Uma raça multiforme e multicor
26/11/2004
- Opinión
No dia 20 de novembro celebrou-se a festa de Zumbi dos Palmares, herói negro do tempo da escravidão, criador do célebre quilombo dos Palmares, foco principal e fundamental da resistência negra no Brasil. Neste dia, os negros celebrarão sua negritude e proclamarão bem alto o orgulho que têm da cor de sua pele e da África mãe que os gerou e configurou tal como são, com seus cabelos crespos, sua pele escura, sua carnadura firme e seu incomparável talento para a música e a dança. A festa de Zumbi não é uma católica nem cristã. Por que, então, escrever sobre ela? O motivo é que nos parece que no fundo desta festa e das razões que a fazem existir está algo que interpela profundamente toda consciência humana e portanto, também e não menos, a consciência cristã. No Brasil de modo especial, onde parece que vivemos ainda a ilusão de sermos um país branco e de brancos, feito apenas ou majoritariamente de europeus, essa reflexão se impõe talvez mais que em outras partes do globo. Pensar que o Brasil é branco é uma perversa e diabólica ilusão. Nenhum país latino-americano, aliás, o é. E com o processo de globalização que vivemos, onde as migrações vão acontecendo a cada dia em todas as direções, transformando os países do primeiro mundo em sucursais do antes chamado terceiro mundo, nenhum país do mundo realmente o é. As grandes cidades européias e norte-americanas têm hoje suas ruas e praças cheias de africanos que lá vão estudar ou trabalhar e vivem a moderna forma da escravidão que a modernidade perversamente lhes legou. Dentro deste quadro continental e mundial, o Brasil tem particularidades muito especiais. Além da matriz européia e indígena, temos em nossa população um componente importante de africanidade que se desdobra em vastos e pluriformes matizes de mestiçagem, dando a nossa paisagem populacional os mais variados tons e semi-tons. No entanto, a história do Brasil em relação aos negros não é das mais transparentes e positivas. Os profetas e poetas estão aí para não nos deixar mentir. Foi assim que a voz inspirada e indignada do grande Castro Alves ressoou em memorável poema ³O Navio Negreiro², onde interpelava toda a nação brasileira, dizendo, diante dos horrores que seu olhar presenciava na tragédia africana acontecida nos navios que traziam escravos da África até a nova colônia: ³Mas que povo é este que a bandeira empresta Para cobrir tanta infâmia e covardia?² E ao perceber que se tratava do pendão de sua própria pátria, tão amada, o choque é tal que sua musa silencia: ³Silêncio, musa!² Tomado pela indignação, o poeta convoca todos os grandes heróis do continente, a fim de esconjurar a diabólica e perversa crueldade praticada contra os escravos africanos. Exorta-os a bloquear entradas e saídas de ares e mares, a fim de que aquele espetáculo não possa mais se perpetrar. ³Mas é infâmia demais! Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! Andrada, arranca esse pendão dos ares! Colombo, fecha a porta dos teus mares!² Tanto tempo depois, a musa dos poetas continua calada e os heróis do então chamado Novo Mundo encontram-se bastante desmistificados pelos estudos históricos contemporâneos. Os novos heróis, que crêem que outro mundo é possível, seguem sendo vigorosamente interpelados pela situação de discriminação na qual ainda vivem as raças diferentes da branca no mundo inteiro e em nosso país muito particularmente. A festa de Zumbi dos Palmares é ocasião propícia para examinar nossa consciência e nosso agir em relação aos descendentes de africanos que são parte de nossa população e cujo sangue corre em diferente proporção nas veias da maioria de nós todos. Zumbi não é um santo católico. Nem é uma figura religiosa de destaque. Mas para o povo negro é um poderoso símbolo de luta e resistência, uma lenda viva que anima a raça negra em sua longa caminhada por uma consciência mais profunda de seus direitos. A negra Senhora Aparecida nas águas do Paraíba nos inspire a nós, cristãos e católicos, a transfigurar sempre mais nosso olhar no sentido de perceber aqueles que são diferentes e amar sua diferença. Enquanto o povo negro celebra sua festa e esperanças , é mais que tempo de que todos, de todas as raças, etnias, religiões e culturas, celebremos com alegria o fato de que na verdade só existe uma raça, multiforme, multicor: a raça humana. wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape * Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio
https://www.alainet.org/pt/articulo/110975?language=es
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