Natal ou o reencantamento do olhar
26/12/2005
- Opinión
E mais uma vez celebrou-se o Natal. De novo as luzes se acenderam e as casas se enfeitaram preparando festas e ceias familiares. E mais uma vez também e principalmente corações ansiaram por presentes, sonharam com objetos, desejaram coisas. E mais uma vez o comércio calculou os índices, preparou estoques e shoppings para permanecer abertos na própria Noite Santa até bem tarde, quando já seria hora de cada um estar em sua casa celebrando a festa. Nossos olhos mais uma vez tiveram suas retinas disputadas pela propaganda, pela mídia, pelo comércio. Mais uma vez nosso olhar foi atraído irresistivelmente para o brilho fugaz dos artigos oferecidos à nossa ávida ânsia consumista e glutona, que precisa possuir, deglutir e tragar para sentir-se segura. Mais uma vez o presépio permaneceu a um canto da casa e a árvore foi o centro das atenções. E, sob a árvore, os embrulhos em papel vermelho, verde, dourado, com fitas e bolas, brilhando e ocupando todo o espaço e invadindo toda a capacidade de ver e sentir. Mais uma vez comemos e bebemos, nos impacientamos com o trânsito engarrafado, com as lojas cheias, com as infinitas confraternizações de cada dia e cada noite. Mais uma vez voltamos para casa cheios de embrulhos contendo coisas das quais não necessitamos. Porém, uma vez mais Tua vida derramou-se como a água que corre até os últimos espaços, onde se encontram pessoas e nomes que foram descendo na espiral da pobreza, da miséria, do abandono e da desgraça. Tua vida aconteceu ali onde não havia lugar nas hospedarias, em meio a um estábulo, na palha e sob o hálito quente dos animais. Para celebrá-la, apenas alguns pobres pastores com o olhar ainda virgem das atrações de uma sociedade que consome sem cessar e perdeu o sentido da gratuidade e da alegria. Uma vez ainda Tua vida caiu em terra boa, como a semente que se desfaz, recostada humilde e confiantemente no húmus fértil da terra e dos corpos que abrigam o mistério, oculta e esperançadamente, e o fazem eclodir em surpresa luminosa. Tua vida misturou-se a outras vidas e foste visto como um de tantos, descendo ao ventre da mulher, à história controvertida e à Lei tantas vezes inexplicável e opressora. Mais uma vez, como sempre acontece, Tu que és a Luz do mundo te precipitaste ao fundo da terra, ali onde moram os mais simples e cotidianos mistérios que mantêm em vida esta pobre humanidade e fazem girar esse violento mundo. Ali na obscuridade do presente, no silêncio onde se gesta o futuro, ali desceste da glória de que gozavas junto ao Pai desde toda a eternidade. Mais uma vez é Natal e podemos celebrar o mistério que nos salva. Porque Tua Divindade não se recusou a vir ao nosso encontro, encarnar-se no seio de nossa pobreza e oferecer-se gratuita e amorosamente ao nosso olhar contaminado por tantas falsas e fugazes luzes. Desta vez ainda aos nossos olhos ofuscados pelo brilho enganoso da festa comercial e da cultura consumista e materialista foi oferecida a chance de contemplar, purificados e gozosos, a Luz que ilumina todo homem e mulher que vêm a este mundo. E porque mais uma vez é Natal, e uma vez mais somos convidados a olhar para baixo e contemplar o mistério de Teu amor que se encarna em nossa pobreza, nosso olhar pode ser reencantado. Saturados de perder-se e dissipar-se em coisas que passam e não saciam, convida-nos a olhar para baixo, onde estás porque quiseste estar. É Natal e estás aí: criança recém-nascida e indefesa, exposta a todos os riscos. É Natal e somos convidados a olhar-Te e ver-Te com olhos novos, reencantados, redimidos. É Natal e em meio a tantas luzes e brilhos, nos ofereces apenas Tua Encarnação, Tua vida. E assim nos levas a olhar para baixo, onde estás, onde estarás para sempre. É Natal e em meio a tantos presentes inúteis que antes do próximo ano estarão esquecidos no fundo das gavetas estás Tu, único e verdadeiro presente que nos plenifica e reencanta. E graças a isso e por causa disso, podemos, apesar de tudo e sobretudo de nós mesmos, experimentar a paz e a alegria, que são frutos maduros da infinitude sem medida de Teu amor. É Natal e porque o Verbo de Deus se faz carne e vem habitar entre nós, podemos exclamar que nossos olhos viram a salvação. Maria Clara Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de "Um rosto para Deus?² (Editora Paulus), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
https://www.alainet.org/pt/articulo/113950?language=en
Del mismo autor
- Neto 114 14/08/2014
- Igreja profética em memória sombria 27/03/2014
- Sem sepultura 16/10/2013
- Papa Francisco: um pecador perdoado 26/09/2013
- Francisco e Gustavo: nova aurora para a teologia 22/09/2013
- La Moneda e as Torres Gêmeas: aniversário re-cordado 12/09/2013
- Gato e rato 08/09/2013
- Médicos cubanos: por que tanta gritaria? 29/08/2013
- A homilia do Papa em Aparecida e as três virtudes teologais 25/07/2013
- Realidade das ruas e euforia enganosa 26/06/2013