A mesa global

03/06/2001
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Pode-se viver sem estudos, produtos industrializados, obras de arte e, nos trópicos, até sem roupa. Impossível é prescindir de comida e de bebida. A bailarina e o papa, o nobel de Química e o encanador, o marajá e o indígena, todos diferem quanto a hábitos e costumes, equipamentos e interesses, mas coincidem num ponto: dependem de sua ração diária. Dotados de capacidade reflexiva ? sabem que sabem o que sabem ? o homem e a mulher são os únicos animais que não enfiam a boca diretamente nos alimentos. Capazes de reproduzi-los pela agricultura e pela pecuária, evitam comer carne crua, lavam as frutas e verduras, cozinham legumes e assam os grãos. Da mescla de trigo, água, gordura, sal e fermento, obtêm o pão, assim como extraem cerveja da cevada e vinho da uva. Se deixar de comer e beber, o ser humano definha e morre. O alimento é-lhe tão imprescindível que, com o advento do mercado, passou a ter valor de troca. Entre os indígenas tribalizados, ainda hoje o alimento possui apenas valor de uso. A ambição de lucro faz com que se destruam plantações de grãos e frutas, para evitar queda de preços, embora haja milhares de famintos. Na sociedade capitalista, o valor de um produto alimentício supera o de uma vida humana. No Brasil, onde não faltam alimentos, 32 milhões de pessoas passam fome, e cerca de 300 mil crianças, com menos de cinco anos de idade, morrem de subnutrição a cada ano. Segundo a ONU, há 800 milhões de miseráveis entre os 6 bilhões de habitantes da Terra, na qual se produzem alimentos suficientes para 11 bilhões de bocas. Estes dados comprovam que não há excesso de bocas, nem insuficiência produtiva. O que há é injustiça. A mesa global não é acessível a todos os seres humanos. Enquanto uns poucos se fartam, a ponto de se darem ao luxo de fazer dieta, a maioria cata, inclusive no lixo, migalhas que sobram. O grau de justiça de uma sociedade pode ser avaliado pelo modo como os alimentos são distribuídos entre todos os cidadãos. O maior escândalo desta virada de milênio é a contemporaneidade da fome como fenômeno coletivo. Atingimos a Lua e nos preparamos para desembarcar em Marte. No entanto, ainda estamos longe de fazer pousar os nutrientes essenciais no estômago de milhares de homens e mulheres. Produzem-se transgênicos sem que se produza justiça. Todo cristão deveria ajoelhar-se ao entrar numa padaria. Símbolo da vida, o pão é o mais universal dos alimentos. Come-se todo dia e não enjoa. Em Jesus, Deus se fez pão. "Eu sou o pão da vida" (João 6,35). Signo do divino, o pão realça a vida como dom maior de Deus. Pai Nosso/pão nosso. Quem reparte o pão, partilha Deus. Na Semana Santa celebraremos a instituição do sacramento da presença viva de Jesus no pão ? a eucaristia. Pouco antes de ser preso, Jesus repartiu o pão entre os seus companheiros e afirmou: "Isto é o meu corpo". Distribuiu em seguida o vinho: ŒIsto é o meu sangue". E pediu que fizéssemos o mesmo em memória dele. Este pedido significa construir uma sociedade na qual todos tenham acesso, como na mesa eucarística, à comida e à bebida, dons da vida. Fazer de nossa existência pão e vinho para que outros tenham vida. Viver em comum-união, o que socialmente só será possível se levarmos à prática o que reza o sacerdote ao consagrar o pão e o vinho em corpo e sangue de Jesus: repartir os bens da Terra e os frutos do trabalho humano. O sufrágio universal abre a todos as portas da política. A Internet, os canais de informação. Fica faltando o democrático acesso aos bens da vida. O que não ocorrerá enquanto perdurar o capitalismo, que prioriza o lucro e defende a concentração privada da riqueza, ainda que em detrimento da possibilidade de vida de milhares de seres humanos. A eucaristia e a Páscoa são sinais que subvertem a sociedade marcada pela desigualdade social. O Deus que ressuscitou Jesus é o mesmo que nos deu tudo para que fosse de todos. O Paraíso é uma invenção divina. O egoísmo humano, entretanto, inventou o pecado e, em conseqüência, a exclusão do Jardim do Éden. Só o amor, traduzido em partilha de bens e dons, como numa família, resgata a fraternura que deveria unir todos os seres humanos. Então, a eucaristia se faria "carne" no tecido social e a ressurreição dos corpos se tornaria um fato político. E todos veriam, como assinala o Apocalipse, a tenda de Javé erguida entre nós (21,3).
https://www.alainet.org/pt/articulo/105174?language=es
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