FSM: Economia Solidaria

05/02/2004
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IV FÓRUM SOCIAL MUNDIAL PAINEL "POR UMA ECONOMIA DO POVO: REALIDADES E ESTRATÉGIAS DO LOCAL AO GLOBAL" – Mumbai, Índia, 20/1/2004 ECONOMIA SOLIDÁRIA E O RENASCIMENTO DE UMA SOCIEDADE HUMANA MATRÍSTICA[1] Marcos Arruda[2] Na realidade, Vivemos hoje Nossos sonhos de ontem. E, vivendo estes sonhos, Sonhamos outra vez. Venho a este Painel compartilhar com vocês a convicção de milhões dos que trabalhamos por uma economia baseada na cooperação e na solidariedade mundo afora, que, A MENOS QUE TORNEMOS POSSÍVEL UMA OUTRA ECONOMIA, OUTRO MUNDO NÃO SERÁ POSSÍVEL. Vou tratar de quatro questões. (1) Que fatores contribuíram para o nascimento e o crescimento de uma Economia fundada na solidariedade? (2) Que visão e objetivos permeiam a idéia e a prática de uma Economia Solidária? (3) Que estratégia é possível de visualizar para o desenvolvimento de uma Economia Solidária em escala global? E (4), com que desafios estamos nos confrontando ao realizarmos esta construção na América Latina? 1. QUE FATORES CONTRIBUÍRAM PARA O NASCIMENTO E O CRESCIMENTO DE UMA ECONOMIA FUNDADA NA SOLIDARIEDADE? Fatores ontológicos e históricos estão na origem do movimento da Economia Solidária (ES). O fator ontológico é o profundo desejo de felicidade, que não pode existir sem auto-respeito, respeito mútuo e laços de amor entre as pessoas. Os fatores históricos incluem dois fracassos. O primeiro é o fracasso do Sistema do Capital de prover a base material para uma existência digna como direito de todos os indivíduos e sociedades. O outro é o fracasso do Estatismo, e de todas as formas de "comunismo" hierárquico, de prover uma alternativa eficaz e viável ao Sistema do Capital. Falemos brevemente de cada um deles. O Sistema global do Capital de atualmente está configurado da seguinte maneira: * O capital é o sujeito, os trabalhadores são o objeto. * A competição, a dominação e a submissão são as formas dominantes de relação. * A apropriação privada é a emoção e a matriz da ação. Os resultados estruturais são a subordinação, a desigualdade, o desemprego e a exclusão. * O Estado tem o papel de garantir a "liberdade" do mercado e o capital privado como sujeito legítimo, seja por manipulação ideológica, seja por coerção. * Vigora a democracia virtual, não a real, dado que está reduzida à prática eleitoral com vistas à conquista e à perpetuação do "poder político". * A matriz cultural é que aqueles que têm são os líderes legítimos. Numa palavra, uma cultura do ter e de extremo individualismo. O Estatismo é assim configurado: * O Estado e o Partido são os sujeitos, a sociedade civil é o objeto. * A regra é a centralização da propriedade e do controle dos bens produtivos, do poder de decisão, do planejamento e da implementação da atividade econômica. O resultado é a burocratização da vida em sociedade. * O Estado é o único proprietário e controlador; é o agente patriarcal e hierárquico que garante a obediência civil através da coerção. * A emoção que dá origem a estas relações é o desejo de manter e assegurar o controle dos privilégios apropriados. * Vigora a democracia virtual, não a real, pois a classe burocrática assegura uma divisão hierárquica das atividades humanas e a estabilidade dos privilégios, com ou sem o uso da força. * A matriz cultural é que os que estão no Estado e o Partido de fato são o Estado e o Partido e, portanto, têm o direito de tomar as decisões pelas massas. Numa palavra, é a cultura do aparente coletivismo mascarando a hierarquia e o controle, o pensamento único, a dominação e a submissão. 2. QUE VISÃO E OBJETIVOS PERMEIAM A IDÉIA E A PRÁTICA DE UMA ECONOMIA SOLIDÁRIA? A era do Neoliberalismo está pesada de contradições. A alienação maciça em escala planetária, o desemprego estrutural, a profunda desigualdade e opressão provocadas pelo grande capital têm sido confrontadas por um movimento social sempre mais vigoroso, que começou como antiglobalização (crítica, denúncia, pressão por regulações, reformas e políticas públicas democráticas) e desdobrou- se num movimento alterglobalização, cuja palavra de ordem é a mesma do Fórum Social Mundial: outro mundo é possível, outra globalização é possível! Neste clima adverso, vemos emergir diversas formas de Economia Popular como uma alternativa ao desemprego e à exclusão, voltada para a mera subsistência através de um emprego e alguma renda. Mas vemos também emergirem diversas formas de Economia Solidária como uma nova proposta de organizar a economia e a sociedade em torno da convicção de que Outra Socioeconomia Global é possível, outro Ser Humano é possível! Visa a superação da alienação por meio do autodesenvolvimento holístico, individual e coletivo. Examinemos mais atentamente a visão de uma Economia Solidária. Para alguns ela é apenas um meio para compensar o desemprego e a exclusão gerados pela economia centrada no lucro. Para um número crescente de ativistas, de pensadores e de políticos, porém, ela é também a base para uma nova forma de organização da vida econômica, da escala local à global: é a atividade econômica organizada para servir ao seu objetivo maior, que é o autodesenvolvimento pessoal e coletivo seguro e sustentável. Isto implica a partilha da satisfação das necessidades e desejos e a co-gestão das casas em que o povo habita em comum – o lar, o bairro, o município, o ecossistema, o país, o planeta. A Economia Solidária, em suma, é uma forma ética, recíproca e cooperativa de consumir, produzir, intercambiar, financiar, comunicar, educar, desenvolver-se que promove um novo modo de pensar e de viver. Busca configurar-se da seguinte maneira: * A sociedade civil, especialmente o mundo do trabalho, se empoderam para ser os sujeitos da sua vida e do seu próprio desenvolvimento. O Estado, o capital, o desenvolvimento econômico e tecnológico são concebidos como meios para viabilizar o desenvolvimento humano e social. * A colaboração solidária é a forma predominante de relação social. * A partilha e a co-participação na produção, distribuição e consumo são a emoção e a matriz da ação. * O Estado democrático é um projeto comum, cujo papel é de promover um sistema de convivialidade baseado na cooperação, respeito mútuo e pleno desenvolvimento de cada uma e de todas as cidadãs, cidadãos e comunidades. * A democracia é realizada como uma construção de um sistema humano e social, um espaço socioeconômico, mental e psíquico de partilha, de respeito mútuo, de cooperação e de co-participação. * A matriz cultural é que cada um e todos que trabalham – o indivíduo social - são os legítimos líderes e, portanto, compartilham o poder e a responsabilidade pela tomada das decisões. Numa palavra, é uma cultura do individualismo social ou do personalismo coletivo, ou do socialismo individual. 3. QUE ESTRATÉGIA É POSSÍVEL VISUALIZAR PARA O DESENVOLVIMENTO DE UMA ECONOMIA SOLIDÁRIA A ESCALA GLOBAL? Visualizo três momentos do desenvolvimento de uma Economia Solidária. O primeiro momento é o de expansão da Socioeconomia Solidária em ambiente nacional e global desfavorável – Empresas e cooperativas solidárias, sob a atual hegemonia do neoliberalismo, desenvolvem uma estratégia em três frentes: (1) competem no mercado capitalista, procurando ao mesmo tempo superar o modo patriarcal de relação, baseado no poder como competição, dominação e submissão; (2) desenvolvem redes, cadeias produtivas e mercados de colaboração solidária nos quais a cooperação e a solidariedade possam ser sempre mais plenamente praticadas, e (3) participam das redes nacionais e globais que lutam por regulações e controles sobre o capital, e por políticas públicas e direitos democráticos favoráveis à maioria trabalhadora. Nas redes solidárias, a força motriz deixa de ser a motivação do lucro, que é substituída pela busca da satisfação das necessidades consideradas como prioridade pela maioria; o conceito de riqueza abrange a riqueza material, emocional, mental e espiritual – o ter passa a ser visto como meio para o ser e fazer; e a competição cede lugar à cooperação na diversidade e no respeito mútuo. Três tarefas são cruciais no processo de autodesenvolvimento solidário: (1) aumentar e diversificar o número de iniciativas associativas e os setores que elas cobrem; (2) criar sinapses solidárias entre elas, isto é, interconexões econômicas, comerciais e financeiras baseadas nos valores matrísticos do cuidado mútuo, da colaboração, da reciprocidade, do respeito próprio e pelo outro; e (3) introduzir a cooperação e a solidariedade como elementos estruturais da educação das crianças, jovens e adultos no sistema escolar e nas redes solidárias. O segundo momento é aquele em que prevalece uma Socioeconomia Mista – Gradualmente, à medida que se desenvolvem local, nacional e internacionalmente, essas redes começam a constituir um novo sistema e uma nova cultura, que floresce no interior do velho sistema e da velha cultura. A mudança cultural se caracteriza por uma mudança no fluxo da linguagem e no fluxo das emoções que constituem o modo de inter-relação entre os membros de uma comunidade, e que passa a ser conservado e transmitido de uma geração para a outra. Incorpora um conjunto de valores que inspiram atitudes, comportamentos, aspirações e modos de relação. A cultura patriarcal se desenvolveu na história, primeiro, como apropriação ou privatização de recursos e bens comuns (privar outros do acesso normal a algo que é legitimamente seu), segundo, como poder de dominar e impor obediência (negação de si e do outro a fim de possuir alguma coisa) e, terceiro, como hierarquia e autoridade (negação do outro e de si tornada aceitável por argumentos racionais, abstratos ou transcendentes). A cultura matrística desabrochou na história com base no cuidado, confiança total, respeito mútuo e colaboração solidária que marcaram a convivialidade dos nossos primeiros ancestrais e marcam a relação criança-mãe na nossa infância.[3] Traduzida para as relações econômicas e políticas, a cultura matrística promove a democracia econômica e política, entendida como cooperação, partilha e co-participação enquanto partes das emoções fundamentais que inspiram a ação de superar a escassez, enquanto distribuição participativa em vez de apropriação e centralização. Este é o momento que pode ser chamado de uma Socioeconomia Mista, no qual dois modos diferentes de produção co-existem, um informado pela cultura patriarcal, o outro pela cultura matrística. O terceiro momento é o de uma Socioeconomia Solidária Local-Global – Uma cultura neomatrística pode tornar-se hegemônica como resultado da conservação das conseqüências positivas das interações dos agentes socioeconômicos entre si com base na cooperação, partilha e co-participação. Os meios para se realizar isto são a criação de uma práxis educativa que promove o despertar nas pessoas e comunidades dos seus desejos e aspirações mais profundas de conquistarem formas de co-existência que se expressam no cuidado mútuo e na emancipação de todos os medos, da infância à idade adulta e madura. Isto inclui o estabelecimento concreto de uma igualdade colaborativa nas relações socioeconômicas assim como nas relações homem-mulher e ser humano-Natureza. Igualdade colaborativa quer dizer compartilhar a abundância coletiva de acordo com as necessidades e desejos, em vez da apropriação privada e a escassez crônica. Esta igualdade colaborativa é o único ambiente que pode gerar o espaço psíquico que torna homens e mulheres de todas as idades e ocupações colaboradores na igualdade, na convivência que constitui a vida social. Se conseguirmos tornar estas redes socioeconômicas de colaboração solidária uma realidade viva, elas podem tornar-se suficientemente fortes para operar uma mudança cultural de enorme magnitude e conseqüências para a história humana: o nascimento de uma economia e de uma cultura neomatrísticas, agora transformadas num ethos planetário. 4. COM QUE DESAFIOS ESTAMOS NOS CONFRONTANDO AO REALIZARMOS ESTA CONSTRUÇÃO NA AMÉRICA LATINA? (1) Governos pseudo-socialistas têm optado pelo padrão político- econômico de acumulação neoliberal ou populista, e são responsáveis pela perda de credibilidade das propostas alternativas e dos modos genuinamente democráticos de governo. Como podem os movimentos sociais garantir que os partidos socialistas que eles elegem se mantenham leais ao seu compromisso programático com a mudança social? (2) Os movimentos sociais estão se fortalecendo e se organizando sempre melhor na Argentina, Brasil, Bolívia, Equador, Venezuela e noutras partes do continente. Mas os povos da América Latina ainda não compreenderam que o desafio é que eles se empoderem para tornar- se o sujeito do seu próprio desenvolvimento individual e coletivo, reduzindo sempre mais sua dependência das instituições do Estado e do capital. Eles são a força que pode constituir as instituições democráticas do Estado (local, nacional e global) a fim de facilitar o empoderamento e o desenvolvimento da sociedade civil em harmonia dinâmica com o resto da Natureza. Como podem os movimentos sociais e governos democráticos desempenhar um papel mais efetivo de promover a consciência e o empoderamento das bases trabalhadoras – as mulheres, as minorias étnicas e outras, os empregados, os marginalizados, os excluídos, a terceira idade? (3) As práticas solidárias inovadoras estão se multiplicando no continente: cooperativas rurais e urbanas constituídas por famílias ou por grupos indígenas que trabalham solidariamente (México, Equador, Bramiu); agências de finanças e microcrédito solidários (Bolívia, México, Peru, Brasil); mercados de trocas solidárias (de troca direta ou usando moeda comunitária: Argentina, Colômbia, México, Brasil); cooperativas de eco-consumo (Uruguai, Argentina, México, Brasil); ecovilas que adotam a permacultura e a autogestão solidária como bases da atividade socioeconômica (Brasil); redes de comércio justo (em todo o continente); educação cooperativa (Venezuela, Colômbia, Argentina, Brasil); e agências e políticas públicas dedicadas à promoção da Economia Solidária (Colômbia, Equador, Brasil, México, Argentina). Como podemos compartilhar e tornar coletivo o conhecimento sobre seus sucessos e seus erros, como base para o progresso qualitativo na construção de uma Socioeconomia Solidária? (4) Entretanto, as práticas inovadoras a nível micro só podem ser viáveis e efetivas para a mudança estrutural das relações sociais se se entrelaçam umas com as outras para formarem sempre mais amplas redes de colaboração e cadeias solidárias de produção-finanças- distribuição-consumo-educação-comunicação. Este é um importante desafio para os movimentos de economia solidária da América Latina. Como estamos respondendo a ele os participantes dessas redes em cada país? (5) Outro desafio é um esforço sistemático de expandir as redes nacional e globalmente, alcançando todos os setores da sociedade que possam ser sensíveis às práticas democráticas de colaboração solidária – sindicatos, movimentos sociais, associações profissionais, igrejas e alianças ecumênicas, governos democráticos etc. Como estão respondendo a este desafio os participantes dessas redes em cada país? (6) Finalmente, um desafio fundamental é o de suplantar a cultura que promove o consumismo e a dependência em relação ao Estado, aos padrões técnicos dominantes e ao mercado financeiro. Um processo integral de educação para a autodeterminação, a autogestão solidária e a co-gestão é urgente, associado à conscientização sobre nossa aspiração interior profunda pela liberdade e pelo respeito mútuo como bases para uma convivialidade gratificante e sustentável. Como realizar a mudança cultural que recupera a nossa aspiração profunda por uma vida de auto-estima, respeito mútuo e solidariedade consciente, tornando-as prática diária na vida das nossas famílias, comunidades, empresas e redes? Obrigado pela atenção. Aprofundemos estas questões no debate. Notas: [1] Matrística é diferente do matriarcal porque afirma uma relação não fundada na ordem (arché em Grego), mas no cuidado materno, na estima, confiança e afeto uns pelos outros. [2] Economist and educator of PACS – Institute of Alternative Policies for the Southern Cone (Rio de Janeiro), member of the Brazilian Network on a SSE, of the WSSE/Alliance 21 and fellow of the Transnational Institute. [3] Para uma discussão aprofundada destes conceitos e sua aplicação à economia e à política, ver MATURANA, Humberto e VERDEN-ZÖLLER, Gerda, 1997, Amor y Juego – Fundamentos Olvidados de lo Humano: Desde el Patriarcado a la Democracia, Instituto de Terapia Cognitiva, Santiago, Chile. * Marcos Arruda. PACS.
https://www.alainet.org/pt/articulo/109402?language=es
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