Lula vem aí

03/10/2006
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Os amigos, poucos, perdoem e desculpem esta nossa fraqueza. Tentamos de todas as maneiras fugir deste assunto, neste domingo. Tentamos. E mirem o império desse extraordinário acontecimento. Ainda que todas as tragédias ocorram, saibam, nada poderá deter o que as eleições de hoje anunciam. Um encontro no subúrbio de Água Fria, aquela terra ideal no Recife que buscamos e jamais encontraremos, esse encontro hoje não ocorrerá. Faleceu, vítima de um acidente em um vôo da Gol, um irmão de um amigo. Isto é um choque para o nosso coração. Dizemo-nos isto, mas nem mesmo essa tristeza em cima de nossa fraternidade cerceia o calor de dizer, saibam todos, que Lula vem aí. Amigos outros há, de peso e talento fundamentais para o Brasil, escritores, jornalistas, mestres que não vêm conosco nesta anunciação. Que fazer? Nem mesmo os laços de amizade e formação impedem esta divergência feliz: Lula vem aí. Este é um valor que ainda nem explicamos, não sabemos se ele é do tempo, se é da história, das artes ou da ciência. Desconfiamos que é um valor acima das nossas pessoas e circunstâncias, porque vem como uma força da natureza, como um destino cantado por anunciadores na Grécia. Que gritam para Roma, para que de Roma proclamem e gritem os áugures, para todo o Brasil: Lula vem aí. Aos políticos, que pensam que tudo é política, pedimos um instante de reflexão. Hoje acontece algo maior que a política. Aos economistas, que pensam que tudo é economia, economizem um pouco as suas reservas de análise. Aos historiadores, que pensam que tudo vem da história... bem, a estes não sabemos bem o que pedir. Por enquanto apenas sentimos que a reeleição de Lula é “algo” que invade tudo. Digamos, se com isto conseguimos nos fazer entender, digamos que ele é a nossa Copa do Mundo que perdemos. Talvez mais, com certeza mais, porque pessoas que não gostam de futebol, e nem mesmo aqueles que não gostam do Brasil, sabem o valor de símbolo que guarda esta reeleição. Ele é um pouco mais que comida na mesa – e quem passa ou passou fome sabe o valor tantalizante que é isto. Queremos dizer, e aqui um leitor atento deve ter percebido que mudamos o gênero de ela – a reeleição – para ele – Lula. Isto se dá porque Lula é um símbolo. Melhor, ele é o símbolo. Um homem do povo que ascendeu. Que promessa infinita de redenção guarda este símbolo. Se conseguimos manter o equilíbrio de pés descalços em um fio de navalha, diremos que ele se mantém próximo de nós, até mesmo no instante – e talvez por isso mesmo – em que a oposição humilha a sua pessoa. De humilhação o povo bem entende. Analfabeto, dizem-no, e nós, os de escola precária ou nenhuma dizemo-nos, pois sim. Beberrão, dizem-no, e nós, que adoramos uma aguardente, perguntamos, sim, e o que vem depois? Ladrão, acusam-no, e nós, que algumas vezes furtamos centavos para sobreviver, sorrimos. Nordestino, atrasado, e nós, o atraso sem o qual país nenhum vive, dizemo-nos, fala, irmão. E Lula fala. E como ele fala bem, com propriedade, com substância, ainda que mande para o inferno as concordâncias da norma culta. Que deveriam não ser assim tão notadas pelos bem-nascidos. Porque a elite brasileira, se tivesse um pouco de sensatez, não destacaria tanto a falta de cultura acadêmica do presidente. Ora, nós somos o povo de uma das mais analfabetas elites do planeta. Quem duvidar que pergunte a qualquer indivíduo branco, de renda acima de 50 salários mínimos, se ele conhece Marcel Proust. Ou qual o valor de um artista plástico, além do preço estimado por metro quadrado de uma tela. A nossa, deles, elite não sabe, não viu, não conhece. Ela ainda espera que o cinema consiga a proeza de pôr “Em busca do tempo perdido” em maravilhosos videoclipes. Um recurso comum da crônica, comum e batido até o limite da nossa paciência, é dizer que escreve hoje desta ou daquela maneira porque está sem assunto. Nem mesmo podemos dizer isto a nosso favor. Porque assuntos havia e há, vários, pertinentes e impertinentes. Havia e há uma edição desastrosa de Machado de Assis para comentar. Essa edição possui erros primários, que beiram a tragédia e o cômico. Era um bom assunto. Havia um indivíduo que em 29 de setembro atingiu 56 anos, que se imagina com espírito de 18 e impulsos de 15. Para tão bom delírio, este era outro bom assunto. Mas a reeleição de Lula tudo invadiu. Lula vem aí, Lula vem aí, venceu e vence todas as fotos de dinheiro, de montanhas e pilhas de cédulas, em todos os periódicos, web e televisão. Imaginem por que desprezamos tão grandes somas. A partir deste domingo, os que nele votamos temos a felicidade rara de estar com o povo, assim como o peixe está no mar, assim como as ondas estão no oceano. Nós que um dia sonhamos com a revolução temos uma aproximação, uma semelhança, um gosto de como se fosse para o que desejaríamos e desejamos. Pois assim nos disse um trabalhador da limpeza em nosso bairro, enquanto apontava uma foto do presidente: “o homem é esse aí mesmo”. Por isso desculpem por fim se escrevemos mal. Não culpem o assunto ou o símbolo. É do estilo, é um destino. Como este, hoje: Lula vem aí, de novo.
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