O golpe nosso de cada eleição

Decisiva, em 2016, foi a aliança da dissidência do executivo com o Congresso, de que resultou o farsesco impeachment, ponto de partida para o governo de direita.

23/07/2021
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A ciência política clássica atribui aos golpes de Estado três características definidoras: (i) intervenção militar, (ii) ação rápida e (iii) certa margem de surpresa (Bobbio et alli. Dicionário de política). Nesse sentido também tratadistas brasileiros como Paulo Bonavides (Ciência política, 1972). Desses elementos, porém, os golpes  se desvencilham na contemporaneidade, e o Brasil, nesse sentido,  fornece farta matéria prima para  análise. Os golpes, por exemplo, não  observam  mais o caráter surpresa– são, até, longamente preparados mediante campanhas políticas e ideológicas de massa, protagonizadas pelos meios de comunicação em suas variadas modalidades; nem  muito menos se cingem, do ponto de vista operativo, ao  assalto ao poder (na forma de putsch), ou à ação  repentina. Veremos que podem instalar-se ao cabo de longo processo, e desenvolver-se mesmo de forma “sistemática e suave”, como observa Noam Chomsky refletindo sobre nosso último golpe, que, operado em 2016, chega aos dias de hoje sem dar sinais de haver completado sua obra perversa. Daí ser denominado por alguns constitucionalistas como “regime de exceção permanente”.  A classificação do filósofo americano deve ser considerada como uma subespécie dos golpes ordinários e institucionais, operados pela burocracia estatal.

 

O golpe de Estado, na atualidade, muito raramente é uma execução exclusiva da caserna, como foi, entre nós,  a implantação do Estado Novo, quando a ditadura simplesmente se  desfez da Constituição,  do Congresso e dos governadores estaduais. Seu modelo é o golpe de Luís Bonaparte, presidente que destruiu a Assembleia Nacional francesa, em 1851, para fazer-se imperador. No Brasil, em 1937, os generais Góes Monteiro e Eurico Dutra derrogaram a república democrática de 1934 para transformar o presidente Getúlio Vargas em ditador.

 

Em regra – o golpe procura legitimar-se (ou fazer-se mais facilmente aceito) mediante  o concurso homologatório do legislativo e do judiciário. Assim no Brasil, em 1955, em 1961 e em 1964. Quando do 11 de novembro de 55, a deposição de Carlos Luz e o impedimento de Café Filho – levados a cabo pelos tanques da Vila Militar comandados pelos generais Teixeira Lott  e  Odílio Denys –, foram constitucionalizados por resoluções da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e, mais tarde, sancionados pelo STF, no famoso julgamento de habeas corpus impetrado pelo presidente Café Filho, que pretendia retomar suas funções após alegado tratamento de saúde. A colaboração congressual prossegue.  Em 1961, diante da intentona dos ministros militares, coube ao Congresso a aprovação de emenda parlamentarista mediante a qual se consolidava  o golpe contra os poderes presidencialistas e constitucionais  de João Goulart. Em 1964, a participação  do Congresso foi ainda maior, pois a consumação do golpe teve início com a declaração da vacância da presidência da república (quando, consabidamente, Jango se encontrava em Porto Alegre) pelo senador Auro de Moura Andrade (presidente  do Congresso Nacional), para, na sequência, mutilado com dezenas de cassações de mandatos, eleger presidente o ditador  que os generais golpistas haviam escolhido.

 

O “caso” brasileiro é exemplar porque reúne a participação de todos os poderes que operam na república, a saber, o executivo, o judiciário e o legislativo, e mais aqueles poderes que não são referidos no Art. 2º da Constituição vigente: o poder econômico nacional e multinacional, e seus aparelhos, além da caserna. E ainda o poder do império hegemônico, que, aliás, dá início ao trabalho de desestabilização do governo de centro-esquerda, no mandato do presidente Lula, e sob a regência do democrata Barack Obama. Repetindo, aliás, seu papel na preparação dos golpes de 1954 e 1964.

 

Na sequência da preparação da opinião pública pelos meios de comunicação de massa, o primeiro poder a operar o golpe foi o judiciário mediante a chamada operação Lava Jato, cujas relações promíscuas com o Departamento de Justiça dos EUA, via procuradores e via juiz de piso, foram devassadas e são hoje de conhecimento público. A propósito, é bom ter presente que a “república de Curitiba”, com suas ilegalidades e irregularidades, destruiu grandes grupos brasileiros de engenharia que concorriam com corporações dos EUA. Não pode ser mera coincidência que o ex-juiz e ex-ministro hoje trabalhe na empresa de consultoria norte-americana Alvarez & Marsal, escritório que atua como administradora judicial da Odebrecht, empreiteira investigada (e arruinada) pela Lava Jato.

 

Coube ao judiciário impedir a posse de Lula na chefia da Casa Civil da presidência da República, cassar sua candidatura à presidência da república (deixando-se acuar por mensagem do general ministro da defesa), e afinal condená-lo e encarcerá-lo por 580 dias, para, com o golpe consumado e o governo do capitão consolidado, reconhecer que a 14ª vara federal de Curitiba não tinha competência para julgar o ex-presidente, e que o juiz sentenciador padecia de  exuberante suspeição.

 

Decisiva, em 2016, foi a aliança da dissidência do executivo -- operando dentro dele por intermédio do vice-presidente da República --, com o Congresso, de que resultou o farsesco impeachment, ponto de partida para o governo de direita, que abriu caminho para a primeira experiência brasileira de governo de extrema-direita oriundo do pronunciamento eleitoral. Assinale-se que desde a interinidade de Michel Temer até aqui, o Congresso brasileiro caminhou para além daquele papel de coadjuvante do governo dos militares (o anterior, imposto ao país em 1º de abril de 1964), para tornar-se agente importantíssimo, emprestando ao golpe o caráter de legalidade. Isso porque as “reformas” que corroem a Carta Cidadã de 88, descaracterizando-a e aos poucos inviabilizando-a, se fazem pelo poder legislativo, portanto sob o manto legitimador da soberania popular e da legalidade. É a característica do golpe institucional continuado, ou sistemático, servido em doses homeopáticas, mas continuamente.

 

Depois das contrarreformas do período Temer, como a criminosa Emenda Constitucional nº 95, que virtualmente colapsa o investimento do Estado no desenvolvimento (mas não o impede de gastar quase R$ 6 bilhões no financiamento da propaganda política nas eleições de 2022) e as “reformas” trabalhista e previdenciária, todas tendentes a condenar às calendas gregas as esperanças de um estado social, o Congresso se esmera no preparo de privatizações que atentam contra o patrimônio nacional, reduz os recursos para a educação,  ciência e a tecnologia, e ameaça a democracia com a promessa de uma reforma política cujos termos são sonegados à opinião pública.

 

Sabe-se que o legislativo prevê o “distritão”, ideia de jerico que nasceu da cabeça de Michel Temer (o perjuro), mediante a qual se acaba com o voto de legenda, isto é, com a justificativa para a existência de partidos, sem os quais não se conhece uma só experiência de democracia representativa.

 

Associado ao capitão Bolsonaro em tudo o que é ruim, o Congresso tenta a implantação do voto impresso, anacronismo que vem do império das atas falsas e da democracia das eleições fraudadas, que conheceram seu termo com a urna eletrônica, até aqui aprovada por dezenas de testes a que se tem submetido desde as eleições de 1996, sem sofrer questionamentos sérios. Mas o ainda presidente ameaça bagunçar o coreto se o Congresso não aprovar o voto impresso e ele não for reeleito,  porque, segundo o pulha, sua derrota será  a prova da fraude que diz já haver campeado nas eleições que, para nossa tragédia, venceu em 2018.

 

Como anunciado pelo lamentável, mas politicamente poderoso, presidente da Câmara, a direita, ameaçada de ver seus sonhos de permanência pacífica no poder ruírem por terra em 2022, já acena com novo golpe parlamentarista, agora denominado ora de “presidencialismo mitigado”, ora de “semipresidencialismo”. Temerosa quanto à possível eleição de Lula, a direita se adestra desde já para impedi-lo de governar. É uma das muitas hipóteses de golpe que circulam entre a Faria Lima e os gabinetes de Brasília.

 

As provocações do capitão, suas irresponsáveis alegações de fraude em eleições passadas e o criminoso anúncio de que haverá fraudes no próximo pleito; o controle do congresso por uma maioria reacionária; as tergiversações do presidente do STF;  a vergonhosa omissão da procuradoria da república em face dos reiterados crimes políticos, e de prevaricação, cometidos pelo ainda presidente, e as intoleráveis mensagens, notas e manifestações de militares em comando... tudo isso são ingredientes de uma crise em marcha. É a marcha da insensatez com que conta o inexcedível capitão.

 

Não são poucas as forças, ou coalizões de interesse que se incomodam com a expectativa da ascensão de um governo de centro-esquerda no Brasil. Não interessa aos EUA de Obama ou Trump ou Biden um governo brasileiro que volte a professar uma  política externa “ativa e altiva”; os fardados, uns por ignorância incurável, outros por indústria, quase todos por autismo político, confundem com “comunismo” qualquer  expectativa de melhoria das condições de vida de nossa população miserável. A burguesia aqui instalada de há muito renunciou ao pleito de um projeto nacional. A direita jamais aceitou o jogo democrático, e sempre foi avessa à rotatividade de poder.  E ainda há muita carne no osso que  eles roem.

 

Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

https://www.alainet.org/fr/node/213194
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