Educar pra quê?
24/11/2002
- Opinión
Falar de educação é falar de sociedade. Um dos reflexos da concepção
cartesiana que temos da educação é que as distinções são mais
acentuadas do que as conexões. Por isso, hoje se fala em concepção
holística da educação, de modo a reatar os nós desatados pela
modernidade cartesiana
Reza a Constituição brasileira: "A educação é de responsabilidade da
família, da escola e da sociedade". Às vezes, imagino os promotores,
o Ministério Público, entrando com recurso junto à União, penalizando
a sociedade por não cumprir seu papel educativoŠ Em nações indígenas
tribalizadas, a educação de uma criança depende de todo o conjunto da
comunidade; não é responsabilidade da escola, que não existe, nem dos
pais, porque toda a comunidade é concebida como sendo a família da
criança e do jovem. É evidente que essa utopia não é mais realizável
nas nossas cidades que, inclusive, foram concebidas, não em função da
humanização das pessoas, mas como burgos. Daí o nome "burguês":
aquele que vivia numa confluência, num entroncamento de caminhos, em
que se dava a troca de mercadorias
O que marca a origem das cidades no Ocidente, tais como as conhecemos
hoje, é o interesse econômico. Todo planejamento viário da cidade é
feito em função do fluxo da economia, e não da qualidade de vida dos
cidadãos
Embora o Brasil tenha, hoje, mais de 80% da sua população na cidade,
ainda resistem no campo quase 20%. E é no campo que se encontra o
maior contingente de mão-de-obra entre os 64 milhões de trabalhadores
brasileiros. Como é possível a agricultura ainda representar o setor
que mais absorve mão-de-obra (23%, seguindo-se o setor de serviços,
que emprega 21%) se há tão pouca gente no campo? Infelizmente isso é
perfeitamente explicável se trabalharmos com o fator bóia-fria.
Pessoas que, todas as madrugadas se deslocam de um centro urbano para
trabalhar, ou pessoas que passam períodos na zona rural em busca do
seu sustento
Isso não significa que o Brasil tenha um mundo urbano em
contraposição ao mundo rural, pois há uma progressiva unificação da
mentalidade do brasileiro graças ao avanço dos meios de comunicação
Nessa rede de comunicação, o veículo mais poderoso é a televisão.
Segundo o Censo do IBGE de 2000, 86% dos lares brasileiros têm
televisor; ou seja, de cada 100 brasileiros, 86 têm televisor. Dados
da Unicef (2002) revelam que, no Brasil, os adolescentes passam, em
média, 4h por dia em sala de aula, e 3h55m diante da TV; ao contrário
da média européia, que são 8h em sala de aula e menos de 4h diante da
TV. As duas médias estão muito distantes do índice de Cuba, o país
mais avançado em educação em toda América Latina, onde os alunos
passam, em média, 12h por dia na sala de aula.
Cidadania X consumismo
Há uma dicotomia ou tensão entre o propósito educativo e o conteúdo
predominante na TV brasileira. Nada contra as emissoras; o problema
está no conteúdo que, salvo raras exceções, visa formar consumidores,
e não cidadãos. De outro lado, estão a escola, a família, as Igrejas
que, em princípio, têm o propósito de formar cidadãos. Isso explica o
nosso desconforto como educadores
Com muita freqüência, educadores me perguntam: "Por que, na nossa
época, éramos tão disciplinados em sala de aula, e agora o pessoal é
tão agitado?" A resposta, a meu ver, é óbvia: porque, agora, a
garotada gostaria de poder mudar o professor de canal. Agüentar por
quarenta, cinqüenta minutos, aquele tom monocórdio, não é fácil,
principalmente quando o professor não é dotado de pedagogia para
tornar atrativa a sua presença em sala de aula
A TV brasileira é uma concessão pública; o Estado deveria, em nome da
sociedade, e como provedor, não só de nosso bem-estar, mas também do
nosso crescimento cultural e espiritual, exigir das emissoras
parâmetros educativos. Isso não acontece
As emissoras são o melhor presente que umas poucas famílias podem
receber desse Estado clientelista, que privilegia determinados
segmentos da sociedade. Até porque não se exige dessas famílias,
"donas" de canais de TV, aquele mínimo que se espera em qualquer país
decente, ou seja, a devolução aos cofres públicos de uma parte da
fabulosa verba de publicidade
Imaginem se 10% dessas verbas fossem destinados à educação
fundamental! Seria uma revolução, principalmente considerando que,
das verbas destinadas ao ensino fundamental, apenas 8% do montante
chegam ao segmento que representa os 20% mais pobres da população.
Das verbas destinadas ao ensino superior, quase a metade vai para os
20% mais ricos da população
É um funil às avessas. Ou se muda isso, modificando a política de
orientação educacional deste país, ou continuaremos remando contra a
maré e fazendo um trabalho inócuo, porque as forças contrárias são
mais poderosas do que os nossos bons propósitos
No caso da TV, a questão é séria, porque o conteúdo é hegemônico.
Estou falando da TV aberta, majoritária, que atinge 86% dos
domicílios brasileiros. Não me refiro à TV de assinatura, mais
qualificada. A TV aberta exerce um papel deseducativo de
desinformação e deformação das novas gerações brasileiras. Porque tem
como prioridade fortalecer o mercado. O que rege a grade de
programação da TV é, justamente, aquilo que dá Ibope, porque
significa maior contingente de consumidores
Não importa se essa prioridade consumista fere princípios,
parâmetros e elementos éticos que a família, a escola, a Igreja e a
sociedade, querem incutir nos jovens. Importa aumentar o índice de
consumo. Isso não seria tão grave se não houvesse um antagonismo.
Não é uma competição, é mais do que isso - há um conflito ético entre
a formação e a deformação de uma pessoa
Uma pessoa não pode ser, simultaneamente, cidadã e consumista. Há um
momento em que uma dessas dimensões é prioritária na sua vida. A
publicidade sabe muito bem que, quanto mais culta uma pessoa -
cultura é tudo aquilo que engrandece o nosso espírito e a nossa
consciência - menos consumista ela tende a ser. Um pequeno exemplo:
quem gosta de música clássica, certamente não contribui para
enriquecer a indústria fonográfica. O que garante as fortunas que
rolam nesta indústria é, a cada dia, o consumidor experimentar uma
nova banda, um metaleiro diferente; porque, se não for assim, se ele
gostar de meia dúzia de compositores clássicos, o consumo será menor,
pois comprará apenas as novas interpretações dos compositores da sua
preferência
A TV aberta não trabalha visando favorecer a cultura, porque cultura
cria discernimento crítico; ela trabalha com o entretenimento, que
esgarça os nossos princípios éticos. O que é entretenimento? É aquele
conjunto de enlatados que vem dos EUA, filmes violentos, desenhos
animados, programas humorísticos etc. Em resumo, aquilo que vemos no
domingo, Dia Nacional da Imbecilização Geral. Imbecis o
apresentador, os participantes e a platéia, que fica naquele senta-
levanta, aplaudindo. Todos obedecem a monitores invisíveis, que o
telespectador não vê em casa. Imbecis nós que, em vez de passearmos
com a família, ficamos sentados na poltrona, achando que estamos
absorvendo alguma coisa útil, e com isso quebrando o diálogo
familiar, o divertimento das crianças, o contato com a natureza, e
uma série de atividades saudáveis
E o pior, eles avisam: Sai debaixo! A gente não sai e acorda na
segunda-feira com ressaca espiritual. Ou alertam: cuidado, Alta
Tensão! Mas continuamos insistindo e marcando ponto no IbopeŠ Qual é
o segredo do entretenimento? Quem trabalha em publicidade, ou em
roteiros de enlatados, conhece a alquimia. Não é fácil criar
entretenimento, porque não se pode dar sustança ao espírito e à
consciência do público; deve-se dar, apenas, toques sensitivos,
capazes de hipnotizar o público
O rádio, por exemplo, é universal; pode-se ouvi-lo dirigindo carro,
cozinhando, plantando etc. A TV, não. Ela exige uma atitude de
submissão, provoca hipnose. Tenho de estar diante do aparelho. Aliás,
já passa da hora de as escolas levarem a TV para dentro da sala de
aula, como fazem com o texto. Debatendo o conteúdo das imagens os
alunos educarão o próprio olhar, com mais discernimento crítico
Como se faz a alquimia do entretenimento? Graças aos conhecimentos do
doutor Freud, sabemos que o nosso inconsciente gira no diapasão
início da vida / fim da vida. Somos o único animal que sabe que
nasceu e que vai morrer
Nenhum outro animal tem essa consciência. Todos os animais são
contemporâneos de seu presente. São todos aqui e agora. Nós, não só
oscilamos em nível do consciente, como temos um grande risco na vida,
que é o de não ser contemporâneo do próprio presente, como ensina,
por exemplo, a tradição budista. Envelhecemos mais rapidamente quando
vivemos na nostalgia do que passou, ou na ansiedade do que virá, e
não somos capazes de ser presentes na atualidade. Por isso, gosto
muito do poema que diz: "O passado passou / o futuro virá / mas isso,
aqui e agora, / é, de fato, um presente"
Porém, é preciso saber curti-lo
O diapasão da indústria do entretenimento é transformar o início da
vida em sexualidade, pornografia; e o fim da vida, a morte, em
violência. Ligam as duas coisas e eis o êxito, eis o crescimento do
Ibope, eis a formação de consumidores
Gostamos de ser espectadores de algo que é instigante no nosso
inconsciente e mexe com as profundezas do nosso psiquismo. Mas não
podemos estar permanentemente numa atitude de Eros. Ainda não
chegamos à fase de humanização em que as estruturas do nosso cérebro,
tributárias de répteis e primatas, tenham sido inteiramente
superadas. Costumo alertar, quando me dizem que precisamos "escolher
políticos que tenham diploma de curso universitário", que a bomba de
Hiroshima e Nagasaki foi construída por grandes cientistas, todos
eles com PhD em física, química etc; os fornos crematórios de
Auschwitz foram construídos por engenheiros; as armas biológicas, por
médicos. Ou seja, o fato de alguém ter alta qualificação do ponto de
vista erudito, do ponto de vista acadêmico, significa pouco.
Sentido da educação
Educação é formar pessoas verdadeiramente humanizadas e felizes. Isso
significa formar pessoas com muita ética, princípios e projeto de
vida
Sem isso não é possível ser humano e ser feliz. Que educação é essa
que forma um mundo de desigualdade? Que educação é essa que forma um
mundo em que a competitividade é um valor acima da solidariedade?
Que educação é essa que, ela própria, é fator de estímulo à
competitividade, na forma de provas, prêmios, humilhação dos que não
passaram de ano, dos que não avançaram - e que são a maioria? A
maioria não tira o primeiro lugar. Lembro do quanto sofri no curso
secundário, no ensino fundamental, por não ser premiado, não ter meu
nome no quadro de honra, não receber medalha, não figurar entre os
primeiros da classe, como narro em meu livro Alfabetto
Autobiografia Escolar (Ática). Considerava-me um perdedor. A educação
me ensinava a engolir a minha humilhação de ser um perdedor. Ora, que
educação é essa que não consegue trabalhar a formação de princípios
éticos? Criança em Belo Horizonte, eu ia ao centro da cidade comprar
prego para os meus carrinhos de rolimã ou para as manivelas que eu
mesmo fabricava
Naquela época, felizmente, não existia a palavra griffe, a gente
montava os próprios brinquedos. Meu pai alertava: "Não passe em
determinadas ruas do centro." Era onde ficava a zona boêmia da
cidade. Como um pai vai dizer isso, hoje, a um filho se, ao ligar o
televisor, a zona boêmia, o bordel inteiro. é despejado dentro de
casa? Um dos desafios mais difíceis e urgentes a ser enfrentado é a
formação sexual e afetiva das crianças e dos jovens
Passei 22 anos nos bancos escolares e nunca as escolas que freqüentei
abordaram as situações-limite da vida, pelas quais todos passamos, ou
haveremos de passar. A escola nunca falou em dor, perda, ruptura
afetiva, falência, morte, espiritualidade. Felizmente, só estudei
quatro anos em colégio religioso; os outros foram em escola pública.
Nos quatro anos como aluno de colégio religioso ouvi falar de
doutrina e moralismo, mas não da experiência de Deus, de valores
evangélicos, de amor preferencial aos pobres
A escola nunca falou de sexualidade; hoje, fala de cuidados
higiênicos, para evitar doenças sexualmente transmissíveis. E a
educação afetiva? A educação para o amor? A relação afetiva é
determinante na vida de todas as pessoas. Atualmente, a média
brasileira de duração do matrimônio é de sete anos. (Quem passou
dessa média, pode comemorar, porque já está no lucroŠ) É curioso que
algo tão determinante não tenha um mecanismo educativo que concorra
para essa formação
Mais curioso é que há uma exceção paradoxal: a única escola de
formação afetivo-conjugal que existe em todo o país é a Igreja
Católica, que exige o celibato de seus padres e religiosas, mas não
celebra casamentos sem que o casal faça o curso de noivos.
Felizmente, a maioria dos cursos é dado por leigos
Certa vez, uma amiga me disse: "Betto, não vou batizar os meus
filhos, nem educá-los em nenhuma religião. Eles, aos vinte anos,
decidam se querem seguir alguma religião e qual. Fui aluna de
colégio de freiras e paguei análise muitos anos para me livrar de
tabus e recalques que me foram incutidos". Eu disse a ela: "Você,
como mãe, e seu marido, como pai, têm todo o direito de educar os
filhos como bem entenderem, mas não concordo com a sua ótica. Você
não tem escolha: ou você educa, ou a Xuxa educa, não há alternativa.
Se você não der educação religiosa a seus filhos - educação aqui
entendida como valores evangélicos, princípios éticos, abertura ao
transcendente -, a Xuxa vai ensinar a eles o que é certo e errado, o
que é bom e ruim, quem é o bandido e o mocinho, qual é o jogo ético,
aético ou anti-ético da vida social. Você não tem escolha, ou seja, a
formação da subjetividade é uma questão educativa da maior
importância." A escola, na sua tradição ocidental e brasileira, por
razões históricas e cartesianas, esquece a questão da subjetividade,
uma das duas dimensões essenciais do ser humano.
* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Paulo Freire e
Ricardo Kotscho, de "Essa Escola chamada Vida" (Ática), entre outros
livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/106715?language=en
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