Dramatização mediática: a quem serve?
09/06/2005
- Opinión
A embriaguês mediática provocada pela morte de um Papa e a
entronização de outro ou pela festa de Corpus Christi,
mobilizando milhões de pessoas pode nos induzir em erro quanto
ao verdadeiro significado das expressões religiosas. Estas
manejam símbolos que, por sua natureza, são inevitavelmente
ambiguos. Todo símbolo possui duas direções. Uma aponta para
fora, para o Sagrado para isso existe e outra aponta para
si mesmo, com o risco de esquecer o Divino e o Sagrado e se
considerar um fim em si mesmo. É o que acontece com mais
frequência. Então inflaciona-se a profusão das imagens
religiosas, construidas habilmente pelos mestres da
dramatização mediática, a fim de produzir emoções e mais
emoções, pouco importa se estas lembram ou não o Sagrado.
Mudanças de vida não ocorrem, nem precisa. Os fiéis se
eletrizam, vão às lágrimas, gritam por milagres e canonizam
imediatamente seu lider religioso: "Santo subito", "santo
agora mesmo". Muitos cardeais, bispos e padres se enchem de
satisfação, pois vêem o triunfo da religião contra as críticas
e suspeitas feitas pela modernidade.
Mas atenção: aqui pode residir um engôdo. Não basta a emoção,
precisa-se de reflexão (teologia) para tirar a limpo o
problema. A prática originária de Jesus e da Igreja apostólica
vai numa linha contrária à encenação pública. Jesus diante de
tais multidões usaria um discurso que ninguém da midia
reproduziria, pois seguramente seria um ruido insuportável:
"Convertei-vos, mudem de vida, cuidem do faminto, façam
justiça ao oprimido e não dissociem o amor a Deus do amor ao
próximo, pois ambos são uma coisa só".
Como no tempo de Jesus, diante de tal discurso as multidões
iriam, provavelmente, embora ou minguariam. E os que tomariam
a mensagem a sério poriam em marcha uma verdadeira revolução
molecular e construiriam uma humanidade mais sã. Imaginem a
revolução social que haveria no Brasil se as milhares de
escolas cristãs e as muitas universidades católicas apenas
ensinassem e levassem seus alunos a viver esse preceito de
Jesus: "amem os outros como se amam a si mesmos e cuidem dos
pobres"? Por que não ocorre?
Porque aqui se confrontam dois tipos de cristianismo: o
devocionista e o libertador. O devocionismo veio com a
colonização e é hegemônico. Ele não coloca o acento na mudança
mas na aceitação da doutrina proposta pela Igreja. Sem a sã
doutrina, diz-se, ninguem se salva. Mas pela ignorância
generalizada, poucos a conhecem. Então o recurso é a devoção
aos santos fortes, dai o devocionismo. O criminoso Escadinha
antes de assaltar, fazia o sinal da cruz e se agarrava ao
escupulário de Nossa Senhora Aparecida, pois, segundo ele, a
Santa fechava o corpo. Eis o devocionismo, desligado da ética
e da mudança de vida. Esse tipo de fé não é cristã, é
fetichista. Mas é o que se pratica comumente.
O cristianismo de libertação sempre esteve presente, mas só
ganhou relevância a partir dos anos 50. O que salva não são
prédicas mas práticas. A doutrina desvinvulada da prática da
justiça, segundo Jesus, é letra que mata, é ausência do
espirito que vivifica, é fazer o homem para o sábado e não o
sábado para o homem. Se não resgatarmos esta visão apenas
fazemos o jogo do mercado mediático. Este, usando a religião,
visa apenas entreter, lucrar e jamais mudar as pessoas e o
mundo, pois é isso que importa.
Leonardo Boff é teólogo
https://www.alainet.org/pt/articulo/112174
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