fotografia em página privilegiada, para identificar o suposto criminoso. E, de quebra, quem está lá no centro da foto? O então Governador do Estado. Este que vos escreve. Certamente o fizeram para “ligar” o Governador ao criminoso, criando, pela fotografia, uma imagem perante a opinião pública (através da produção de um traço de memória na cabeça do leitor) não só difamatória, mas criminosa, em termos penais e políticos.
Que fotografias vão publicar, agora, no âmbito da “operação Zelote”?
Assim como não se pode incriminar em conjunto o povo alemão pelo nazismo, ou os comunistas e socialistas pelo stalinismo, ou a integralidade dos empresários italianos pelo fascismo, qualquer generalização sobre o papel social e político de um partido, ou mesmo de um grupo empresarial, quanto à corrupção – como se faz atualmente contra os partidos no Brasil e contra o PT, em particular -, é uma política para esconder ou prevenir outras responsabilidades individuais. À medida que eu oponho coletivos de referência, como criminosos, os indivíduos desaparecem. Tal desaparecimento não só não ajuda a combater a corrupção e a responsabilização penal dos implicados, mas “ensina” que os corruptos “estão na política”, não nos meios de comunicação, nas entidades empresariais e nos grupos de extrema-direita não partidarizados. Ao lado de tudo isso, contra estas tendências à barbárie e à violência, a humanidade vem construindo arquitetura de direitos, princípios de igualdade, joias filosóficas, literárias e morais, dando demonstrações, individuais e coletivas, tanto de heroísmo como de solidariedade. O que vai vencer no presente, ainda não se sabe. Mas os seres humanos escolhem entre alternativas.
Os que controlam os cordéis do poder de informar e manipular, a especulação financeira global e os que se beneficiam infinitamente do sistema e se amortecem num sectarismo insano, talvez não tenham consciência do que estão provocando. Mas os que militam, conscientemente, para degradar a democracia, anular o outro diferente e, como indivíduos, assaltam o Estado e cantam uma moralidade deteriorada pelos seus interesses de classe, esses são incorrigíveis e sequer ficam ruborizados.
Arpad Toth, poeta húngaro, cantou liricamente o silêncio dos sem voz ou com pouca voz, que são as principais vítimas deste processo, cínico e insano: “Esse é o tempo do Anticristo. Brilha a repugnante sujeira dourada do mundo. E entram no Céu: Nadas engravatados, canalhas sutis.” (…) “Mas eu luto aqui em baixo; e ninguém nem vê. Esses tormentos que me queimam nas noites do meu silêncio.”
07/04/2015
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Ensaio-sobre-a-corrupcao-e-outros-crimes/4/33209
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