A revolução segundo Quijano
24/07/2004
- Opinión
Sociólogo peruano marca o Fórum Social das Américas, ao dizer
que não há alternativas sem ultrapassar o capitalismo. Mas
propõe um novo olhar sobre a transformação social
"Sei que, no universo do Fórum Social Mundial, há quem julgue
possível democratizar o capitalismo. Devo ser sincero. Para mim,
a reinvenção da democracia está agora associada, em definitivo,
à revolução". Voz firme aos mais de 70 anos, cabelos vastos e
quase inteiramente negros, rosto anguloso de índio, o peruano
Anibal Quijano instigou o Fórum Social das Américas desde a
manhã de 25 de julho, quando começavam, ainda mornos, os
primeiros seminários e oficinas. A que revolução ele se refere,
ao falar a mais de duzentas pessoas reunidas para uma nova série
de debates da Agenda Pós-neoliberal, organizada por Ibase e
Fundação Rosa Luxemburgo?(1)
A resposta não é simples. Militante marxista nos anos 70 e 80,
conhecido à mesma época pela profundidade de seus estudos
sociológicos, Quijano assumiu, após o fracasso do socialismo
soviético, uma postura original. Conservou a convicção de que as
sociedades são marcadas por conflitos, e avançam por meio de
rupturas com o passado. Não crê, ao contrário de teóricos como
John Holloway, que o poder seja algo a que se deve renunciar.
Mas aprofundou sua crítica às concepções que viam na "tomada" do
Estado a chave para a construção de uma nova sociedade.
Inspirado pelo ascenso do movimento indígena na América Latina,
passou a volorizar ainda mais instituições como a comunidade, e
práticas como a partilha e a reciprocidade. Parece enxergar
nelas algo que traz em si sementes de um mundo pós-capitalista.
Radicalizou sua oposição à visão eurocêntrica de mundo, e sua
percepção de que mesmo o marxismo foi muito influenciado por
ela. A partir desta crítica, rediscute alguns conceitos que
ficaram associados à tradição marxista do século XX: a
predominância dos fenômenos econômicos na definição dos rumos da
sociedade, ou o sentido unilateral da História, por exemplo.
Uma análise incomum sobre o capitalismo
A exposição feita por Quijano em 25 de julho pode ser dividida
em duas partes. A primeira é uma análise incomum sobre o
capitalismo e seu esgotamento. Quijano vê nesse sistema um
"padrão de poder", mais que um "modo de produção" (leia boxe).
Situa seu início na colonização da América, não na Revolução
Industrial. E o associa a algo que considera inédito na
trajetória humana: a aparição das teorias racistas, que procuram
justificar a dominação com base na suposta superioridade
biológica de certos povos sobre os outros.
Sob tal padrão de poder, as diferenças entre as classes não
cessam de crescer. Em conseqüência, sustenta o sociólogo, a
democracia será sempre limitada e precária. Ela procura
"estabelecer igualdade jurídica e política entre seres desiguais
em todas as outras esferas de sua vida social". Mas sequer esta
igualdade formal existe, fora do centro do sistema.
Quijano alerta, aqui, para a contradição que marca, desde o
século XIX, a América Latina. As nações tornam-se independentes,
mas as sociedades permanecem coloniais. A nódoa do racismo se
mantém. Mesmo depois de extinta a escravidão, as maiorias
negras, índias e mestiças permanecerão durante décadas
excluídas, na prática, da cidadania. Poucas e fugazes são as
exceções: o México, enquanto a revolução camponesa de Zapata e
Pancho Villa e a reforma agrária de Cárdenas têm fôlego; o
Uruguai; o Chile, após o "branqueamento" provocado pela
dizimação dos índígenas.
Da curta primavera à reconcentração brutal
Entre as décadas de 1930 e 80, prossegue o sociólogo, há uma
reversão parcial deste fenômeno. Um conjunto de movimentos
políticos, que tiram proveito de uma conjuntura internacional
favorável, permite que as massas populares conquistem direitos.
A alegria dura pouco. A curta primavera de cidadania será
encerrado pelo início da globalização neoliberal.
Quijano pinta o fenômeno em cores fortes. Para ele, trata-se do
cúmulo do processo iniciado com a conquista da América; de uma
reconcentração brutal do poder capitalista, com conseqüências
dramáticas na política, na produção de riquezas e nas relações
entre os Estados. Agora, a democracia está sitiada até mesmo no
centro do sistema. Os EUA caminham para a "fascistização":
restrição crescente das liberdades políticas, vigilância
policial e eletrônica sobre os cidadãos. A exploração do
trabalho transforma-se em "genocídio estrutural". O aumento do
desemprego já não é um acidente, mas uma tendência natural do
sistema. O assalariamento cede terreno, em toda parte, à
precarização, informalização, subcontratação de mão de obra – ou
mesmo ao escravismo e à servidão. Na periferia os Estados
nacionais transformam-se, salvo notáveis exceções, em "correias
de transmissão" dos centros de poder. A agenda dos governantes
já não se orienta sequer pela cópia do padrão de
"desenvolvimento" importado dos países ricos. Eles agora
submetem-se a metas diretamente ligadas à rapinagem de seus
países, como privatização, ajustes estruturais e abertura
comercial. O cenário conduz, claramente, à recolonização.
Uma chance ou uma responsabilidade?
Mas um elemento está fora deste script, e tem relação direta com
o Fórum Social Mundial.A partir do final da década, opina
Quijano, esta globalização enfrenta resistências. Elas nascem na
Ásia, como resposta à crise financeira de 1997. Provocam a queda
das ditaduras militares da Coréia do Sul e da Indonésia, duas
estacas do poder norte-americano na região. Alastram-se para os
países centrais em 99, com os protestos de Seattle. Reproduzem-
se numa seqüência impressionante de manifestações anti-
capitalistas, cujo ápice são, até o momento, as grandes marchas
contra a invasão do Iraque, realizadas em março de 2003. Chegam
em seguida à América Latina, onde a insatisfação popular
derruba, por meio de eleições ou de protestos populares, ao
menos seis governos identificados com o neoliberalismo: os da
Venezuela, Equador, Brasil, Peru, Argentina e Bolívia.
"A fase das derrotas e da resistência está no fim", comemora o
velho sociólogo. Vão ficando para trás "os tempos em que o
debate sobre a revolução era tratado como firula intelectual,
tão abstrata como as dissertações sobre o deus Órus". A
oportunidade aberta significa, ao mesmo tempo, novo desafio. É
preciso afirmar uma alternativa. Como enfrentar o "padrão de
poder" capitalista? E que propor em substituição a ele?
Neste ponto, começa a aparecer com mais nitidez a idéia de
revolução a que Quijano se refere. Ele parte da crítica ao
"socialismo real" -- uma experiência que considera "centralista,
autoritária e despótica". Também nega a possibilidade de "tomar
o poder de assalto". Enxerga nela traços tanto de estatismo
quanto de militarismo. Pergunta: "Temos alguma chance de
derrotar o capitalismo por meios militares"?
Onde Quijano torna-se mais vago
A resposta é óbvia. Mas qual a saída? A partir daqui, o
professor torna-se visivelmente mais vago. No terreno dos
princípios, afirma que criar um novo modo de produção do
conhecimento é tão decisivo quanto reorganizar a produção de
riquezas. Parece sugerir que não será possível vencer o
capitalismo sem superar a visão de mundo eurocêntrica. Numa
entrevista recente, lamentou a transformação do materialismo
histórico numa "vulgata marxista [que era] um estranho híbrido
entre teoria do conhecimento de direita e ideologia de
esquerda".
De que forma isso se traduz em experiência transformadora
concreta? Em sua intervenção inicial, Quijano referiu-se
essencialmente às experiências comunitárias, nas quais pratica-
se a reciprocidade: o conjunto da comunidade participa da
produção de riquezas, e controla o destino dado a elas. O
sociólogo não considerou irrelevante a disputa institucional.
"Em favor dos direitos de cidadania, precisamos disputar o
Estado passo a passo", disse ele. Sustentou, porém, que "este
não é mais o caminho principal para construir outra sociedade".
Quando a palavra foi aberta ao público, ficou claro que parte
dos presentes julgava a proposta insuficiente. Num mundo em que
a produção e a repartição de riquezas são decididas por
instituições e mecanismos cada vez mais globalizados, que tipo
de revolução poderá partir das comunidades? E como dialogar, por
exemplo, com as populações empobrecidas dos grandes centros
urbanos, onde a heterogenidade social e étnica, a violência e a
pressão quotidiana pela sobrevivência, tornam quase impossível a
experiência comunitária?
Potencialidade e lacunas do movimento indígena
Em sua intervenção final, Quijano foi sensível a estes
questionamentos – ao menos no plano da teoria. Frisou que, em
sua opinião, uma nova sociedade supõe a "redistribuição global
do controle sobre a riqueza, a autoridade, o imaginário e o
sexo". Foi aos exemplos. Sugeriu que as novas tecnologias
elevaram a produtividade a tal ponto que as sociedades deveriam
incluir, em seu programa de transformações, a exigência de que
os bens e serviços necessários para garantir vida digna a todos
sejam distribuídos gratuitamente. Deixou claro que vê a
valorização da comunidade como ponto de partida para discutir
novas relações sociais – não como algo que se esgota em si
mesmo.
Sua fala foi emblemática das potencialidades que o ressurgimento
indígena reúne, mas também se suas lacunas. A experiência do
Equador deixa claro que a ausência de um programa concreto de
transformação social, em especial no que se refere à
distribuição de riquezas, pode conduzir o próprio movimento
indígena a uma encruzilhada.
(1) Com participação do ATTAC-Brasil e de Action Aid.
http://www.portoalegre2003.org/publique/cgi/public/cgilua.exe/we
b/templates/htm/1P4OP/view.htm?infoid=8887&user=reader&editionse
ctionid=243
https://www.alainet.org/pt/articulo/110333?language=es
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