Ritual mágico
09/04/2006
- Opinión
O teatro é um recursos privilegiado de formação de leitores. Ou melhor, de formação humana. Até porque, graças à representação no palco, permite ser lido por quem não é alfabetizado. Retrata a nossa natureza lúdica, essa multiplicidade de seres que nos povoam. Sou agora o escritor sisudo, que finge saber mais do que realmente conhece, mas sob o chuveiro esta manhã, ao escutar no rádio “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, dei asas aos sambista que me habita. Reside em mim uma multidão: o intelectual e o crente, o cartesiano e o insensato, o adulto e a criança. No palco revisto-me de um outro que não sou eu e, no entanto, eu é que lhe dou vida, dicção, movimento e emoção.
O teatro é um ritual transfigurador da realidade, espelho que nos devolve a nós mesmos. Sou Édipo e Creonte, também Jocasta, Electra e Medéia.
Teatro vem do grego theátron lugar onde se contempla. E contemplação não é sinônimo de observação. É uma experiência mistérica, endógena, em que me deixo invadir pelo objeto contemplado. O contemplativo é o místico, apaixonadamente habitado pela divindade. No teatro, são os personagens que despertam seus homônimos escondidos em minha subjetividade. Neles contemplo a mim mesmo. Meu lado trágico e meu lado cômico. O que trago de divino e de perverso.
Nossos arquétipos estão delineados nas grandes obras teatrais. Não foi em vão que Freud recorreu a elas para estruturar sua etiologia psíquica. No teatro importa o ser, o que não é tão acentuado no cinema e na telenovela. Por isso só no palco pode haver monólogo, reflexo desse nosso contínuo monólogo interior. Como exemplo de diversidade cultural propiciada pela dramaturgia, atenho-me à Grécia do século V, aos fundadores do teatro clássico: Sófocles, Ésquilo, Eurípides e Aristófanes.
De Ésquilo nos restaram “As suplicantes”, “Prometeu acorrentado”, “Os persas”. Foi quem inventou a tragédia. Arcaico e religioso, forneceu-nos a primeira luz do que seja a democracia. Encenada por volta de 468 a.C., “As suplicantes” mostra a população de Argos ou seja, a “demo” concedendo asilo (“kratos”, o poder de decidir) às Danaides, que haviam assassinado seus maridos na noite de núpcias. É ali que pela primeira vez os dois termos aparecem unidos. Já no fim do século V a.C. o substantivo definia o regime ateniense.
Sófocles acreditava no poder dos deuses e na predestinação. Seu principal personagem é o destino. Destaca-se com o maior trágico da antiguidade grega por seu “Édipo rei”, mais tarde completado pela peça “Édipo em Colona”. Vamos encontrá-lo na psicanálise, mas não há literatura criada do nada. Os primórdios de Édipo deitam raízes no Canto IV da “Ilíada” e no IX da ³Odisséia², obras de Homero, e na peça “Os sete contra Tebas”, de Ésquilo.
Por força do destino traçado pelos deuses, Édipo mata o pai e casa-se com a mãe. Mas é muito mais do que um mero triângulo conflitivo, hoje utilizado na telenovela para atrair atenção do público. Édipo abrange todos os campos da experiência humana: a relação do homem com o divino (o oráculo); o poder (a realeza) e a família. Ou seja, piedade, autonomia e afetividade.
Eurípides é o autor de “Electra”, (Ésquilo e Sófocles também escreveram sobre a lenda de Electra, que vinga a morte do pai instingando seu irmão Orestes a matar a mãe e o amante), e também de “Medeia” (atualizada em “Gota D¹Água”, de Chico Buarque), “Sísifo”, “As troianas” (libelo contra a guerra), “As bancantes”, entre outras peças.
Ao contrário de Sófocles, ele introduz a dúvida, convida-nos à crítica diante dos deuses, das autoridades, das supostas verdades geradas pela imposição. Feminista avant la lettre, realça as mulheres como seres fortes, dotados de coragem e ternura, ódio e paixão, ao contrário dos homens, debéis e covardes. Suas peças primam pelo retrato psicológico dos personagens e exaltam o amor e suas várias manifestações: apaixonado, conjugal, materno. Ifigênia abre mão da própria vida para favorecer a expedição à Tróia; Medéia vive intempestivamente suas paixões amorosas.
Aristófanes polemiza, introduz a sátira social, faz da arte uma arma de crítica política. Em “Os cavaleiros” desmoraliza os demagogos Cléon e Hipérbolo. Em “As rãs” mostra um concurso entre Ésquilo, Sófocles e Eurípides, os três grandes trágicos. Satiriza Eurípides e exalta Ésquilo. Em “As nuvens” critica os metafísicos e os sofistas, sem poupar seu amigo Sócrates. Ridiculariza a justiça ateniense em “As vespas”, e em “Lisístrata” a greve sexual das mulheres força atenienses e espartanos a fazerem um acordo de paz.
Houve um tempo em que a liberdade de expressão fazia-se arte, um ritual mágico muito acima do jogo rasteiro de querer apenas ridicularizar opiniões, costumes e pessoas.
- Frei Betto é escritor, autor de “A obra do Artista uma visão holística do Universo” (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/114824?language=es
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