A vida e o trabalho digno vêm antes do capital
- Opinión
O aprofundamento e a e aceleração da crise do sistema capitalista mundial, precipitada pela pandemia de covid-19 e a necessidade de enfrentar a emergência de saúde dela derivada, configuraram um contexto altamente desvantajoso e perigoso para a continuidade dos processos de rebelião popular estavam em andamento no planeta, no segundo semestre do ano passado, principalmente na América Latina.
Inicialmente, esse contexto devolveu a iniciativa tática aos governos neoliberais, predominantes em quase todos os países da região – com as poucas exceções da Venezuela, Argentina e México –, e que, naquele cenário imediatamente anterior, viviam uma onda de manifestações enfrentadas com repressão e medidas paliativas para conter as contínuas e massivas mobilizações populares.
A pandemia permitiu que os governos adotassem estados de emergência, toque de recolher, quarentena e outras medidas administrativas que restringem a mobilidade e o direito à reunião, permitindo também acabar com a pressão das ruas e recuperar o controle da ordem pública. Também restabeleceu o comando político do Estado sobre toda a população de cada país, e até algo de popularidade dependendo da sua capacidade de gestão da crise de saúde.
Além de suas várias estratégias para lidar com a pandemia, os países da América do Sul já se tornaram o novo epicentro da pandemia. Com Brasil, Peru e Chile como os que registram os maiores aumentos no número de infecções. E com altas porcentagens de mortes por cada milhão de habitantes. E os meses de inverno estão chegando, o que leva à previsão de um maior colapso sanitário e uma maior catástrofe em termos de vidas humanas.
Além disso, há o cenário de uma crescente recessão econômica, que já eleva as taxas de desemprego acima de dois dígitos, e causa pânico no mundo dos trabalhadores. Cenário em meio ao qual os donos do capital não apenas se esforçam para cumprir leis e medidas de proteção estatal contra suas margens de lucro ameaçadas, mas também realizam ataques – alguns abertos, outros velados – aos direitos coletivos dos trabalhadores, aproveitando a confusão geral em que se vive.
Como se sabe, nesses países, as quarentenas são de pouca utilidade. Há um alto percentual de trabalhadores informais, em modelos considerados “autônomos” ou sob outra expressão que também indica sua não vinculação ao empregador, o que leva a uma renda precária, dependente da atividade nas ruas, e o não cumprimento das medidas de confinamento e distanciamento social está diretamente relacionado à essa condição, que também está sendo adotada pelas crescentes massas de desempregados, que saem para procurar o ganha pão, mesmo sabendo do risco de contágio. Ou seja, até mesmo em tempos de peste, vali mais a aplicação de uma racionalidade sólida: “se vamos morrer, vamos morrer lutando, de fome nem cagando”.
Sem levar essa situação em consideração, as autoridades de muitos países estão reforçando não apenas as medidas de quarentena e isolamento social, mas também multas e penas para quem não as cumprir. Em circunstâncias nas que, paralelamente, as medidas de apoio econômico às famílias por emergência de saúde não são suficientes nem possuem a cobertura necessária para atingir setores como a população migrante, grande parte em situação de falta de documentação ou irregularidade documental.
Pior ainda, governos como o de Sebastián Piñera, no Chile, tentam tirar proveito da situação para que uma Lei de Migração seja aprovada, como um procedimento urgente que estabeleceria a necessidade de um visto consular obtido em seu país de origem para quem quiser vir trabalhar no Chile, e residir no país. O que, como já acontece aqueles que vêm do Haiti, Venezuela, República Dominicana e Cuba, se levará à multiplicação do número de irregulares. Atualmente, é possível estimar que pelo menos 500 mil pessoas vivem no Chile nessa situação, e a proporção não é diferente em outros países da região, como Peru, Argentina, Brasil ou Equador. Isso consolidaria o uso da migração irregular como “mão de obra barata”, um mecanismo estrutural para reduzir os salários e os padrões de trabalho, muito além da conjuntura.
De maneira mais geral, na América do Sul, estamos claramente entrando em um trimestre ou quadrimestre em que tanto a crise de saúde quanto a da economia devem atingir seu pico. Em meio a esse cenário, a queda no crescimento alcançará níveis nunca vistos desde a crise da dívida externa, nos Anos 80, que deu origem à chamada “década perdida” da América Latina. Já existem países que registram quedas entre 20% e 40% de sua atividade econômica. O consequente desemprego não será menor.
Para isso, os primeiros a reagir, claramente, foram os grupos empresariais. Como apontou o jornalista peruano César Hildebrandt: “a direita oligárquica sabe bem claramente qual é o panorama, por isso ela exige que o custo da conversão e as perdas da crise econômica causada pela pandemia seja colocado nas costas dos trabalhadores e do Estado. Eles já avançaram com propostas apresentadas às autoridades nacionais para privilegiar os seus próprios interesses, colocados em primeiro lugar sem o menor constrangimento, passando por cima das necessidades dos outros. Exigem condições favoráveis %u20B%u20Be apoio governamental para participar da reconstrução. Não vão pagar pela crise. Que sejam os outros sejam os que se ferrem!
No Chile, em paralelo com a ação do governo para fortalecer a legislação e os instrumentos das forças policiais, as grandes empresas estão pressionando os sindicatos para ignorar a remuneração e os benefícios acordados em seus contratos coletivos, ou para estabelecer acordos para que estes não possam ser aplicados a trabalhadores que, no futuro, se unam em sindicatos. Tudo isso com o pretexto da recessão que está em curso.
Quer dizer, eles estão convidando os trabalhadores a baixar suas calças e serem cúmplices da ignorância da lei, que exige que os termos do contrato anterior sejam respeitados, como o piso de qualquer negociação. Assim, se abre caminho para um cenário onde os trabalhadores mais velhos serão mais caros e os mais novos serão mais baratos, e todos estarão no mesmo sindicato. Isso leva à demissão dos mais velhos, para que os termos do contrato coletivo sejam efetivamente reduzidos, com o desaparecimento dos beneficiários das melhores condições de remuneração e outros benefícios.
A intimidação dos trabalhadores com o aumento do desemprego e a incerteza da profundidade que a crise pode atingir é enorme. Muitos líderes sindicais estão confusos. Sem levar em conta que não é hora de baixar os termos dos contratos coletivos. Antes, é hora de exigir que os grandes grupos econômicos, proprietários dessas grandes empresas com lucros de milhões, mantidos nos últimos 30 anos, paguem impostos mais altos – não apenas para financiar pacotes de emergência – e também ajudem a restaurar os direitos sociais básicos e universais, que permitem o fim da desigualdade aberrante que prevalece no Chile, como em muitos outros países.
Se acrescentarmos a isso o fato de que, nessa mesma conjuntura, são aprovadas leis trabalhistas que permitem desconhecer unilateralmente o direito à negociação coletiva, e usar esse mesmo pretexto de “proteger o emprego” para maquiar temporariamente o desemprego, enquanto os trabalhadores subsistem com seus próprios fundos de garantia, podemos entender a magnitude da ofensiva dos empregadores. Muitos passarão pela crise da saúde sem ter que pagar salários, nem indenizações, nem terão que fazer negociações coletivas. Como seus trabalhadores poderão sobreviver?
Deve-se lembrar que o relançamento do modelo neoliberal no Chile após a crise de 1982-1983 apoiou a recuperação das taxas de lucro corporativo, entre outros fatores, com a supressão do piso real da negociação coletiva e a redução contínua de salários entre os anos de 1982 e 1988. Seis anos nos quais a participação dos salários no produto social excedente total diminuiu, sem ter sido totalmente revertida até hoje. Além disso, o uso de economias forçadas de aposentadoria dos trabalhadores começou a financiar o crescimento dos grupos empresariais mais poderosos, o feroz negócio da AFP – administradoras de fundos de pensão, ou, as atuais empresas de previdência privada, todas elas ligadas a bancos e outras gigantes do setor financeiro.
Chegou a hora dos trabalhadores não baixarem a guarda. Defender e fortalecer a organização e a solidariedade de classe. Preservar a vida, a saúde e as condições que conquistamos. Apoiar e fortalecer os órgãos da comunidade no nível territorial, onde vivemos, para enfrentar a fome e a falta de moradia dos mais vulneráveis. E, o mais importante: manter a rebelião viva.
Viveremos, voltaremos e venceremos.
*Publicado originalmente em 'Blog Punto Final'
Tradução de Victor Farinelli
22/06/2020
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