Pedro Castillo: o homem de um país invisível

Não é apenas mais uma eleição: o resultado dirá não só quem será o próximo presidente, mas que tipo de modelo econômico e político se tentará construir e quais conflitos haverá em um país em crise política prolongada.

09/06/2021
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Castillo mobilizou apoio popular em Lima
Foto: AFP
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É isso que indicam os números que o Escritório Nacional de Processos Eleitorais (Onpe) divulga a cada meia hora e que todos acompanham em rádios, televisões, redes sociais, vendo como Castillo vai se colocando, progressivamente, à frente de sua adversária, Keiko Fujimori que tem com poucas chances de vitória.

 

A tendência parece difícil de reverter. Fujimori afirmou na noite desta segunda-feira (7) que os votos estrangeiros poderiam “igualar” o resultado, e denunciou a existência de “indícios de fraudes planejadas e sistemáticas nas mesas de votação”. O anúncio da candidata da Fuerza Popular ocorreu quando Castillo a superava por 90 mil votos, com 94,47% das atas apuradas, tanto do Peru quanto do exterior.

 

Não é apenas mais uma eleição: o resultado dirá não só quem será o próximo presidente, mas que tipo de modelo econômico e político se tentará construir e quais conflitos haverá em um país em crise política prolongada. Castillo, que durante o primeiro turno eleitoral era incluído na categoria "outros" nas pesquisas eleitorais, e era conhecido principalmente por sua liderança na greve de professores de 2017, emergiu como produto dessa crise e de seus acertos.

 

O significado da eleição ficou claro desde quando se soube que o camponês professor, candidato do partido Peru Libre, mas sem ser proveniente de sua estrutura, enfrentaria Fujimori. A ameaça percebida pelo status quo peruano, pelos poderes empresariais, pela mídia, pelos partidos de direita, foi proporcional à campanha de medo, muitas vezes de terror, operada contra Castillo e contra o que significaria um governo sob sua presidência.

 

A mobilização contra o candidato de esquerda foi avassaladora, no contexto de um país com forte concentração da mídia nas mãos do grupo El Comercio e da mídia aliada. Os principais jornais e canais de televisão passaram a afirmar dia após dia que sua vitória levaria o país ao comunismo, a uma crise econômica, com alta do dólar, desemprego, roubo de poupança, expropriações massivas. Essas ameaças, no marco de um país atingido pela pandemia e pela recessão, se somam a outra: as ligações que existiriam entre Castillo e o terrorismo.

 

Esta última buscou ativar as fontes de medo, trauma e dor enraizadas na sociedade peruana, de uma forma diferenciada no interior do país em relação à capital, Lima. Castillo foi terruqueado, palavra usada na política peruana para acusar alguém de terruco, ou seja, terrorista ou próximo do que foi o Sendero Luminoso. O dispositivo do medo buscou, assim, vincular o candidato presidencial à crise econômica e à violência, dois fantasmas profundos da história recente do Peru.

 

A campanha midiática de medo foi acompanhada por um processo de construção de uma imagem democrática e maternal de Keiko Fujimori. Uma das expressões mais simbólicas dessa operação foi o papel que Mario Vargas Llosa desempenhou no apoio ativo a Fujimori. O Prêmio Nobel de Literatura mudou completamente sua postura de trinta anos. Em 2016, por exemplo, quando Keiko Fujimori chegou ao segundo turno e finalmente perdeu por 40.000 votos para Pedro Pablo Kuczynski, ele havia afirmado: “Keiko Fujimori é Fujimori, tudo o que Fujimori representou está vivo na candidatura de Keiko Fujimori e seria uma grande tentativa de recuperar uma das ditaduras mais corruptas e sangrentas que já tivemos na história do Peru”.

 

Um dos momentos culminantes dessa virada ocorreu durante a cerimônia de encerramento de campanha de Fujimori, na quinta-feira antes das eleições. Ali, entre repetições do refrão da campanha “hoje enfrentamos uma grave ameaça, temos que vencer o comunismo”, Álvaro Vargas Llosa, filho de Mario, subiu ao palco para abraçar Keiko e afirmar que “a causa da liberdade é hoje Keiko Fujimori” .

 

A violência midiática, assim como a unificação de atores historicamente opostos, foi um reflexo da ameaça percebida diante de uma possível vitória de Castillo, que chegou com uma proposta central: refundar a pátria por meio de um processo constituinte. O candidato do Peru Libre colocou em discussão a necessidade de desmontar a Constituição elaborada em 1993, sob governo de Alberto Fujimori e recuperar a soberania sobre os recursos estratégicos minerais, energéticos, centrais para a economia peruana.

 

A rapidez com que emergiu sua liderança pode ser explicada pela existência de profundo descontentamento social com a ordem econômica e política. Um dos últimos acontecimentos que evidenciou esta situação foram as mobilizações massivas de novembro, ocorridas antes da destituição do Presidente Martín Vizcarra pelo Congresso, seguida da nomeação de Manuel Merino como chefe do Executivo. Este último permaneceu na presidência por cinco dias, até que renunciou devido à magnitude dos protestos.

 

Esse evento mostrou três elementos centrais. Em primeiro lugar, a decomposição política, partidária, institucional, num país onde todos os presidentes desde 2001 foram acusados de corrupção - como Keiko Fujimori - e o anterior, Alberto Fujimori, foi condenado a 25 anos de pressão por crimes contra humanidade. Em segundo lugar, a magnitude de uma mobilização que não se via em Lima desde a marcha de los cuatro suyos (marcha simbolizando a união das quatro regiões que compunham o império Inca) em 2000 contra Fujimori. Terceiro, a pouca organização dos que se mobilizaram, a pouca capacidade de sindicatos, partidos e movimentos do país.

 

Nesse contexto político surge a liderança de quem lidera a apuração e pode ser o próximo presidente, e em uma situação de profunda desigualdade social entre as províncias e a capital, e dentro da própria Lima, como mostra, por exemplo, pelo contraste na zona de Miraflores e nas colinas de Villa María del Triunfo.

 

O tamanho das apostas pode influenciar o momento do anúncio oficial do resultado. A reclamação de fraude por Fujimori, previsível em caso de resultado adverso como o apresentado ao longo da recontagem, pode afetar esse processo. Já Castillo, que está em Lima, mostrou que mobilizou apoio popular, o que pode ser decisivo em caso de queda de braço para que o resultado final seja anunciado.

 

Publicado originalmente em 'Página/12' | Tradução de César Locatelli

 

09/06/2021

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Pedro-Castillo-o-homem-de-um-pais-invisivel/6/50779

 

https://www.alainet.org/fr/node/212588?language=es
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