O ofício de mentir
29/11/2002
- Opinión
Em 20 de dezembro de 2001, uma rebelião popular derrubava em Buenos
Aires o presidente Fernando De la Rua e seu ministro Cavallo, servos
fiéis e devotados da política "neoliberal" imposta pela oligarquia
argentina e seus sócios USA-ONU-FMI desde, pelo menos, a ditadura
militar dos genocidas Videla, Massera, Agosti, Martinez de Hoz (1976-
1983) .
Quebrava-se, naquela noite, uma tradição secular no país argentino,
em que os presidentes eram postos na rua pela tropa de ocupação
constituída pelas chamadas "forças armadas nacionais", historicamente
executoras da repressão contra o povo e suas tentativas de
resistência à dominação, como bem o ensinava Simón Bolívar.
A imprensa brasileira mostrou as cenas da rebelião com destaque para
os saques de mercadoria nos supermercados, bem como para a brutal
repressão policial aos manifestantes. Nada disseram sobre as razões
de fundo que levaram um povo expoliado a perder a paciência com os
seus "representantes", com os seus "dirigentes". É necessário
conhecer algo da história da Argentina para descobrir o que ela têm
em comum com toda história popular, com toda trajetória de humanidade
submetida ao capital, ao estado, às milícias, à polícia, à igreja, ao
patrão, ao empresário, ao banqueiro.
Grande parte da imprensa brasileira serve à dominação, e este tipo de
imprensa não se desvia da sua função ao distorcer os fatos, ao
ocultar a realidade, ao mentir descaradamente, ao violentar a
verdade, ao deformar até o infinito o que ocorre num país que foi
levado ao risco da sua desaparição como tal, por cumprir a risca com
os ditames do capital financeiro que, embora não tenha pátria, reside
física e politicamente nos Estados Unidos da América (e não na
América), como já o demonstrara lúcidamente o ex-presidente
dominicano Juan Bosch no seu livro "O pentagonismo".
O narcopresidente Carlos Menem, recentemente escrachado pela
população revoltada com as suas tentativas de regresso, aboliu
durante o seu mandato a moeda nacional, implantando o dólar, moeda
dos sus patrões. Liquidou com o patrimônio nacional, entregando o
petróleo, os aviões e as telecomunicações ao capital estrangeiro, com
o aplauso da intelectualidade venal que, lá e cá, saudou o
"neoliberalismo" como uma redenção para os males do "estatismo",
"paternalismo" e demais "ismos" funcionais à dominação oligárquica e
imperialista.
A crise da dominação na Argentina não se limita aos ocupantes dos
cargos públicos notadamente ladrões e corruptos: juízes da Suprema
Corte de inJustiça servis à narcorrepública menemista, legisladores
subornados para aprovar a "flexibilização" das leis trabalhistas,
vereadores e governadores patrimonialistas. Ela compreende o conjunto
da dirigência do país: sindicalistas, hierarquia eclesiástica, cúpula
militar. Os que mandam, para usar a conhecida expressão do sociólogo
José Luis de Imaz.
Quando aquela tal imprensa brasileira fala em "falência da Argentina"
não se refere à quase total perda de legitimidade em que se encontra
o sistema de dominação, provocado por sucessivas e reiteradas
violações das suas obrigações em todos os âmbitos. O empresário
abandona a fábrica sem pagar os salários. O governante paga seus
funcionários com papéis sem valor. A cúpula eclesiástica sussurra
convites ao golpe de estado. O capital financeiro surrupia os fundos
dos depositantes. Mas não é dessa "falência" que a imprensa fala.
A imprensa do capital e da dominação esconde o fato (ou o mostra em
espaço reduzidíssimo) de que, na Argentina atual, há já mais de 5.000
clubes de troca, organizados pela socióloga brasileira Heloisa
Primavera, em que os produtores trocam diretamente, sem a mediação da
sumida moeda oficial, o fruto do seu trabalho. São mais de 15.000.000
de pessoas vivendo sem a mediação do estado e dos bancos.
A imprensa do sistema de exploração esconde o fato de que, como na
Cerâmica Zanon, muitas outras fábricas abandonadas pelos seus donos
sem pagar os salários aos seus trabalhadores, funcionam hoje sob o
comando das próprias trabalhadoras e trabalhadores auto-organizados.
Há hospitais em Buenos Aires que funcionam com cogestão dos moradores
do bairro, que decidem em conjunto com os funcionários e autoridades,
os rumos da atividade hospitalar.
Algo impensável na Argentina oligárquica e autoritária que sugou o
sangue dos seus filhos durante 185 anos. Os moradores autoconvocados
cuidam da limpeza e da segurança dos bairros, na ausência das
autoridades municipais. Grupos de voluntários organizam e sustentam
comedores para as crianças desnutridas. Comissões escolares,
comissões de fábrica, formas autônomas de gestão ocupam o espaço
deixado vago pelo capital e os políticos. Mas disto não se vê nem se
lê nada na imprensa venal.
E para quem pensar estar diante de uma alucinada propaganda
anarquista ou trotskysta, diante de um libelo anticapitalista ou
qualquer outro "ista" subversivo, deixamos a pergunta: você sabia que
na Argentina morreram, entre 1976 e 1983, mais de 30.000 pessoas,
pelas mãos da força de ocupação chamada "exército nacional"?
(Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA)
Você sabia que esse massacre tinha por fim a submissão do povo
argentino à exploração capitalista selvagem chamada "neoliberalismo"?
(A saúde mental no mundo, informe da OPAS-OMS, Washington DC: 1997)
Você sabia que os militares torturadores e assassinos foram
anistiados pela "democracia" sem nunca terem se arrependido? Você
sabia que a hierarquia católica Argentina incentivou o massacre dos
30.000 desaparecidos, abençoando a tortura e o desaparecimento de
pessoas? Você sabia que os militares argentinos criaram campos de
concentração nas províncias de Córdoba, Tucumán, Buenos Aires, onde
eram torturados e eliminados não somente os "subversivos" e seus
parentes e amigos, mas também toda pessoa que possuísse algum bem
desejado pelos cães de caça fardados? Você sabia que a empresa Ford
Motors Company e o Engenho Ledesma equiparam os grupos de extermínio
na Argentina? Você sabia que a cabeça visível do genocídio na
Argentina, o ladrão de bebés Jorge Rafael Videla, foi um aluno da
escola das Américas, centro de treinamento de torturadores mantido
pelos Estados Unidos, daonde também egressaram Somoza e Pinochet?
Se você não sabia nada ou quase nada disto, não se admire: deve ter
estado lendo a história errada.
Ou, talvez, a mera imprensa amarela
https://www.alainet.org/pt/articulo/106681?language=en
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