Comunicação latino-americana: disputa de sentidos

12/04/2010
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Ao longo do golpe de Estado em Honduras, em 2009, a mídia empresarial se posicionou na linha de frente, ombro a ombro com os setores mais conservadores do continente. Os meios de comunicação dispostos a falar a verdade são silenciados e uma versão falsa é lançada para a opinião pública internacional Essa postura dos meios, visível de acordo com a realidade de cada país, teve um de seus momentos mais significativos na tentativa de golpe contra o presidente venezuelano Hugo Chávez, em abril de 2002. São cenários que colocam para os movimentos sociais a necessidade de integração, aprofundamento da comunicação popular e pressão sobre os diferentes governos para limitar o espectro radiofônico e televisivo da mídia empresarial e atingir a chamada “reforma agrária do ar”.

Dentro desta ótica, o encontro “Comunicação, Integração e Movimentos sociais”, organizado na capital do Equador, Quito, entre os dias 29 a 31 de março, é a continuação deste exercício crítico do papel dos meios de comunicação junto aos movimentos sociais, dentro dos princípios da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba). Comunicadores do Brasil, Cuba, Equador, Venezuela, Paraguai e Colômbia estiveram presentes, aportando experiências em torno de redes de comunicação populares e capacitação em comunicação popular. No marco institucional, outro debate importante foi sobre a experiência de monitoramento dos meios de comunicação, realizada a partir dos movimentos sociais.

O encontro culminou com a criação de um programa e a apresentação de seus eixos gerais em reunião com o Ministro de Relações Exteriores do Equador, Ricardo Patiño, sobre a possibilidade de pautar um observatório de meios de comunicação e um espaço de diálogo entre organizações e governos nos marcos da União de Nações Sul-Americanas (Unasur). Ao lado da proposta para governos, outra proposta será lançada direcionada para as organizações sociais.

Equador, o país do encontro, fornece o contexto para o debate sobre alternativas para a mídia, uma vez que o Congresso do país está para votar uma “Lei de Comunicação”, a partir de orientação da nova Constituinte. O texto sofre ataque dos meios empresariais, que levantam a bandeira da “liberdade de expressão”, o que no seu vocabulário quer dizer nenhum controle por parte da sociedade (veja entrevista abaixo).

“O setor empresarial e mediático de maneira frontal expressou que uma lei não é necessária. Porém, uma vez quea Constituição estabelece a obrigatoriedade de aprovar uma lei de comunicação, consideram então que se aprove uma lei, mas que seja o mais branda possível e não afete seus interesses. A oposição direta que expressaram estes setores tradicionais é à criação de um Conselho Nacional de Comunicação que regule e exerça algum mecanismo de controle social”, analisa José Nelson Mármol, da Organización Católica Latinoamericana y Caribeña de Comunicación (Oclacc). 

Intertítulo. Pressionar governos, diminuir espaços privados

Um dos eixos do debate entre os comunicadores está no controle social dos meios de comunicação, executado e pensado a partir dos movimentos sociais. A principal experiência neste sentido são os Observatórios dos meios de comunicação a partir da criação e financiamento de observatórios autônomos e independentes. A proposta é pautar os observatórios nos diferentes países que integram a União de Nações Sul-americanas (Unasur). Geralmente, a monitoração dos meios de comunicação é feita pelo meio acadêmico, com pouca capacidade de intervenção, ou apenas de modo parcial pelos movimentos populares do nosso continente, como informa o jornalista uruguaio, radicado na Venezuela, Aram Arahoniam, um dos idealizadores da Telesur.

Tais formas de controle social e monitoramento dos meios de comunicação passam por várias esferas da sociedade, desde a análise do horário televisivo reservado às crianças até o monitoramento dos processos eleitorais, quando a ofensiva da direita ganha contornos mais fortes. “São observatórios conjunturais, durante o ato eleitoral, nas semanas prévias e anteriores. Vimos racismo contra Evo Morales nas eleições da Bolívia. É um trabalho no qual vários países integraram o grupo de observação, em El Salvador, Chile e Venezuela. Já a auditoria social consiste em associações de, por exemplo, mães contra a violência dos meios, para denunciar as atividades dos meios, em horários reservados às crianças”, exemplifica Arahoniam.

Voz aos invisíveis

América Latina apresenta uma série de experiências em comunicação popular, seu vínculo educativo e com o trabalho de base

A comunicação é mais do que um simples acessório para os movimentos sociais. Na realidade, converte-se em um eixo estratégico na disputa por hegemonia entre as classes sociais. “(O golpe em Honduras) Foi um momento que nos pegou fora de foco, sem qualidade e capacidade de dar nossas respostas”, avalia Osvaldo León, comunicador da rede América Latina em Movimiento (ALAI), do Equador.

Dar voz aos “ninguneados” – ou invisibilizados pelos meios corporativos. Durante o encontro, os encaminhamentos e tarefas colocadas para as organizações sociais apontam para a formação conjunta de lideranças dos movimentos sociais e também cursos de comunicação popular para as bases dos movimentos. “Temos que assegurar uma polifonia, com uma diversidade de atores. Assumir nossa própria cidadania, aprofundar os vínculos com os processos locais”, afirma Nelsy Lizarazo, da Asociação Latino-americana de Produção Radiofônica (Aler).

A necessidade de capacitação popular fica cada vez mais urgente. José Ramón Vidal, do Instituto Martin Luther King, de Cuba, de formação e educação popular, analisou o papel educativo dos meios de comunicação. “Há uma diferença entre o que eles buscam e o que nós buscamos. Eles buscam manipular e persuadir. Nosso objetivo é que as pessoas pensem. Nosso parâmetro é avaliar se estamos crescendo ou ensinando a pensar? o nosso eixo é a emancipação”, analisa o ex-diretor por cinco anos do jornal Juventude Rebelde, um dos principais periódicos cubanos, ao lado do Gramma.

Na Colômbia, a experiência da Minga dos Movimentos Sociais, articulada pelo movimento indígena, traduz este objetivo de capacitação de lideranças e comunicadores populares, o que impulsiona a criação de uma rede. De acordo com Manuel Rozental, da Minga Informativa dos Movimentos, a comunicação popular pode dispor de ferramentas de tecnologia e criação de redes. Ele narrou experiências de teleconferências e encontros formativos entre comunidades e pesquisadores das universidades por meio do uso de Skype. Neste sentido, o encontro avaliou a busca de um equilíbrio entre usar mecanismos próprios de comunicação dos movimentos, e também os “apropriados”. Ou seja, apoderar-se da tecnologia e das técnicas dos grandes meios. Conhecê-las.

Um olhar no espelho é preciso. Os meios de comunicação a partir dos movimentos sociais não são uma experiência acabada. O encontro em Quito elaborou questões sobre em que medida reproduzimos o formato e os valores da comunicação empresarial. Em que medida há espaço para uma comunicação própria. Um mecanismo para estas reflexões seria um observatório da mídia da própria esquerda, crítico e integrado às práticas educativas. “É uma metodologia aplicada sempre aos meios convencionais, desde o nosso ponto de vista, mas poderia ser aplicada para nós mesmos, porque põe em evidência o quanto sim ou não repetimos o discurso hegemônico e o quanto disputamos sentidos”, comenta Nelsy Lizarazo. 

Disputa de sentidos

Uma expressão recorrente é a disputa de sentidos com a mídia hegemônica. Na visão das organizações que participaram do encontro, a comunicação alcança hoje um grande espaço no cotidiano da população, assim como a subjetividade e a vida cotidiana das massas. “Temos que avaliar o significado hoje dos meios de comunicação na sociedade, é a grande instituição que formata consciências, mas forma para uma sociedade marcada pelo mercado. Um desafio nosso é saber trabalhar novos formatos, a partir de diferentes questões da vida das pessoas. É preciso gestar algo novo e temos condições de pensar na política de formação, pensando numa política de comunicação para que cada pessoa possa fazer comunicação”, afirma Elson Faxina, da TV Educativa do Paraná.

Propostas e posicionamentos dos comunicadores e movimentos sociais

Eixos e bandeiras de atuação dos meios de comunicação na América Latina

- Integração entre os povos;

- Desmilitarização do continente;

- Democratização dos meios de comunicação;

- “Madre Tierra”, proteção ao território, o que implica defender os povos, seus costumes e formas de vida;

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Entrevista Osvaldo Leon

“O objetivo é criar meios articulados”

Quito, no ano de 2005. Um movimento massivo, concentrado na capital e levado a cabo pelas camadas de classe média, retira o então presidente Lúcio Gutiérrez do poder. Era o ápice de uma crise institucional que eclodiu antes, em 2000. Em uma curva histórica mais ampla, esta crise é aprofundada com o surgimento do movimento indígena na cena histórica equatoriana, desde fins dos anos 1980. No entanto, a derrocada de Gutiérrez também significou um profundo desgaste para as organizações populares, indígenas e campesinas, uma vez que muitas delas haviam se integrado ao governo anti-popular. Neste contexto, de vazio de poder e crise institucional, Rafael Correa chega à presidência do Equador estabelecendo o processo da Constituinte, com a proposição de bandeiras históricas dos movimentos populares, encaminhadas para o Congresso do país no formato de lei. Na avaliação de Osvaldo León, da rede de comunicação América Latina em Movimiento (Alai), a “Lei de Comunicação”, neste momento em trâmite na Assembleia, é uma entre as várias medidas previstas pela nova Constituinte. No entanto, a disputa política esbarra na dispersão das organizações sociais. Em entrevista ao Brasil de Fato, León analisa também a atual conjuntura a partir das tarefas entre comunicação e movimentos sociais.

Brasil de Fato. Qual o contexto da Lei de Comunicação, da disputa que está se dando no Congresso, e por que este processo alcança o movimento social sem unidade no tema?

No caso do Equador, aprovou-se uma nova Constituição, seguramente a mais avançada, mas também entendendo que a anterior tinha pontos mais avançados que a maioria dos países. O problema foi que a Constituição nunca se traduziu em lei. Devido a esta situação, a Assembleia dispôs, em um período determinado, de praticamente um ano, quando deveriam ser aprovadas várias leis sobre os pontos centrais. O tempo resultou muito curto, o que causou um congestionamento de leis para se aprovar. Do ponto de vista técnico isso tem dificultado. Outro aspecto é que há um descrédito generalizado nos meios de comunicação. Por duas razões: a primeira é que (o presidente Rafael) Correa, de maneira sistemática, denuncia os veículos de comunicação. O segundo, mais de fundo: o que se vive no Equador é uma crise institucional, entre 2000 e 2005, mas desde antes, no final dos anos 1980, com a demolição das instituições, das “partidocracias”, do sistema Judiciário. O que também passou em Venezuela e Bolívia. Com a nova Constituição, se pretenderia reordenar um jogo institucional democrático. Neste contexto, é que a mídia avançou com uma campanha nunca vista para não se dar a Lei de Comunicação, que ficou parada. Porque dentro do próprio bloco do governo não há uma decisão clara de avançar com esta lei, seja porque há interesses ou porque há intimidação por parte da mídia, porque a pressão sobre os assembleístas é muito forte. Se os assembleístas saem para dizer algo sobre a lei, tem a tribuna aberta, mas eles aproveitam para questionar a lei, geralmente fora de sentido do que deveria ser sua posição. E isso para ser tomado em conta pela mídia.

Brasil de Fato. Como tem sido a atuação dos movimentos sociais sobre o tema?

Ainda que as organizações reconheçam que há um espaço estratégico em disputa, na prática não é assim. Concentraram-se mais em outros temas. Até porque, simultaneamente, as organizações são indígenas e campesinas. Está em discussão a Lei da Água, Lei de Soberania Alimentar, Lei Mineira. Há várias demandas. Prioriza-se temáticas mais diretamente, a lei de água acaba recebendo prioridade, afinal trata-se de um tema de sobrevivência (...) Não há havido a contundência necessária para mobilizar mais além desta situação. Há que reiterar, o governo de Correa assiste paralelamente a uma desmobilização social. Já quando caiu Gutiérrez, aquele movimento começou sem nenhum setor organizado como epicentro –, um fenômeno de extratos médios e setores aristocráticos, de classe média para cima, setores inclusive com uma lógica racista, que não queriam que alguém com traços amazônicos fosse presidente. Não foi uma mobilização organizada. Foi um estado de ânimo. O que aquele movimento expressou foi uma crise institucional e das formas organizativas. O papel que jogaram os meios, particularmente a Rádio La Luna, é porque ninguém estava capacitado para convocar. Um vazio organizativo. Então La Luna logra organizar uma assembleia ao vivo e direto a partir da rádio. Isso vai multiplicando pelas mensagens de celulares entre jovens, que nunca tiveram uma experiência organizativa. Logram uma concentração que provoca um fenômeno de reverberação.

QUADRO. Rádio La Luna. Rádio que tornou-se central no processo de aglutinação do movimento dos “forajidos”, que buscava a queda de Gutiérrez. A rádio convocava e aglutinava as manifestações noturnas, na capital Quito. Foi defendida pela população em momentos de repressão do governo.

Brasil de Fato. Quais pontos da Lei de Comunicação estão gerando resistência da mídia empresarial?

A informação que temos é que a Lei está completamente reformulada, incorporada com elementos que surgiram de outros setores. Neste momento, não se pode ter uma análise mais completa. No geral, há três ou quatro pontos em torno dos quais há tensão. Pontos que temos visto como chave, e que vão passar. Em alguns dos casos, sem maior mobilização pública, que não se desenvolveu. O reconhecimento da plurinacionalidade vai passar. A redistribuição de freqüências também. Outro ponto é a produção nacional e local através de porcentagens. A dúvida ainda está em como se vai a confirmar o Conselho de Comunicação (questão mais polêmica, como mostram os jornais do país).

Brasil de Fato. Em que pontos a experiência equatoriana de buscar limitar os meios empresariais insere-se no contexto latino-americano?

Uma mesma pauta se está se movendo na Argentina, Brasil, Bolívia, Equador, sobre o jogo que fazem os donos dos meios de comunicação, uma demanda que vem a ampliar o direito à comunicação. Tudo o que afete o monopólio dos meios, tudo o que corte os seus privilégios, eles dão um contorno de “ameaça à liberdade de expressão”. Os meios de comunicação corporativos argumentam que se auto-regulam, então se eles são guardiães da liberdade de expressão, para quê leis, para quê normas, para quê instâncias? A lei não faz sentido para eles. São os mesmos argumentos que em outros países.

Brasil de Fato. Quais são os desafios na relação entre mídia e movimentos sociais?

Mais do que valorizar os meios próprios, vemos que há o que chamamos de um “possibilismo mediático” das organizações, de querer entrar nos grandes meios. Não se desenvolve uma política própria. Mas acho que muitos setores estão se dando conta disso. A questão não é aparecer em um ou dois meios. A questão é como construir um tecido comunicacional interno com capacidade de responder de qualquer ponto do país, ou ao menos onde a organização tem presença e urgência. Senão a questão é que você segue uma lógica onde a comunicação está centralizada unicamente na sede da organização, mirando aos meios de comunicação da burguesia, e tratando de fazer uma plataforma às suas questões.

Brasil de Fato. Que saldo avalia do encontro “Comunicação, Integração e Movimentos sociais”, da busca de integração a partir da comunicação alternativa?

Buscamos tirar a limpo o lugar onde estamos, quais potenciais temos, que limitações, que barreiras nos estão impedindo de desenvolver propostas que não são elaboradas de hoje. Isto já vem como parte de um processo de articulação das organizações populares. Porque no campo da comunicação, por mais que seja exitoso um veículo por si mesmo, não é a finalidade. Não são veículos desagregados, mas articulados – o que faz inclusive poderoso o sistema dominante. Uma pessoa não pode pensar que vá haver mudanças sociais sem um nível organizativo e um tecido que se constrói socialmente a favor das mudanças, não vai haver um tecido comunicacional articulado sem estes processos de mudança social. Ao mesmo tempo, um êxito ilhado de um meio de comunicação alternativo não altera a correlação de forças. A construção de um tecido passa por uma articulação complexa, de pouca visibilidade e impacto iniciais. Mas, uma vez articulado, a capacidade de resposta vai se multiplicar significamente. Inclusive por uma questão simples. Um tecido ajuda a ampliar a capacidade de resposta que um teria sozinho. Isso podemos ver com a própria experiência da Minga Informativa. Dez comunicadores, cada um por seu lado, não te dão uma visão de um evento, mas organizados por frentes de cobertura temos um resultado de melhor qualidade.

Fonte: Brasil de Fato, http://www.brasildefato.com.br

https://www.alainet.org/pt/articulo/140603?language=es
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