A individuação da política

16/06/2005
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Um dos mais perniciosos sofismas do pensamento burguês é a idéia de que as coisas dependem de vontades individuais. Assim, a política não funciona bem por culpa dos corruptos; o meio ambiente é degradado porque as pessoas não respeitam a natureza; o governo vai mal porque o governante não tem coragem de desagradar as elites. Essa visão distorcida da realidade serve para encobrir os mecanismos por trás das relações pessoais. Os mecanismos sociais fazem o encaixe da engrenagem estrutural de dominação da elite, e submissão e exclusão daqueles que são destituídos de renda e, portanto, de cidadania. Ao delegar à esfera individual os males sociais, o sistema preserva a sua natureza cruel: a “inevitabilidade” da desigualdade social. E apregoa que tanto a política quanto as questões sociais devem ser monitoradas pelas leis do mercado. Em outras palavras, o lucro dos bancos e das empresas privadas, nacionais e estrangeiras, é a prioridade. São eles que emprestam dinheiro ao governo; movimentam a importação e a exportação; injetam recursos no crescimento econômico do país. Até a Revolução Francesa, em 1789, havia desigualdade social, mas não a idéia de que alguém deve estar fora dos benefícios sociais básicos. Mesmo os escravos tinham assegurada a sua ração diária. O sistema englobava toda a sociedade, ainda que mantendo as diferenças de castas e de classes. Foi com o ascensão da burguesia que a exacerbação do individualismo inaugurou a prática da exclusão social. Adam Smith valorizava o egoísmo como virtude capitalista. Assim, a culpa da miséria e da violência é de indivíduos que se recusam a obedecer as leis do mercado e se dedicam a negócios escusos dispostos a transgredir a legislação vigente. Aliás, legislação que não coíbe, antes incentiva, a violência dos oligopólios e dos que promovem a concentração de renda, disseminando a miséria. O direito burguês alicerçou-se em Estado de Direito, eufemismo para assegurar a defesa do interesse individual, como o direito à propriedade, ao livre comércio etc. Esse interesse particular de uma classe passou a ser tido e havido como universal. Na democracia burguesa, o Estado é uma obra de engenharia voltada à defesa desse interesse. Os princípios da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade – valem formalmente para a estrutura jurídica e política do Estado burguês. Até um operário sem curso superior pode chegar à presidência da República. Mas não se aplicam à esfera econômica, onde prevalece, por força de lei, a falta de liberdade para quem não dispõe de renda e o liberalismo de quem dispõe; a desigualdade social antagônica ao princípio da igualdade; e a total ausência de fraternidade ou solidariedade, pois ainda que haja sobra de pão morrem de fome os que não podem pagar por ele. Adam Smith não nasceu num barraco, não tinha um pai alcóolatra e a mãe prostituta. Portanto, nunca se deu conta de que o sistema que ele canonizava produzia tanta desgraça. Pois ninguém escolhe ser pobre. A pobreza é uma decorrência da contradição dessa sistema capitalista que, como diz o nome, prioriza o capital em detrimento do trabalhador. Enquanto a democracia for meramente representativa, e não participativa, nós continuaremos a dar o nosso voto a quem, uma vez eleito, segue seus próprios interesses, sem sintonizar-se com os de seus eleitores. Anular o voto não é solução, pois favorece os maus políticos. O desafio é atrelar o candidato aos movimentos populares, de modo que ele entenda que eleger-se não é chegar ao poder, é chegar ao serviço. E tornar os movimentos fator de mobilização social. Nao nego que o indivíduo tenha importância no processo histórico. Tivesse Gorbachev uma formação stalinista, a União Soviética não teria se desagregado em democracia. Porém, o indivíduo conta onde a coletividade não conta. Quanto mais centralizada uma estrutura de poder, mais ela depende de quem a ocupa, deixando à margem o poder popular. Não há alternativa: ou reforçamos os movimentos populares ou incensamos os líderes carismáticos. Mas é bom lembrar que, ao longo da história, indivíduos cometem erros e acertos. Porém, erram menos quando suas ambições pessoais são contidas pelas regras do jogo democrático. A tarefa é tornar o jogo verdadeiramente democrático, e não mera legitimação da impetuosidade arrivista de líderes mais preocupados com o sucesso pessoal que com as causas sociais. - Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Paulo Freire e Ricardo Kotscho, de “Essa Escola Chamada Vida” (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/112246?language=es
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