Alianza País: Da teoria da conspiração à real politik

12/10/2010
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¿O que aconteceu no Equador? ¿O que está acontecendo? ¿Houve uma tentativa de golpe de Estado na insubordinação policial? Os acontecimentos recentes suscitaram uma dupla interpretação. A versão governamental tem a seguinte argumentação: os policiais e setores das forças armadas do Equador tentaram um golpe de Estado numa linha de reconstituição oligárquica suscitada pelos rumos políticos de um governo soberano e que vinha mantendo uma agenda de ruptura com o modelo neoliberal e que, alem disso, está produzindo profundas transformações democráticas em benefício do povo, em especial dos setores mais pobres; esta tentativa de golpe de Estado foi evitada pela mobilização massiva do povo equatoriano, disposto a confrontar a direita e a salvar este processo que se autodenominou revolucionário, e, assim mesmo, pela valente e firme atitude do Presidente do Equador que manteve sua coerência mesmo nos momentos mais dramáticos.

Até aqui uma interpretação que tem como eixo diretor o governo equatoriano e que de alguma maneira consta em pronunciamentos e análises de setores identificados com a esquerda política do continente. Nesta visão a realidade é simples e contundente e as linhas que demarcam a esquerda (os bons) e os que não são, aparecem claras e transparentes.

Sem embargo, os fatos, como disse Lênin alguma vez, são tenazes e evidenciam uma realidade mais bem prosaica e diferente: ao parecer, e tal como confirmam todos os dados existentes, nunca se tratou de um golpe de Estado, porque não houve um pronunciamento político neste sentido dos setores da polícia e das forças armadas envolvidos no conflito, senão, mais bem, e por mais absurdo que possa parecer, o núcleo do conflito girou ao redor de reclamações administrativas e financeiras por parte da tropa da polícia equatoriana, aparentemente lesados pelo Código de Servicio Civil que foi aprovado pela Assembléia Nacional do Equador, mas que foi radicalmente mudado pelo veto presidencial de Rafael Correa. O fato de que uma reclamação administrativa tenha gerado a crise política mais importante do Equador nos últimos anos chama à reflexão, porque este fato permitiu que aflorassem vários fenômenos aparentemente distintos e contraditórios.

Em primeiro lugar está a oposição dos movimentos sociais do Equador, entre eles o movimento indígena, que se apartaram tanto do governo da Alianza País quanto dos policiais equatorianos insubordinados, ainda que tenham divulgado algumas declarações desafortunadas de vários de seus líderes, mas a organização indígena aproveitou a conjuntura para ressaltar o que consideram o centro do debate político: os rumos extrativistas e neocoloniais que o governo da Revolución Ciudadana está assumindo. As demais organizações sociais, entre elas os sindicatos do setor público, aproveitaram a conjuntura para manifestar seu mal-estar com várias leis aprovadas pelo regime e que lesam seus direitos trabalhistas. Esta posição do movimento social equatoriano permite compreender a orfandade do governo em seus momentos mais dramáticos, quando necessitava de forma desesperada dessa organização social, a qual sempre havia considerado como resíduos corporativos do neoliberalismo, se viu completamente só, e mais, rodeado de afetos, solidariedades e boas intenções de um grupo reduzido de pessoas que, se bem são importantes, quando se trata de disputar e defender o poder geralmente são insuficientes se não são fenômenos majoritários e contundentes. Nessas horas de solidão, o Presidente equatoriano Rafael Correa teve que fazer algo que jamais havia imaginado: negociar sua estabilidade política com as forças armadas.

Em segundo lugar está o próprio sistema político equatoriano. A institucionalidade política revelou-se incapaz de exorcizar os fantasmas que ela mesma havia convocado. A série de leis aprovadas no legislativo e que implicaram um processo de diálogo, consenso e acordos com atores distintos, e que produziram vários projetos de lei cuja redação não satisfazia a muitos deles, mas que demonstravam que se teve de ceder para manter um frágil equilíbrio, foram mudadas de forma radical no momento em que chegaram ao executivo para sua aprovação final e alteraram, precisamente, esse equilíbrio a que se havia chegado trabalhosamente. O veto presidencial a várias destas leis como, por exemplo, a Ley de Educación Superior, o Código Orgánico de Servicio Civil, o Código Orgánico de Ordenamiento Territorial, entre outras, mudou o equilíbrio com o qual foram aprovadas no legislativo e converteu o Presidente da República em legislador de última instância.

Os assembleístas do partido do governo nunca puderam contradizer nem apresentar a mais mínima resistência a essa vontade do executivo e, finalmente, nunca respaldaram nem reconheceram os acordos prévios que eles mesmos haviam subscrito com vários atores sociais, políticos e institucionais para alcançar os votos necessários para a aprovação dessas leis. Isto determinou uma perda de confiança na legislatura e uma irritação de vários setores sociais que viam que sua vontade de chegar a acordos e realizar concessões eram tábula rasa para o Executivo.

As reiteradas mobilizações das universidades, dos servidores públicos, dos aposentados, dos indígenas, entre outros, mostravam essa irritação social. Não obstante, o sistema político equatoriano não dava mostras de absorver essa energia social e canalizá-la dentro da institucionalidade vigente, porque esta institucionalidade falava um só idioma e em um só sentido: aquele do partido do governo. A Alianza País estava reconstruindo a institucionalidade política equatoriana a partir do autismo e da arrogância do poder. Quando se produziu a crise política, o sistema político equatoriano foi incapaz de resolvê-la porque ele mesmo era parte do problema. Tal como estão as coisas, agora a Alianza País deverá criar as garantias de sua própria sobrevivência política e resolver a crise sem apelar a um sistema político questionado, uma verdadeira tarefa para Sísifo.

Em terceiro lugar estão os meios de comunicação convertidos em vítimas propícias da Revolución Ciudadana. Há poucas horas de acontecido o conflito político o governo optou por “curarse en sano”, evitou a disputa midiática e semiótica do conflito assumindo o controle total da informação. Nesse processo o governo posicionou a idéia de que a democracia estava em jogo, atacada pela direita camuflada em setores da polícia que haviam sido objeto de manipulação de setores claramente identificados com a oposição (falou-se com insistência do Partido Sociedad Patriótica e de seu líder Lucio Gutiérrez). Para além de que esta versão seja plausível está o fato de que o momento em que finalmente se abriu o sinal para todos os meios televisivos se teve acesso a informações que contradiziam as informações oficiais e que geravam dúvidas sobre os fatos acontecidos.

Os meios de comunicação públicos, que até então haviam lutado por sua própria legitimidade tratando, inclusive, de ser minimamente críticos com o governo, nesta conjuntura mais bem demonstraram que a semiótica e a comunicação são fundamentais na hora de disputar o poder e que chegado o momento a imparcialidade é uma máscara incômoda: a verdade sempre é uma prerrogativa do poder. Os meios de comunicação estão outra vez no centro do debate porque apresentam uma realidade e uns fatos que contradizem as versões oficiais. Agora o governo tem que disputar os sentidos entre sua versão de que se tratou de uma tentativa de golpe de Estado e as informações que vão aparecendo paulatinamente e que indicam que nem sequer se tratou de um seqüestro do Presidente. O problema é que esta disputa rasga a hegemonia ideológica do partido do governo e começa a fraturá-la, e sem essa hegemonia ideológica, podem fraturar-se também o único suporte real que o regime tem no momento – as adesões clientelísticas e eleitorais –, pondo em risco sua estabilidade política.

 

Mas ainda há mais: a situação econômica do Equador não favorece ao governo. Este não pode apresentar números de crescimento econômico, geração de emprego, investimento, redução da pobreza, porque os números demonstram que, ao menos no que concerne à economia, a proposta da Alianza País fracassou e não tem perspectivas de superar-se. O desemprego aberto e encoberto alcança dois terços da população equatoriana com capacidade de trabalhar. O custo da cesta básica familiar elevou-se a seus maiores valores na história: 550 dólares e o salário mínimo cobre apenas 43% desta cesta. De fato, a pobreza aumentou. Tudo isto num contexto de bonança dos preços do petróleo, um incremento importante na arrecadação fiscal e expansão das exportações não-tradicionais. Não obstante, o regime da Alianza País ainda necessita de mais recursos econômicos, sobretudo para resolver os problemas de déficit fiscal. Nesse sentido, apresentou uma proposta de lei para ampliar a capacidade de endividamento até um 50% da renda nacional, e pagar as aposentadorias em bônus. Uma proposta que provocou a oposição dos aposentados e dos trabalhadores do serviço público contra o regime e que anuncia mobilizações sociais futuras. A economia é uma bomba relógio para a Alianza País que, por enquanto, não consta na sua lista de prioridades, mas que no médio prazo revelará sua importância.

Após esta crise, a Alianza País sabe que uma coisa é o discurso e outra as necessidades do poder. Pode ser que a imagem do presidente tenha se fortalecido nessa conjuntura, mas isso não implica que as condições de sua própria governabilidade sejam as melhores. Mais bem o contrário: a Alianza País sabe que neste simulacro não pode confundir as sombras no espelho e necessita respostas contundentes que lhe possibilitem garantir, a longo prazo, sua permanência no poder, e defender aqueles graus de liberdade no sistema político que a converteram em força hegemônica. O descontentamento de vários setores sociais, entre eles as forças armadas e a polícia nacional, estão aí, são inquestionáveis. Se a Alianza País opta por resolver a crise suscitada pela insubordinação da polícia nacional sem resolver previamente as causas de um conflito que não compreende apenas a polícia senão a outros setores sociais, sabe que o simulacro do golpe de Estado pode converter-se em uma profecia auto-cumprida. Mas não pode resolver as condições de sua governabilidade sem mudar o formato político de sua hegemonia, e não pode mudar este formato político sem resignificar os espaços políticos correspondentes, isto é, vulnerar essa hegemonia.

A Alianza País é um movimento autista e no seu dicionário político não existem as palavras “diálogo” e “consenso”. Está auto-convencida de que seu processo político é uma verdadeira revolução e traçou uma linha demarcatória entre aqueles que subscrevem seu projeto de forma incondicional e o resto aos quais considera seus inimigos, incluídos os movimentos sociais. Com a Alianza País não há meio termo. Justamente por isso não há espaços nem condições nem para crítica, e menos ainda para a autocrítica.

Mas o momento de refundação do sistema político está se esgotando. O impulso histórico que levou a Alianza País ao poder está se fraturando porque a sociedade equatoriana começa a mudar sua ordem de prioridades. Esse é o seu maior drama e aí radica o maior paradoxo: como a Alianza País pensa em recuperar esses graus de liberdade com os quais estava reconstituindo a institucionalidade e o sistema político sem fraturar as condições de sua própria governabilidade? De que maneira o sistema político equatoriano pode recobrar sua legitimidade sem fazer tábula rasa de si mesmo e ter de colocar o contador no zero? Como mobilizar a uma sociedade, sobretudo em momentos nos que mais a necessita e que nada tenham que ver com as eleições, quando se tratou de desestruturar, manipular e desmobilizar a essa mesma sociedade? Como apelar à organização social quando se tratou de cooptá-la e convertê-la em um apêndice do regime ou, em seu defeito, destruí-la? Como dizer à cidadania que a verdade apresentada pelos meios de comunicação governamentais não são, senão, outra estratégia de dissuasão e que a verdade está em outro lado?

A Alianza País está entre Escila e Caribdis. Para sair da crise terá que apelar ao diálogo e ao consenso, mas isso a debilita politicamente, porque dará a percepção de vulnerabilidade e esse é o sinal que a oposição necessita. Em troca, se mantém sua posição de hegemonia e de imposição, é somente em questão de tempo para que sua teoria da conspiração se converta em uma profecia auto-cumprida. A insubornadinação policial e militar demonstrou que o rei está nu e, ao que parece, coloca o tempo político da Alianza País em contagem regressiva.

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