Grandes mudanças e uma experiência inédita

28/10/2015
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Foto: Wikimedia Commons Scioli e Cristina Kirchner
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O povo soberano protagonizou uma jornada exemplar e memorável neste domingo. Participaram ao redor de 80% dos cidadãos inscritos, num dia marcado pelo respeito, a mobilização, uma alegria expandida e uma certa tranquilidade.

 

O resultado foi surpreendente e retumbante. Muda drasticamente o tabuleiro político, aconteça o que acontecer no dia 22 de novembro. O domingo trouxe dois resultados inesperados, desafiando as pesquisas tanto a nível nacional quanto na Província de Buenos Aires.

 

A fórmula presidencial da coligação Cambiemos (“Mudemos”), composta por Mauricio Macri e Gabriela Michetti, melhorou muito, em comparação com o desempenho obtido nas primárias de agosto, tanto em quantidade quanto em qualidade. Por sua parte, María Eugenia Vidal levou a direita à vitória em Buenos Aires, com um número de votos parecido ao obtido por Macri na mesma região, que foram fator decisivo também para a eleição a nível nacional.

 

Por sua vez, a Frente para a Vitória (FpV), com Daniel Scioli e Carlos Zannini, perdeu uma porcentagem importante de votos, quase 2% menos – que terminam sendo mais, considerando que o número de votos foi bem maior que o das primárias –, enquanto a direita aumentou sua votação em 4,5% aproximadamente.

 

Haverá segundo turno, o que todos sabíamos que era possível. Mas com posições relativas não imaginadas. Macri encara a situação como um otimismo muito grande, que reverte o favoritismo, que até então era todo de Scioli.

 

Os dois adversários se toparam numa experiência inédita para o país, como é o segundo turno, contando com cifras de votos muito parelhas. Não é possível fazer cálculos ou previsões agora. Os números do dia 25 de outubro potencilizam a coligação Cambiemos e colocam a FpV diante de um desafio descomunal, o de reverter essa tendência. Macri aparece como vencedor, condição que costuma atrair novas adesões. Scioli cedeu terreno, e está obrigado a revisar suas estratégias. Os contextos emocionais são distintos e a forma como cada um deles vai encarar essa situação dependerá também da qualidade dos dirigentes de cada partido.

 

Surpresa em Buenos Aires

 

Buenos Aires tem um peso eleitoral e simbólico difícil de exagerar. Desde 1983, após o retorno da democracia, somente uma vez a província foi governada por um não peronista: em meados dos Anos 80, Alejandro Armendáriz, da União Cívica Radical, foi empurrado pelo otimismo em torno do então presidente Raúl Alfonsín, do mesmo partido. O precedente único dimensiona a vitória de Vidal, impensável há três meses. Seguramente, contém significados e motivos que transcendem o provincial. Tanto pela estrutura social e cultural do distrito quanto por ser o território que Scioli governou durante oito anos.

 

Vidal comprovou ser uma candidata com chegada, como as pesquisas insinuavam. Por sua vez, Aníbal Fernández, o kirchnerista derrotado por ela, não ajudou em nada a si mesmo nem à candidatura de Scioli. De qualquer forma, seria exagerado colocar sobre ele toda a responsabilidade da catástrofe, já que Scioli foi governador da província. Além disso, a diferença numérica entre os dois não foi tão grande.

 

A FpV tampouco foi tão bem em outra província vital, como Córdoba, terra sempre arisca para o kirchnerismo. Na Cidade Autônoma de Buenos Aires, conseguiu 24%, uma quantidade discreta, inferior às suas melhores performances.

 

Por sua vez, Cambiemos conseguiu muitos votos na Cidade, em Córdoba, Mendoza e Santa Fé. A Província de Buenos Aires fecha o núcleo dos distritos mais povoados. Nos quatro primeiros territórios, Macri conseguiu uma ótima quantidade de votos, e em três casos bem acima do que se estimava – exceto na Cidade de Buenos Aires, onde foi prefeito, e já se esperava um resultado importante.

 

Com relação às províncias do Norte e do Oeste, a FpV conservou sua supremacia, mas com menos votos. Cambiemos conseguiu polarizar a disputa, seu primeiro objetivo. Mas não como se especulava, roubando votos da Frente Renovadora de Sergio Massa e Gustavo Sáenz. Uma importante porção de votos parecem ter passado diretamente da FpV para a candidatura da direita. Ainda assim, isso não explica tudo, e será preciso repassar o que houve na campanha desde o começo de outubro, para entender os motivos do que aconteceu. Compreender isso é uma das coisas que a FpV precisa fazer se quiser mudar o rumo das tendências novamente.

 

A hora do PRO

 

O PRO fica como vanguarda quase exclusiva de uma coalizão competitiva de centro-direita, uma novidade no sistema político. Já conseguiu assegurar o melhor desempenho para um partido dessa ideologia nas eleições democráticas

 

Macri até homenageou seus correligionários da União Cívica Radical, incluindo a deputada Elisa Carrió. Claro que precisa conservar esse apoio, mas a verdade é que possui uma superioridade política arrasadora sobre eles, verificada nas primárias. Assim, mesmo que não vença em novembro, o PRO passa a ser o segundo partido da Argentina, e com uma governadora de projeção nacional.

 

Se puderem bater a FpV, o que hoje parece ser mais possível que nunca, embora não inevitável, será preciso revisar esse ranking.

 

O novo Congresso

 

Com relação à conformação do Congresso, os resultados foram menos drásticos, embora algo de novidade aconteceu no caso da Câmara dos Deputados. A FpV observou uma melhora no Senado, onde terá 38 cadeiras, quórum próprio. Unindo-se a aliados, poderia remar até os dois terços, para maiorias especiais. Sua bancada é muito mais nutrida que a do PRO, e também sobre a da Cambiemos como um todo.

 

Na Câmara, estava escrito que o kirchnerismo perderia espaço, porque era impossível repetir o 54% de vagas de 2011. Mas a drenagem foi maior que o previsto – cerca de 42 legisladores a menos. Conserva a primeira minoria, mas se distancia de uma maioria mais exigente.

 

Províncias de todas as cores

 

Os resultados de dez das onze províncias em disputa terminaram sem surpresas. Buenos Aires foi a exceção, tão formidável que já não pode dizer que “confirma a regra”.

 

A FpV conservou os governos de Catamarca, Entre Ríos, Formosa, Misiones, San Juan e Santa Cruz. Em La Pampa, o vencedor foi Carlos Verna, um peronista que não forma parte do kirchnerismo, embora forme parte da aliança governista, e também era um resultado previsto.

 

O radical Gerardo Morales, liderando uma vastíssima coalizão opositora, venceu em Jujuy, outro bastião peronista. Uma mutação histórica que as pesquisas já previam. Alberto Rodríguez Saá conservou a hegemonia do seu partido e da sua família em San Luis.

 

O peronista federal Mario das Neves confirmou seu favoritismo em Chubut, vencendo seu ex-pupilo, o atual governador Martín Buzzi, que havia aderido à FpV.

 

A FpV controla a maioria das províncias, mas nenhuma das maiores. O radicalismo ficou com três distritos: ganhou em Mendoza, Jujuy e Corrientes. Seu peso específico total é muito menor ao que obteve o PRO, que conduzirá os dois territórios mais importantes do mapa nacional – Cidade de Província de Buenos Aires.

 

O que virá

 

Scioli e Macri inauguraram uma nova disputa. Curiosamente, ambos o fizeram reiterando discursos anteriores – o de Scioli, na sexta-feira passada, o de Macri, replicando o do dia em que Horacio Rodríguez Larreta foi eleito como seus sucessor na prefeitura da capital.

 

São os primeiros reflexos, e bastante rápidos. Nas próximas quatro semanas, haverá muitas e vertiginosas mudanças de discursos, táticas novas, quem sabe algum debate na TV.

 

Os jornalistas consultarão os dirigentes e chefes partidários que ficaram de fora, para ver com quem ficará cada apoio. É provável que essas mediações tenham pouco resultado, já que poucos apoios concretos surgirão – e no fim das contas, as pessoas são as que decidirão com liberdade e autonomia, a quem transferirão seus votos.

 

São pouco menos de 30% os votos que estão em disputa, uma quantidade que complica projeções prematuras, lineares ou voluntaristas. Ninguém pode supor que já conta com o apoio de antemão. O Esses indecisos configuram um conjunto complexo, que ocupa territórios diferentes, se enlaça com famílias políticas distintas ou apolíticas, um eleitorado flutuante e independente.

 

Sistema e futuro

 

Há quem julgue os resultados eleitorais em função de como foi o desempenho dos favoritos. Essa postura, mais que um ponto de vista, é uma postura ideológica. A cidadania, ao votar, discerne, conserva ou varia suas preferências e demandas. Ela é capaz de pensar nos cenários diferentes. A democracia é reformista e gradual por essência, mas as definições populares são grandes momentos, gostemos ou não.

 

A que se aproxima é uma instância inédita na democracia argentina. Scioli deu sinais de querer recuperar iniciativa, com um forte discurso de identificação com os doze anos de governo kirchnerista, mesclado com definições sociais e políticas, buscando expor as diferenças e atrair principalmente os grupos sociais mais humildes.

 

Macri pretende dissimular sua estirpe, seu programa e até mesmo a classe social a qual pertence. Talvez essas sejam suas estratégias fundamentais.

 

O certo é que, com duas forças bem distintas ideologicamente, se replica o esquema habitual nos países vizinhos. A direita roga por voltar, confia no funcionamento do pêndulo. O governo se segura em sua obra, suas realizações. Também terá como argumento possível a improvável governabilidade de Macri se chegar à presidência com minoria parlamentária e quiser aplicar um programa que coloque em risco as conquistas sociais, os níveis de emprego e os direitos estabelecidos nos últimos tempos. O que joga a favor do líder do PRO é o clima de vitória gerado, além dos doze anos de desgaste inevitável do kirchnerismo, apesar desse ainda estar vigente.

 

Os dois rivais começam a segunda etapa em paridade, com uma breve luz a favor de Scioli. Mas, neste momento, a mística da coligação Cambiemos faz com que sua capacidade de convencimento seja mais fácil. A FpV terá que lamber suas feridas, fazer mudanças, recuperar sua mística e evitar a proliferação de disputas internas. É um partido que já soube sair mais forte de outras circunstâncias adversas – como em 2008, depois da crise com os agricultores, por exemplo. Porém, naquela ocasião, a presidenta era Cristina Kirchner e Néstor a acompanhava. O contorno atual é bem diferente.

 

Tradução: Victor Farinelli

 

http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Grandes-mudancas-e-uma-experiencia-inedita/6/34853

https://www.alainet.org/pt/articulo/173302?language=en

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