Fome Zero ou anorexia dez?
27/12/2004
- Opinión
Numa falha de comunicação, o IBGE aprontou uma grande confusão.
Ao divulgar a pesquisa sobre a obesidade no Brasil, não
esclareceu que os dados colhidos excluem as crianças e os
jovens, e nem significam que gordura é sinônimo de barriga
cheia. Pelo contrário. Desde o início do Fome Zero enfatizei,
em muitas palestras e entrevistas que, no Brasil, a fome é
gorda.
Isso mesmo. Ao contrário da África, onde a fome se encarna no
corpo esquálido, pele e osso, exibido nas fotos de Sebastião
Salgado, em nosso país a ausência de nutrientes essenciais e a
falta de higiene (água contaminada, carência de saneamento
básico etc.) provocam distúrbios glandulares e resultam em
obesidade, hipertensão, barrigas estufadas de vermes e outros
sintomas tão freqüentes nas áreas habitadas pela população de
baixa renda.
São também do IBGE os dados propalados pelo Fome Zero: o
de que há 11,4 milhões de famílias vivendo com renda abaixo da
linha da pobreza ou, dito de outro modo, 40% da população
brasileira vivem com renda per capita inferior a R$ 5,00 por
dia. É possível alguém ter alimentação saudável com tão pouco
recurso? No Brasil há fome, sim. E muita. Não tanto pela
falta completa de alimentos, mas pelo carência de alternativas
ou variedades nutricionais.
E, sobretudo, pela falta de renda que permita a milhões de
pessoas o acesso ao mercado de consumo da cesta básica.
Milhares de famílias passam o ano à base de macaxeira. Com
freqüência a TV mostra calangos e cactus servindo de alimentos
para os famintos do semi-árido.
A obesidade constitui também uma preocupação do Fome Zero,
que inclui, entre seu vasto leque de programas, a educação
nutricional. Comer demais ou abraçar dietas que conduzem à
anorexia reflete a falta de informação sobre a necessidade de
uma alimentação nutritiva. Sobretudo nas escolas, onde
crianças e jovens se empanturram nas cantinas ou lanchonetes
de excesso de açúcares e de gordura saturada. A mesma
porcariada que o camelô vende na esquina se consome dentro da
escola. Não seria o caso de cada instituição de ensino
desenvolver um programa de hortas para ajudar seus alunos a
quebrarem preconceitos em relação ao consumo de verduras e
legumes? O Fome Zero não é uma política pública que
visa a apenas combater a fome. Seu objetivo é estrutural:
promover a inclusão social de milhões de famílias com renda
per capita inferior a R$ 100,00 mensais. Num país em que os
10% mais ricos da população concentram em suas mãos 45,7% da
riqueza nacional, enquanto os 50% mais pobres são obrigados a
dividir entre si 13,5% da renda nacional (dados do IBGE),
ficam evidente, primeiro, o tamanho de nossa desigualdade
social e, segundo, a urgência e pertinência do Fome Zero como
prioridade do governo Lula.
O programa Bolsa Família, que se destaca entre tantos que
compõem o Fome Zero, chega neste mês a 6,5 milhões de famílias
beneficiárias. Ainda que aqui e ali haja um ou outro caso de
abuso ou corrupção, que o governo tem punido com rigor, o
alcance positivo tem contribuído para reduzir a desnutrição e
a mortalidade infantis, aumentar os postos de trabalho em
áreas carentes (graças à circulação de riquezas, trazidas pelo
cartão) e deter o fluxo migratório rumo às grandes cidades.
Sobretudo, permite aos beneficiários consumo adequado de
alimentos e consciência de que são cidadãos e têm direito às
políticas públicas. Recurso público destinado aos mais pobres
não é gasto, é investimento.
Repito: os dados do IBGE abarcam apenas a parcela adulta
de nossa população. Nosso índice de mortalidade infantil beira
30 óbitos em cada 1.000 nascidos vivos. Um dado alarmante,
cuja principal causa é a fome, ainda que se cubra com
eufemismos tipo desnutrição, diarréia, febre alta etc. São as
crianças as principais vítimas da falta de alimentação em
quantidade e qualidade suficientes.
Creio que, nesses tempos natalinos, o IBGE confundiu o
magro Jesus da manjedoura com o gordo Papai Noel do consumismo.
E se esqueceu de lembrar que a gordura em excesso, assim como
a fome, reduz o nosso tempo de vida.
* Frei Betto é escritor, autor da biografia de Jesus ³Entre
todos os homens² (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/111134?language=en
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