Se aquele que deixa o comando do STF cantava em defesa de seu direito de pôr ovos, o que entra é mais afeito a pô-los sob a proteção do silêncio
Mudança apenas de estilo no STF
22/03/2010
- Opinión
A eleição do novo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) foi saudada com menos foguetes do que se chegou a esperar face a tantas manifestações de desagrado da sociedade com as atitudes de seu antecessor, ministro Gilmar Mendes.
Mendes chegou ao STF nos braços do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e sob os protestos de parte considerável da sociedade, que nele apontava uma subserviência aos ditames do presidente tucano e uma indisposição com os problemas e com os movimentos sociais. Mesmo quando se pôs na defesa de direitos e garantias individuais violados pela polícia, Ministério Público e o próprio Judiciário, sofreu forte oposição de agrupamentos de esquerda que o acusaram de atuar somente quando eram os ricos e poderosos que eram alvejados pelo cumprimento da lei. Mas como se buscasse o prêmio do melhor dos campeões da direita, essas afirmações nunca lhe trouxeram mais que alguns muxoxos, salvo quando vieram de um colega de Tribunal, o ministro Joaquim Barbosa, ele próprio um defensor do estado da lei e ordem e da primazia da repressão sobre os direitos individuais.
Não cabe dúvida de que se Gilmar Mendes conseguiu aliar o melhor de seu conhecimento jurídico àquelas qualidades que lhe teriam valido o apreço e a indicação de Fernando Henrique, o biênio em que esteve no comando do STF não fez jus ao que dele esperava a direita, obrigando-o a defender em público e em espaços políticos valores e orientações que se afirmam melhor no âmbito jurídico. Isso porque mesmo ocupando simultaneamente a presidência do STF e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sentiu-se motivado a fazer em público a disputa dos valores de interesse das classes dominantes mobilizando forças na defesa do latifúndio e do agronegócio, encarniçando-se contra os trabalhadores sem-terra e em favor dos militares torturadores e assassinos.
Tais caso não podem ser lidos isoladamente, porque os mesmos fundamentos que servem a uns servem a incontáveis outros. Assim, a mesma criminalização dos movimentos camponeses que o ministro se autorizou fazer em defesa do latifúndio estimula a pena de juízes e juízas que, diante de ocupações de terras como aquelas griladas pela Cutrale em São Paulo, se apressam em decretar ilegalmente a prisão dos manifestantes; a ojeriza do ministro às ações da sociedade pobre alegram os fins-de-semana dos integrantes do Ministério Público da socialdemocracia brasileira que criminalizam a mobilização e as greves de metroviários e professores em São Paulo, buscando inviabilizar suas organizações sindicais pela extorsão de seus recursos através da imposição de multas pelo simples fato de realizarem manifestações de rua.
De outro lado, a mesma defesa dos militares torturadores e assassinos albergada pelo já quase ex-presidente do STF continua adubando novas semeaduras de cadáveres e espancados nos “crimes de maios” e nos calabouços, todos os seus autores aguardando que a inação das autoridades e as teses do jurista Gilmar Mendes lhes cubram a impunidade com os mantos da prescrição ou do exercício do dever legal.
Mas é sabido que os agentes secretos e a dominação capitalista cumprem suas funções tão mais eficientemente quanto delas a sociedade não tenha consciência. E o que se disser no geral do poder do capital se pode igualmente dizer de cada um dos órgãos do Estado que assegura sua continuidade, mas se dirá com muito mais razão daquele órgão a que no ordenamento jurídico se comete a função de árbitro dos conflitos, já que a imagem da imparcialidade do árbitro é condição mesma de sua aceitação.
Nesse sentido, é preciso reconhecer que o ministro Gilmar Mendes prestou um inestimável serviço à sociedade ao tempo em que se tornou confidente da Veja e da Folha de S.Paulo, e se autorizou lavar em público a roupa suja que somente se deveria conhecer nos tanques do judiciário. Isso porque, ao fazê-lo, denunciou de modo que mesmo aqueles que da história somente são capazes de ler o prefácio se vejam obrigados a reconhecer o caráter político do Judiciário e a condição de organismo de defesa do poder dominante.
Os últimos dias de Gilmar Mendes à frente do STF marcam o fim dos dias das presidências da corte sob ministros indicados por FHC. Abrem-se, a partir daqui, aquelas presidências que serão ocupadas por ministros indicados por Lula.
Parece certo que os dias de Cesar Peluso à frente do Judiciário brasileiro tendem a ser diferentes dos que estamos em vias de encerrar. É ele proveniente da magistratura de carreira, o que já indica uma preferência pelas posturas mais tradicionais. Mas isso não deve induzir a crer em diferenças tão marcantes em relação ao que se vem de viver. Cesar Peluso não fez na imprensa a disputa da extradição de Cesare Battisti, mas foi o mais feroz articulador e batalhador por ela, enfrentando diversos conflitos na sessão de julgamento.
Ainda recentemente o ministro Marco Aurélio de Mello, em entrevista, deu a entender que a mera suposição de que as forças populares estejam avançando é suficiente para avalizar a instauração de uma ditadura e suas consequências, ao declarar que no seu entender a ditadura militar foi “um mal necessário”. E quando indagado pelo jornalista Kennedy Alencar se havia, de fato, o "risco de uma ditadura comunista", respondeu: "Teríamos que esperar para ver. E foi melhor não esperar". Com isso, demonstrou claramente o quanto a defesa da ditadura e da repressão aos movimentos sociais é parte integrante da mais alta corte da República. Havendo aqueles que a expressam sempre, aqueles que a confessam às vezes, e aqueles que revelam o mesmo pensamento sob a forma de decisões.
Se aquele que deixa o comando do STF cantava em defesa de seu direito de pôr ovos, o que entra é mais afeito a pô-los sob a proteção do silêncio. Um como outro, porém, sabem que para que haja omeletes é preciso que haja ovos. E quebrá-los.
E essa é sua função.
- Brasil de Fato, Editorial ed 368
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