A conspiração dos cultivares transgênicos na agricultura
07/08/2005
- Opinión
As mesmas transnacionais que duram décadas condicionaram
a agricultura ao uso indiscriminado dos agrotóxicos
preparam-se para arrebatar do produtor agrícola um dos
últimos fatores do que lhe sobra de autonomia-a semente.
A genética moderna, ou seja, a biologia molecular,
constitui-se em uma das grandes aventuras do espírito
humano neste século, tais como a relatividade especial e
a geral, a física nuclear e de partículas elementares, à
deriva dos continentes. Infelizmente, neste campo, está
ocorrendo uma grave perversão. Querem hoje nos fazer crer
que a Ciência precisa de patentes para progredir.E assim
passou-se a patentear o que nunca se patenteava:seres
vivos, partes de seres vivos, processos vitais.
Desencadearam até uma corrida para patentear os genes de
todo o genoma humano.
O jovem Einstein, quando desenvolveu as geniais teorias
que revolucionaram a Física, ganhava a vida como
funcionário do departamento de patentes da Suíça, em
Zurique. Sabia, portanto, tudo sobre patentes. jamais lhe
ocorreu, no entanto, patentear suas idéias. Os próprios
Crick e Watson, que conjuntamente desvendaram a estrutura
helicoidal do DNA, do código genético, não tiveram a
presunção de requerer patente para sua descoberta.
Eles,como Einstein e tantos outros,se regozijaram,isto
sim, com o Prêmio Nobel. O maior inventor da Revolução
Industrial, Thomas Edison, que chegou a patentear
centenas de invenções, nunca se disse cientista. Ele se
dizia inventor. Aquele cirurgião brasileiro que descobriu
que, em certos casos, melhor que transplantar coração é
diminuí-Io, retirando uma fatia, nada patenteou, está
ensinando sua técnica a centenas de cirurgiões do mundo
inteiro. Patentes só se aplicam e se justificam - por
tempo limitado - para invenções. Na ciência descobrimos
os mistérios da natureza. Descoberta não se patenteia. Os
genes existem há mais de três bilhões de anos; os
processos de transferências de genes de um ser a outro,
transportados por bactérias ou vírus, também. Ninguém tem
o direito de se avocar posse da Vida, de partes dela ou
de processos vitais.
E patentes existem para trancar, não para desenvolver. O
que hoje acontece no que inicialmente se chamava - ainda
com certa honestidade-engenharia genética e que agora
preferem chamar de life sciences (ciências da vida), na
área da agricultura se constitui na culminação de um
processo histórico de desapropriação do agricultor. Não é
por nada que as grandes transnacionais dos agrotóxicos
nos últimos anos compraram, ao redor do mundo, a quase
totalidade das empresas independentes de sementes, e
também não é por nada que a Monsanto está processando
milhares de agricultores norte-americanos, tendo já
conseguido condenar à marginalização algumas centenas
deles. As mesmas transnacionais que durante décadas
condicionaram a agricultura ao uso indiscriminado dos
agrotóxicos preparam-se para arrebatar do produtor
agrícola um dos últimos fatores do que lhe sobra de
autonomia - a semente. Preparam-se para um monopólio
global. O alvo que a Monsanto e outras transnacionais
perseguem é chegar a banir todo uso de semente própria
por parte do agricultor.
Em nome de um aumento fictício de produtividade, querem
nos impor "pacotes", como o da soja Roundup-ready. A soja
transgênica patenteada que agora está sendo introduzida
no Estado, resistente ao herbicida da própria Monsanto,
obriga o agricultor à "compra casada" - semente mais
herbicida -, mesmo que não haja necessidade para tal.
Para um futuro próximo já estão preparando algo muito
pior - o gene terminator, um gene que faz com que a
semente colhida pelo agricultor se "suicide" ao ser
semeada, tornando desnecessária a patente (bem pior,
portanto, do que no caso do milho híbrido, o qual não
mantém suas qualidades ao ser ressemeado). Não contentes
com isso,já está preparada nova conspiração. Uma vez que
o agricultor terá que sempre comprar semente nova, a
empresa teria que produzi-Ia, fazer plantios próprios ou
pagar para plantar. Já acharam maneira de fazer o
agricultor arcar com este trabalho e ainda pagar por ele.
A empresa vende ao agricultor uma droga especial que
devolve à semente por ele colhida a capacidade de
germinar. Que lindo: o agricultor paga mais caro pela
semente suicida, depois paga para que ela não se suicide.
Solene cinismo!
E o que tem isso a ver com resolver o problema da fome no
mundo? Nada. Tem a ver apenas, justamente, com criação de
estruturas de poder, de dependência! Se na Índia centenas
de milhares de agricultores estão fazendo demonstrações
contra a introdução dos transgênicos - pessoalmente, em
Bangalore, no ano de 1993, assisti a uma demonstração de
meio milhão de agricultores -, é porque sabem que este
tipo de tecnologia se dirige contra eles, só favorece o
agribusiness (o complexo agro-industrial; nem tanto o
grande agricultor). A chamada Revolução Verde, pela qual
se introduziu o uso maciço de adubos sintéticos e
agrotóxicos na agricultura, marginalizou centenas de
milhões de camponeses no mundo - um custo social que
nunca é contabilizado quando se fala das "vantagens" da
agricultura moderna.
O que a grande tecnocracia pretende, e para isso usa os
mecanismos de globalização, o Fundo Monetário
Internacional e a Organização Mundial do Comércio, é
deixar sobreviver apenas as grandes mono culturas
comerciais que dependem totalmente de seus insumos, cada
vez mais caros, e que têm que entregar seus produtos a
preços sempre mais manipulados. Quanto aos pequenos, só
deixarão sobreviver aqueles que se atrelarem diretamente
à indústria (contract farming), como no cultivo do fumo,
na fruticultura e plantação de legumes para fábricas de
conservas, nos campos de concentração de aves, nas
fábricas de ovos e nos calabouços de porcos. O produtor
fica com a ilusão de ser empresário autônomo, mas não
passa de operário sem carteira, que tem que envolver toda
a família como mão-de-obra gratuita, sem horário de
trabalho definido, sem domingo, feriado ou férias, e sem
previdência social. É de estranhar que o INSS não se
ocupe desta burla.
Se permitirmos o primeiro passo desta conspiração, que se
inicia agora, com a introdução forçada dos cultivares
transgênicos, os passos subseqüentes serão automáticos -
crédito bancário sópara sementes "certificadas"; mais
adiante, proibição de toda semente ainda livre. Na
Alemanha jáestão punindo agricultores que apenas trocaram
sementes com o vizinho. Em comunicação interna de uma das
transnacionais, ela conta como estáprocessando milhares
de agricultores norte-americanos e punindo centenas deles
por reproduzirem sementes transgênicas sem permissão. Os
castigos são a destruição total da lavoura, mais multas
de dezenas de milhares de dólares. O agricultor acaba
entregando a propriedade ao banco. Nestes documentos, a
expressão seed saver (eco nomizador de semente) é usada
em sentido profundamente pejorativo.
O alvo daquilo que fazem as transnacionais na manipulação
genética de cultivares agrícolas também não tem nada a
ver com promoção da Ciência. É apenas um passo a mais na
estruturação de infra-estruturas tecno-ditatoriais
globais. Infelizmente, o governo federal no Brasil
submete-se docilmemte aos interesses imediatistas do
grande poder tecnocrático sem pátria. O Ministro da Saúde
chegou a multiplicar por cem o limite permitido de
resíduo de glifosato na soja, para acomodar os interesses
dos donos da soja Roundup-Ready...!!!
Por favor, jovens agrônomos, pesquisadores,
extensionistas, estudantes de agronomia: observem
atentamente o que está acontecendo, conscientizem-se de
sua obrigação moral para com o agricultor, com o
consumidor, com as gerações futuras. Não se deixem
atrelar no carro desta insidiosa conspiração. Procurem
aprofundar-se na Ciência, procurem entender o que
realmente já sabemos do grande mistério que é o processo
vital. Verão que, em genética molecular, ainda sabemos
muito pouco. Mal sabemos como a seqüência dos
nucleótideos, em seu alfabeto de quatro letras, ao longo
dos genes alinhados no cromossoma, codifica a seqüência
de aminoácidos na síntese das proteínas, e praticamente
nada sabemos sobre como está predeterminado o
estruturamento tridimensional das proteínas. Não sabemos
se este processo está codificado no DNA ou se existe
outro mecanismo misterioso que faz com que, ao
estruturar-se, a molécula da proteína se enrole de uma
determinada maneira e não de outra, entre milhares ou
milhões de maneiras possíveis. Entre o genoma do
chimpanzé e o nosso, num total de uns cem mil genes,
apenas um e meio por cento são diferentes. Mas que
diferença! Alguns vermes primitivos (nematóides) chegam a
ter setenta por cento dos genes que nós também temos.
Certamente, isto não os faz setenta por cento humanos...
Menciono estes fatos para sublinhar a profundidade de
nossa ignorãncia. Onde ficam a reverência, o respeito, a
humildade? Onde fica o princípio da precaução?
A manipulação que hoje se faz para obter cultivares que
permitem grandes faturamentos a transnacionais
dificilmente mereceria ser chamada de Ciência. É trabalho
empírico, trabalho de elefante em casa de vidro, como
eram os trabalhos que as mesmas empresas, na época ainda
menores, faziam na procura de sempre novos venenos para
seus agrotóxicos. Não sabem hoje, como não sabiam então,
quantos estragos estão causando.
Claro que existe campo para muita pesquisa profunda em
biotecnologia. Muita coisa muito boa poderá surgir de
pesquisa abnegada, realmente científica. Quando um
caranguejo ou uma salamandra perdem um membro, ele
recresce. As células de nosso corpo têm a informação
necessária para fazer o mesmo. Quem sabe, aprenderemos a
ativá-Ia. Se aprendermos a fazer recrescer ou que voltem
a emendar-se nervos decepados, que alegria para
paraplégicos! Só que para isso não necessitamos de
patentes.
Nada, portanto, contra a biotecnologia. Mas sua
orientação não pode ser apenas comercial. Terá de ser
realmente científica e humana.
JOSÉ LUTZENBERGER é o mais destacado ambientalista que o
Brasil já conheceu. Nascido em Porto Alegre em dezembro
de 1926, Lutzenberger estudou Agronomia e poucos anos
depois de formado tornou-se executivo graduado de uma
multinacional européia da agroquímica, ocupando cargos de
chefia da empresa nas sedes da Venezuela, de onde
comandava operações no norte da América do Sul e Caribe,
e depois no Marrocos, para operações no norte da África.
lnconformado com a enxurrada química na agricultura, pelo
advento dos modernos agrotóxicos, demitiu-se da empresa e
voltou para sua cidade natal, buscando atuação
profissional coerente com sua formação de naturalista e
ecólogo, aperfeiçoada nos anos em que atuou no exterior.
Em Porto Alegre passou a liderar a Associação Gaúcha de
Proteção ao Ambiente Natural, a Agapan, em 1971, e a
partir de então viria a tornar-se mais conhecido como
Lutz, um ativista de tempo integral que mudou a face da
luta ecologista no Brasil e no mundo. .
Primeiro brasileiro a conquistar o "Livelihood Award" da
academia sueca que concede o "Nobel Alternativo",
Lutzenberger foi durante dois anos ministro do Meio
Ambiente, e nessa condição participou da organização da
Conferência Mundial para o Meio Ambiente da ONU no Rio de
Janeiro, a famosa Eco-92. Poliglota, fluente em cinco
idiomas, Lutz tornou-se conferencista internacional,
interlocutor obrigatório de centenas de organizações não-
governamentais, universidades, instituições de pesquisa e
governos de todo o planeta. Mas nunca mais abandonou o
Brasil, onde instituiu a Fundação Gaia, para desenvolver
sua concepção de cultura ecológica e constituir-se em
centro de educação para a vida sustentável.
Excêntrico e libertário como sempre, Lutz morreu aos 75
anos, no mesmo bairro Bonfim em que nasceu. Foi
restituído à terra no Rincão Gaia, no município de
Pantano Grande, e sobre sua sepultura, plantado a seu
pedido, cresce um umbua árvore-símbolo do Rio Grande do
Sul.
Porto alegre, junho 2000
https://www.alainet.org/pt/articulo/112644?language=es
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