Internet.org fere neutralidade da rede e quer aumentar público do Facebook

14/08/2015
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São Paulo (SP).- “Essa é Neesha. Neta, filha e irmã de mágicos. Ela já viu muitas coisas incríveis nesse mundo, mas não tem internet. Imagine o quanto ela poderia aprender, compartilhar com o mundo. Conecte-a. Quanto mais pessoas conectadas, melhor será”.

 

A história de Nessha está no site do projeto Internet.org, do Facebook. A iniciativa de Mark Zuckeberg, dono da empresa, afirma ter como objetivo levar o acesso à internet a países e áreas que ainda não estão conectados: 2/3 do mundo não tem acesso à internet.

 

A presidente Dilma Rouseff anunciou uma parceria com o Facebook para trazer o Internet.org ao Brasil. No entanto, o que um projeto com essa escala, liderado por uma das maiores companhias na internet hoje, representa para as pessoas que vão utilizá-lo, os governos e para o próprio Facebook?

 

Com mais de 1,44 bilhões de usuários ativos até março de 2015 e uma receita de US$ 12,466 bilhões de dólares em 2014, o lucro do Facebook vem da coleta de dados de seus usuários e a subsequente venda desses para publicidade. 

 

“É como dizem por aí: se você não pagou pelo serviço, é porque você é o serviço. Você está pagando pelo Facebook, mas com outra moeda: seus dados pessoais. A empresa coleta de seus usuários desde informações mais simples, como nome e idade, até locais onde você esteve, gostos, visões políticas, redes de relacionamentos etc, que são utilizados utilizados para criar diferentes perfis de seres humanos e viabilizar uma publicidade direcionada para cada perfil. Com esse potencial, a rede anunciou que este ano já alcançou dois milhões de anunciantes ativos”, analisa Joana Varon, diretora fundadora do Coding Rights e co-criadora do Oficina Antivigilância, coletivos que lutam pelo direito dos usuários da internet.

 

Fonte de renda

 

Um relatório do Internet.org aponta que existem, atualmente, 3 bilhões de pessoas online. No entanto, a adoção à internet está diminuindo. A taxa de crescimento caiu pelo quarto ano consecutivo, a apenas 6,6% em 2014, bem abaixo dos 14,7% de 2010. No ritmo atual de desaceleração, a população online não chegará a 4 bilhões de pessoas até 2019.

 

Como a fonte de lucro do Facebook são os dados das pessoas, é fundamental para a empresa obter mais usuários, e o Internet.org é uma forma de fazer isso.

 

“As pessoas esquecem que o Facebook é uma empresa que precisa de lucro, e não está preocupada com o bem estar das pessoas. Está preocupado em quantas pessoas vão acessar a página. Também acho que as pessoas vão ter muitas vantagens se tiverem conectadas, mas à internet, não somente ao Facebook. Inclusive o nome do projeto, 'Internet.org', já é absolutamente problemático, pois dá a impressão de ser algo sem fins lucrativos”, diz Marina Pita, do coletivo Intervozes, organização focada no direito à comunicação.

 

Acesso

 

Além disso, a plataforma do Internet.org não garante o acesso universal à internet; o usuário, conectado através de um celular, tem acesso apenas ao Facebook e sites parceiros da empresa, o que cria uma experiência de uso restrita. Há também restrições técnicas que impedem os usuários de assistir a vídeos ou ver fotos em alta resolução, elementos fundamentais para quem usa a rede hoje.

 

As limitações do projeto impedem muitos desenvolvedores de instalar medidas e protocolos que garantiriam uma maior proteção dos dados do usuário, como a tecnologia HTTPS (Hyper Text Transfer Protocol Secure - protocolo de transferência de hipertexto seguro), que criptografa as mensagens do cliente – com o dispositivo usado para se conectar à rede - e o servidor onde os sites são acessados.

 

“Essas restrições do Facebook foram estabelecidas arbitrariamente pela empresa, não houve consulta ou diálogo aberto com a sociedade civil ou com organizações que representam a infraestrutura da rede, que congregam engenheiros do mundo todo para definir e ajustar as tecnologias de roteamento, nomes de domínio, controle de acesso, envio de mensagens da Internet”, aponta Lucas Teixeira, editor do Boletim Antivigilância.

 

“Com o Internet.org, estamos caindo nesse discurso de 'se não conseguimos garantir todo o acesso, garantimos um pedaço'. É admitir que há um cidadão de segunda categoria, que só vai poder acessar o que o Facebook permitir. E damos um poder ao Facebook de definir quais são as plataformas aceitáveis ou não. Criamos mais um muro fechado na rede” diz Marina.

 

Neutralidade da Rede

 

O Marco Civil da Internet, aprovado em 2014 no Brasil, trouxe diversos direitos aos usuários da internet e definiu regras de como a rede deve funcionar no país.

 

A principal destas medidas é a da neutralidade da rede, que garante que nenhum conteúdo é prioritário a outro; dessa forma, todos os dados que navegam na internet tem que ser tratados igualmente pelo provedor.

 

“Como o próprio Facebook mostra nas suas orientações técnicas, o Internet.org deixa passar somente o tráfego dos sites aprovados na plataforma proprietária, limitando o acesso. O que eles querem dar a entender é que eles estão dando um pouco de acesso a certos sites, mas o único modo disso funcionar é restringindo o acesso a todo o resto da internet que não é parceiro, o que fere a neutralidade da rede”, analisa Lucas.

 

Apesar dos avanços do Marco Civil, o Brasil ainda não tem uma legislação madura no que diz respeito à coleta e dados pessoais por empresas.

 

Teoricamente, cabe ao Estado estabelecer limites à essas corporações de forma que seus modelos de negócio respeitem direitos humanos fundamentais. O Brasil deu um passo significante com a aprovação do Marco Civil, mas ainda temos uma legislação esparsa no que diz respeito à proteção da privacidade. Estamos atrasados com relação à vários países do mundo para aprovar uma lei de proteção de dados pessoais. É importantíssimo que essa lei tenha prioridade no governo, pois representa um avanço tanto na proteção de direitos dos brasileiros da rede, como fornece também segurança jurídica para inovação no setor” aponta Joana.

 

Alternativas

 

Se a universalização do acesso à internet não pode vir do mercado devido aos seus interesses econômicos, ela deve vir do Estado. É o que aponta Marina.

 

“A meu ver, a sociedade como um todo defende que seja feito um esforço para garantir a universalização da internet assim como outros serviços essenciais, como luz, água, telefonia fixa. O estado tem que entrar com seu papel e investir em rede, porque através da internet você garante uma série de direitos para a população. E há várias formas de garantir o acesso. Pode-se criar pontos de acessos públicos em praças, por exemplo. Hoje as empresas de telecomunicações não querem oferecer links para essas iniciativas. Aí temos um problema. O mercado está impedindo que a universalização da internet avance”.

 

Há uma série de iniciativas em outros países que garantem o acesso público e gratuito à rede. Nos Estados Unidos, a cidade de Holyoke, Massachusetts, criou uma rede comunitária de internet banda larga, pois as empresas telefônicas não tinham interesse em criar uma.

 

O projeto foi bem sucedida, tendo lucro líquido de 500 mil dólares na última década, além de gerar uma economia de 300 mil anuais aos cofres públicos e atrair investimentos na casa dos milhões no setor privado. O próximo passo é expandir a rede de Holyoke, oferecendo conexão em alta velocidade para as residências.

 

O projeto Guifi.net, surgido na Espanha, cria redes abertas, neutras e livres, que podem ser utilizadas por pessoas, empresas e instituições.

 

No Brasil, caminham lentamente algumas iniciativas estatais, como o Governo Eletrônico - Serviço de Atendimento ao Cidadão (Gesac), programa que oferece gratuitamente conexão à internet em banda larga - por via terreste e satélite - a telecentros, escolas, unidades de saúde, aldeias indígenas, postos de fronteira e quilombos.

 

Segundo Marina, no entanto, a universalização do acesso à internet tem que ser tratada como política de Estado.

 

“O [programa] Banda Larga Para Todos, projeto que o governo fez para massificar o acesso, não foi levado adiante. Da perspectiva da sociedade, só há universalização da banda larga se classificarmos esse serviço como essencial dentro do Marco Civil, e classificá-lo como regime público. Ou seja, as prestadoras de serviços tem obrigações com o estado brasileiro. Da mesma forma que existem telefones públicos a tantos quilômetros de distância, essa garantia precisa existira com a internet”.

 

http://www.brasildefato.com.br/node/32676

https://www.alainet.org/pt/articulo/171728?language=en
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