Medicina no Brasil: temos um novo latifúndio?

27/08/2013
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A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.
É vedado ao médico:
Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.
Código de Ética Médica
 
Como interpretar a reação de médicos brasileiros e de dirigentes dos conselhos da categoria que têm se manifestado na mídia e redes sociais sobre a presença de médicos estrangeiros que aqui chegaram através do Programa Mais Médicos?
 
Corporativista, reacionária, egoísta, petulante, despeitada, desumana, preconceituosa ou simplesmente inconciliável com a postura minimamente comprometida com a qualidade de vida dos milhares de brasileiros e brasileiras excluídos dos planos privados que comercializam a saúde como um produto de prateleira, tanto mais desvalorizado quanto mais periférico o “ponto de venda” onde esse produto é exibido?
 
Tudo isso é insuficiente para classificar a atitude e os discursos de médicos brasileiros e de seus conselhos respectivos, em resposta à chegada dos colegas estrangeiros (principalmente os cubanos) que saíram de seus países para cuidar de comunidades invisíveis a muitos que estão protestando, que não enxergam esses espaços como o lugar de identidade de humanos, iguais em direitos à clientela engravatada e de salto alto que habita a urbis. Têm todos, constitucionalmente garantido, o direito à saúde, urbanos, rurais, comunidades indígenas, encastelados, quilombolas, descalços, etiquetas de luxo, descamisados, opressores, oprimidos, independentemente da categoria social, econômica, da raça, da religião, da cor partidária, do lugar onde moram, da língua que falam, da orientação sexual ou da cara com que se apresentam.
 
Cabe reparos e surpresa, porque emergente de atores sociais que se colocam no topo da pirâmide das profissões preferidas pela elite burguesa, a deselegância das manifestações divulgadas pela mídia, aliada e subserviente dessa mesma elite, a matiz insultuosa, abrutalhada e de conteúdo escancaradamente ideológico e atentatório à dignidade pessoal e profissional dos visitantes, da postura de médicos e de Conselhos Regionais de Medicina que colocam o corporativismo medieval à frente da sensatez e do tratamento respeitoso que devemos a quem pisa este solo democrático que é o Brasil, mais ainda para exercer, legal e legitimamente, um ofício para o qual foi conclamado e não para usurpar lugares e atentar contra as regras impostas e necessárias ao desempenho da atividade médica.
 
Nesse contexto, causa temor o monstruoso, autoritário e infeliz (eufemismos para encobrir uma denominação linguística mais contundente) discurso criminalizante do presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, divulgado e publicado sem qualquer reserva ou prurido ético, logo, submetido à livre crítica de quem discorda do inusitado procedimento de um profissional de quem se espera equilíbrio emocional, quando trata a questão dos médicos estrangeiros como um caso de polícia. No entendimento do dirigente regional, “Se estiverem irregulares, é exercício ilegal da profissão. E isso é caso de denúncia à polícia”.
 
Isso significa em bom e claro português que o presidente do CRM de Minas Gerias (e quem com ele concorda) já elabora sobre os médicos estrangeiros um juízo de probabilidade de dano, pior, a vontade de “gerar um risco não tolerado a terceiros”, a ofensa intencional e dolosa à saúde pública, a adoção, como “estilo de vida”, da prática ilegal do exercício da medicina, causando habitual, frequente e regularmente perigo à saúde pública . Assim, os médicos estrangeiros aqui vieram atentar contra a incolumidade pública, portanto, devem responder pela prática do art. 282 do Código Penal que prescreve: “Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal, ou excedendo-lhe os limites: Pena-detenção de 6 (seis meses) a 2 (dois) anos. Parágrafo Único - Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa.
 
A irregularidade se configuraria, então, com a ausência de registro do título e da licença para o exercício da atividade, ainda que diplomado o agente. E já é notícia que os Conselhos estão conduzindo o processo de enfrentamento ao Programa Mais Médicos nessa direção autoritária, como já ocorreu ao Conselho Regional de Medicina de Pernambuco. Revalida ou não registra, instaura inquérito policial, denuncia como incurso nas penas do, 282, sentencia, vai aumentar a população do sistema penal quando veio para contribuir para a vitalidade do sistema de saúde. Que vergonha!
 
A decisão do presidente do CRM de Minas Gerais de dificultar a intervenção dos médicos estrangeiros não é apenas lamentável, mas ignóbil, preconceituosa, incivilizada e desumana, pior ainda, envilece a classe médica do país, permitindo à opinião pública internacional enxergar esses profissionais sob o viés da insensibilidade com as políticas públicas de garantia da saúde como um bem fundamental e da ausência absoluta de observação aos princípios que fundamentam o Código de Ética Médica.
 
Mais grave e preocupante ainda é a declaração de dirigente de órgão de classe estimular a categoria, exaltada pela suposta “ameaça” ao lugar que não ocupa (basta a leitura de informações que denunciam a ausência de médicos onde são vitais a comunidades que não oportunizam a construção dos glamourosos shopping centers que são os grandes centros médicos), a fazer o regate histórico do Manual da Inquisição, incitando médicos a se travestirem de inquisitores, para a caça às bruxas, denunciando os profissionais estrangeiros que estejam atuando no que passou a se constituir um latifúndio de propriedade dos médicos de Minas Gerais.
 
Clamar pelo sistema penal para investir contra colegas de outras soberanias políticas, revela inconfundível ruptura com princípios universais e internacionalizados de liberdade, de solidariedade e de cooperação entre os povos civilizados. Agitar bandeiras criminalizantes enrubesce a quem tem um mínimo de consciência crítica do que significa para os historicamente oprimidos não ter quem lhes prescreva um medicamento, porque ausentes os protagonistas do dever ético, político, social e humano de estar nos lugares onde esses excluídos fincam sua sobrevivência.
 
E mais, criminalizar condutas que atendem ao chamamento de salvar vidas atenta não só contra a dignidade da classe médica no país, mas também contra a dos médicos e médicas recepcionados para cumprirem uma função, antes de socialmente aprovada, politicamente correta e constitucionalmente assegurada. Antes de confrontar a medida, os que se opõem à chegada dos médicos estrangeiros, especialmente os cubanos, contra os quais mais esgrimam o preconceito e estigmatizam, deveriam fazer leituras para além dos tabloides que se acaçapam ao poder e à direita, negando as notícias sobre elogios de publicações internacionais, de Organização Mundial de Saúde, da UNICEF ao sistema de saúde cubano e seus profissionais, as informações sobre Cuba ostentar os melhores indicadores de saúde da América latina, de ter mortalidade infantil inferior à dos Estados Unidos (4,8 por mil), do povo cubano ter a expectativa de vida de 78,8, de o país contar com 78 mil médicos, um por 150 habitantes e de que os médicos cubanos, desde 1062, já trabalharam em 102 países. (Portal Brasil247 Saúde, 24-08-2013).
 
Não devemos silenciar diante dessa conduta hostil, farpada, indecorosamente corporativista, politicamente condenável, afrontosa à cidadania de profissionais que deveriam ser recepcionados e acolhidos como parceiros nas estratégias do governo, de construção de possibilidades que atendam às demandas suprimidas das comunidades que tanto necessitam de atendimento médico, para garantia da própria essência e respeito á condição humana do povo dessas comunidades.
 
Que o branco das vestes médicas que tanto se tingem de vermelho em razão do sangue que por vezes são obrigados a deixar fluir nas intervenções que salvam vidas não seja maculado pela intolerância e a ufania tão desprezíveis quanto a tirania e a opressão dos que se alimentam da truculência para manter suas verdades.
 
Colocamos nossa militância, nossa solidariedade e nossa condição de advogada à disposição de qualquer médico e médica estrangeiro do Programa Mais Médicos, em defesa da saúde de nosso povo, que sofram qualquer medida que atente contra sua condição de pessoa, de profissional e de cidadão em harmonia com o respeito e a preservação da dignidade humana.
 
- Marília Lomanto Veloso é mestra e doutora em Direito Penal (PUC/SP); professora e coordenadora do Curso de Direito da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS; presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos; membro da Associação de Advogados e Advogadas de Trabalhadores Rurais do Estado da Bahia – AATR; e membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAAP.
 
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