O colapso da ética no jornalismo

09/08/2006
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“Está errada a declaração a mim atribuída na matéria ‘Lula defende lucro de bancos e se diz vítima de preconceito’. Nunca, em nenhum momento dos meus mais de 25 anos de atuação política, me referi a algum grupo como ‘essa raça’... Minha fala foi exatamente ao contrário da que foi publicada e em nenhum momento citei o nome de um ou outro agente político”. Aldo Rebelo, presidente da Câmara de Deputados. “Cabe-nos criticar a opção editorial da Folha de S.Paulo que, de mês em mês, religiosamente, investe contra os movimentos sociais, ora contra a UNE, ora contra o MST, sempre de forma tendenciosa, na tentativa de desgastá-los junto à opinião pública”. Gustavo Petta, presidente da União Nacional dos Estudantes. “O tipo de jornalismo que tem sido feito pela Folha, o qual classifico de ‘vergonhoso’, nos levará a rever o contrato de mais de uma década com a Agência Folha. Consideramos que tal jornalismo desacredita o veículo. Portanto, para evitar correr o mesmo risco de descrédito, devemos avaliar se podemos continuar reproduzindo os textos, em nossa opinião parciais e manipulados, que se originam da redação da Folha de S.Paulo”. Germano Leite, editor do jornal Agora, da cidade de Rio Grande (RS). As três contundentes manifestações de repúdio às manipulações da mídia – no caso, todas contrárias ao jornal Folha de S.Paulo, que ainda engana muita gente com o seu aparente ecletismo, mas que tem o rabo preso com o capital e o tucanato – ocorreram na semana passada. Elas confirmam a vergonhosa e crescente interferência dos meios de comunicação, sob o rígido controle de uma dúzia de famílias, no processo político brasileiro. Os mesmos veículos impressos e eletrônicos, que apoiaram abertamente a ditadura militar – a Folha até cedeu as suas peruas ao transporte de presos políticos para a tortura –, hoje investem para desqualificar os movimentos sociais, espinafrar o governo Lula e preparar o terreno para a revanche neoliberal nas eleições presidenciais. Na mesma semana, Flávio Aguiar, professor de literatura na USP, listou indignado alguns casos recentes da manipulação. “A primeira e a mais grosseira delas – logo acolhida pelas manchetes principais da imprensa – foi a de vincular o PCC [crime organizado] ao PT. Mas não colou... A mais recente tentativa da mídia foi a de colar no PT e no governo Lula tudo o que diz respeito às ‘sanguessugas’ e a só agora badalada máfia das ambulâncias. Novamente há indícios sérios de que isso vinha de antes. Mas não interessa. O que importar é malhar o governo. E na esteira vêm outros comentários da mesma laia. Israel arrasa o Líbano e atrapalha a saída de brasileiros. É uma humilhação para o governo Lula. A rodada de Doha empacou, uma representante dos EUA saiu batendo as portas: não importa, o fracasso foi da política do governo Lula. E por aí se vai”. A deformação dos jornalistas Estes e outros fatos lamentáveis dão ainda maior atualidade aos nove artigos escritos pelo professor Bernardo Kucinski, reunidos no livro “O jornalismo na era virtual – ensaios sobre o colapso da razão ética”. A obra não visa dar um tratamento filosófico à questão da ética e nem cai na cruzada moralista, udenista, que hoje anima boa parte da mídia, cínicos políticos da direita putrefata e mesmo gente que se diz de esquerda. Conforme o autor ressalta, o principal problema do jornalismo nacional hoje “não é de natureza moral, mas sim política. Isso significa que a luta por uma nova ética é também, e acima de tudo, uma luta política”. A monopolização da mídia e a própria deformação de muitos profissionais explicariam a deprimente situação do jornalismo. Para ele, o jornalismo vive hoje um vazio ético. “Nas redações, deu-se uma rendição generalizada aos ditames mercantilistas ou ideológicos dos proprietários dos meios de informação. A liberdade de informar e o direito de ser informado, canonizados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e erigidos em ideologia dos códigos de ética jornalística nos mais diversos países, tornaram-se letra morta... No dia-a-dia das redações, o vazio ético é reforçado por mecanismos diversos, entre os quais o fim da demarcação entre o jornalismo e a assessoria de imprensa; a fusão mercadológica de notícia, entretenimento e consumo; a concentração de propriedade na indústria de comunicação; a crescente manipulação de informação por grupos de interesse; e, principalmente, a mentalidade pós-moderna, que celebra o individualismo e o sucesso pessoal”. Como professor de jornalismo da Universidade de São Paulo (USP), a maior do país, Kucinski confessa estar bastante angustiado com este último aspecto. Ele lembra de uma aula num curso de pós-graduação em que as suas críticas ao colapso da ética “provocaram uma reação alérgica imediata e muito forte, quase uma rebelião. O mote geral era que eu estava exigindo posturas irreais, que em todas as redações o jornalista tem que fazer o que o patrão manda e o que a publicidade manda. Perguntei a eles: qual a diferença entre um médico que mata e um jornalista que mente. Ofendidos, não responderam”. Esta experiência abalou as suas convicções sobre o futuro do jornalismo num mundo sob hegemonia neoliberal e numa mídia sob domínio dos monopólios. Além da luta política, ele também prioriza a formação educacional como mecanismo para superar esta deformação. Jornalismo e corrupção Num dos capítulos mais interessantes, o autor discute um tema-tabu nas redações – “jornalismo e corrupção”. Como observa, sempre houve uma imprensa “marrom”, feita de matérias compradas e deturpações grosseiras para favorecer grupos econômicos e políticos ou simplesmente para vender mais jornal. Ele lembra de Assis Chateaubriand, que ergueu o seu império dos Diários Associados com base num jornalismo inescrupuloso. “A corrupção é prática sedutora na indústria de comunicação pelo fato de nela se combinar o poder de influenciar politicamente a opinião pública com o poder econômico. Nenhuma outra indústria tem essa característica. É uma prática também comum entre os jornalistas, por sua proximidade no jogo de influência dos poderosos”. Para ele, entretanto, a prática da corrupção adquiriu novos e sutis contornos na era do jornalismo on-line e do predomínio da ditadura financeira e da globalização neoliberal. Ela é mais patente no jornalismo econômico, “que estabeleceu relações promíscuas e venais com o capital financeiro. Analistas de bancos e corretores de valores conseguem ganhos extraordinários nas bolsas ou mesas de câmbio por intermédio da disseminação de notícias falsas ou falseadas... Com o colapso da Enron e de outras grandes empresas norte- americanas na primeira crise da economia virtual em 2002, descobriu-se que essas empresas faziam pagamentos volumosos a jornalistas de prestígio pela redação de discursos e relatórios, forma disfarçada de comprar seus favores”. A chaga da corrupção nos meios de comunicação e até entre os jornalistas, que nunca é abordada pela própria mídia, teria ganhado impulso com o neoliberalismo, que não combina com democracia e nem com a lisura na utilização dos recursos públicos. “O projeto neoliberal implantou-se no país comprando votos no Congresso e vendendo grandes empresas públicas a consórcios formados por meio de acordos secretos que contaram com recursos dos bancos oficiais e de fundos de pensão, obtidos às vezes com apoio em suborno. O neoliberalismo consagrou a corrupção como padrão de negócios e da política. A própria ideologia neoliberal, fundada no individualismo exacerbado, em sua versão latino-americana, alimentou a corrupção”. Ele lembra que na campanha pela reeleição de FHC, “os barões da imprensa se reuniram com ele em Brasília e fecharam totalmente com sua candidatura. Assim, a corrupção nas empresas jornalísticas voltou à dimensão institucionalizada e compartilhada de um grande projeto de classe”. Ele aponta ainda as práticas mais comuns de cooptação de jornalistas usadas por políticos e empresas. Uma delas é o merchandising – a propaganda camuflada em programas de entretenimento. “O exemplo mais notável e mais conhecido foi o da organização de uma falsa ONG, chamada Brasil-2000, pelo presidente do BNDES, Luiz Carlos Mendonça de Barros, para pagar jornalistas que pudessem fazer merchandising das privatizações e, por tabela, da candidatura de FHC”. Hebe Camargo e Ratinho, entre outros apresentadores de TV, sempre estiveram metidos neste esquema. O falso denuncismo Kucinski também afirma que “uma das formas sutis de cooptação dos jornalistas por setores empresariais é a instituição dos ‘prêmios jornalísticos’... Esses prêmios são fortes indutores da pauta jornalística e determinam a ocupação dos espaços a partir de interesses dos empresários”. Ele critica ainda os famosos “jabaculês”, os presentes dados regularmente por empresas a jornalistas de projeção, e não poupa os sindicatos que buscam patrocínio empresarial para projetos. Como que advertido para os riscos presentes nas batalhas eleitorais, ele informa que nestes períodos “a compra de matérias se torna mais intensa... Em três campanhas presidenciais pós-ditadura, as de 1989, 1994 e 1998, houve venda de capas e matérias especiais por grandes somas”. Ainda neste capítulo, o autor faz uma análise elucidativa sobre o “denuncismo como prática jornalística”. Ele mostra que a defesa da ética, feita muitas vezes por corruptos hipócritas, sempre fez parte do discurso político no país. Em alguns casos, as investigações cumprem papel importante, como nas denuncias contra Collor de Mello, e servem para compensar a aliança estratégica da mídia com os interesses mais estratégicos do capital. No geral, porém, este denuncismo, com a fabricação de destrutivos dossiês, tem caráter político. Ele cita o quase-silêncio nas denúncias da compra de votos para a reeleição de FHC. “A impunidade de altas figuras do governo FHC permanece no inconsciente coletivo dos jornalistas como a grande obra inconclusa”. Em síntese, o livro de Bernardo Kucinski é bastante atual, corajoso e esclarecedor. Ele aborda vários aspectos do jornalismo – incluindo o papel “libertário” da internet, a ditadura do discurso neoliberal, a monopolização do setor, entre outros. Sua leitura serve a todos que queiram entender o atual estágio de manipulação da mídia. Mas ele também é útil aos profissionais do setor. Como alerta, “os jovens jornalistas de hoje sofrem muito mais do que sofríamos no passado do mal da censura interna, da restrição às liberdades de crítica e de criação. Trata-se de uma contradição profunda, porque eles compartilham os valores do neoliberalismo, tais como o sucesso pessoal, o individualismo, o espírito de competição e o relativo descaso com os problemas sociais. Mas sua aplicação pelos patrões como modo de controle das redações voltou-se contra o próprio jornalista”. - Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “As encruzilhadas do sindicalismo” (Editora Anita Garibaldi, 2ª edição).
https://www.alainet.org/pt/articulo/116525?language=es
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