Sobre a “origem” e as “responsabilidades” da pandemia (II)
- Análisis
Prosseguindo-se a reflexão começada na primeira parte deste artigo, consideremos a melhor hipótese para a origem da atual pandemia: a de que o novo coronavírus não foi forjado artificialmente (como arma para a concorrência geopolítica capitalista), mas que foi um “acaso provocado”, um fenômeno zoonótico causado pela destruição intensiva do meio ambiente.
Esta última possibilidade (parcialmente “natural”), já foi afirmada por vários cientistas de diversas nações, e recentemente reiterada pelo próprio diretor do Programa de Emergências da OMS, Mike Ryan (“El coronavirus no fue hecho en laboratorio”, Notícias ONU, maio/2020).
É certo, porém, que os Estados Unidos – cujo governo de extrema-direita tenta faturar geopoliticamente com a catástrofe, ao jogar seu ônus para a China – têm um histórico de uso de armas biológicas, em conflitos nos quais seus objetivos militares estratégicos se viram dificultados (casos de Cuba e Coreia, como apresentado no início deste artigo). Por outro lado, vivemos um momento histórico peculiar, em que a economia e poderio militar chineses florescem, e os EUA veem sua vantagem econômica e geopolítica diminuir vertiginosamente. De modo que motivos não faltariam à superpotência dirigida por um presidente dos mais insensatos que já passaram pelo cargo.
Contudo, diante das pesquisas até agora publicadas, e da própria dinâmica altamente contagiosa (e portanto incontrolável) deste vírus em particular, não parece crível a hipótese de que o novo coronavírus tenha sido fabricado em laboratório.
Neste caso, a doença covid-19 consiste em uma zoonose; o que, entretanto, não modifica a conclusão (a mesma que valeria para a hipótese “proposital”) de que a “responsabilidade” por essa calamidade sanitária é do regime produtivo concorrencial capitalista, um modelo gerido e imposto ao planeta pelas nações “centrais” do capitalismo. E portanto, são as grandes potências econômicas as principais “responsáveis” pela pandemia: especialmente os próprios EUA e as nações, suas subalternas diretas, que compõe o clube dos países dominantes do regime (dito G7). Pois que são estes membros do G7 os “dirigentes” do brutal desequilíbrio do metabolismo homem-natureza, notadamente após a disseminação neoliberal (variação agressiva da prática capitalista, que no fim dos anos 1970 se impõe como resposta conservadora à crise estrutural-lógica do sistema).
Esta “responsabilidade” é nítida se se tem em conta que são estes países dominantes os que (ainda) dirigem o “sentido da história” – no conceito do filósofo-historiador Caio Prado Júnior. São eles que dão a linha da produção global, condenando o sistema-mundo a um regime desregulamentado (“liberal”), sem planejamento racional e repleto de desperdícios significativos, segundo seu insustentável paradigma de progresso como “eterno crescimento econômico”.
Como ilustração da falta de racionalidade “liberal”, dentre tantos casos, veja-se a denúncia feita há alguns anos pelo ganhador do prêmio Nobel de Química, Thomas Steitz (da Universidade de Yale, EUA): “os laboratórios farmacêuticos não pesquisam antibióticos efetivos... preferem centrar o negócio em remédios que deverão ser tomados durante toda a vida” – e completa – “muitas das grandes farmacêuticas fecharam suas pesquisas sobre antibióticos porque estes curam as pessoas” (“Indústria farmacêutica não quer curar pessoas”, Terra, 2011).
Como já o mostraram tantos pensadores (caso de Adorno e Horkheimer, em sua Dialética do Esclarecimento), a ideia de “progresso capitalista” é uma ideologia de controle social e da natureza: longe de consistir em um efetivo “desenvolvimento humano”, o tipo de “progresso” empreendido pelo regime capitalista se reduz a um mero “progresso instrumental”. Seus “avanços” – tão somente “técnicos” –, a despeito de qualquer ética ou senso democrático, visam a sujeição dos seres humanos (“peças” de sua máquina produtiva) e o domínio dos recursos naturais (a Mãe-Terra vista como matéria-prima), em proveito dos lucros de parcas megacorporações.
É este nosso cenário global hoje: crescentemente conflitivo e insalubre; ademais de sujeito a interesses de cada vez menos monopólios – estes “novos reis do mundo” (donos até mesmo das guilhotinas).
Pandemia: expressão da crise civilizatória
Há décadas se adverte que este tipo de “desenvolvimento” não planejado e irresponsável, pautado por uma ideia irracional de (ilimitado) “crescimento econômico”, ameaça a vida no nosso (limitado) planeta.
Conforme João Pedro Stédile, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (“Esta pandemia é a expressão mais trágica da fase atual do capitalismo”, Brasil de Fato, abril/2020): a atual calamidade é um trágico emblema do capitalismo contemporâneo, “da crise civilizatória que vivemos”; a eclosão de inúmeras novas zoonoses é “parte da consequência de termos desequilibrado as forças da natureza, com o modelo de produção agrícola industrial em alta escala”; “a maioria dos novos vírus tem se propagado através da criação em grandes escalas de animais, aves, suínos, bovinos”.
Essa advertência de Stédile é corroborada por François Moutou (da Sociedade Francesa para o Estudo e Proteção dos Mamíferos): “Um ecossistema pouco alterado é rico em uma grande diversidade de espécies, ao contrário de uma criação de gado em que se cria uma única espécie e cujos indivíduos são o mais homogêneos possível”. Neste caso, afirma este epidemiologista: “a chegada de um vírus, de uma bactéria, para um indivíduo da criação, se traduzirá provavelmente na invasão de todos os demais, dando lugar a uma epidemia” (“Las zoonosis, entre la especie humana y los animales”, Viento Sur, maio/2020).
Para se evitar novas catástrofes humanitárias – pondera ainda o líder do MST – é preciso com urgência se pôr em debate o tema da “soberania alimentar”, da “agroecologia”, da necessidade de se investir na “agricultura camponesa-familiar”: a “reforma agrária não é mais um tema [somente] camponês… o que está na pauta agora é a produção de alimentos saudáveis para toda a sociedade”.
Precisamos portanto, de acordo com o que coloca Stédile, não somente mudar a “estrutura da propriedade” da terra, mas os atuais “paradigmas” produtivos: essa concepção, sujeita ao capital, que nos é imposta desde cima por organizações de manutenção do sistema (como o FMI, o Banco Mundial e o seu braço armado, a OTAN – a que se apela quando a violência econômica encontra alguma resistência física).
***
Em meio a este palco desastroso, Trump e a direita estadunidense atacam a China.
Já com vistas à campanha pela reeleição, o governo “republicano” tenta assim ocultar sua desastrada resposta à pandemia, bem como o fracasso histórico do sistema de saúde de sua riquíssima e “avançadíssima” nação – aproveitando-se para tanto da agravada xenofobia, do sentimento anti-chinês que, com o apoio da grande mídia conservadora, cresceu com a calamidade sanitária mundial. Por outro lado, Washington busca alastrar argumentos inconsistentes junto à opinião pública e à dita comunidade internacional, para obter respaldo a sua petição por privilégios, na guerra comercial que vem travando contra Pequim.
Aliás, assessores de Trump já afirmaram que sua campanha será centrada em culpar a China pelo caos, prometendo ressuscitar a economia abalada pela “pandemia chinesa” (“Culpem a China e reativem a economia”, UOL, maio/2020).
Para os EUA, a ascensão econômica da China é uma real ameaça, senão a sua “segurança nacional”, como alardeiam certos extremistas, mas decerto a sua hegemonia planetária – sem competidores desde a derrota da União Soviética.
Planejamento estatal e solidariedade global
Mas vejamos o exemplo da China: uma nação com estado forte que, longe ainda de ser “comunista” (apesar do nome do partido no poder), tem ao menos capacidade de planejamento social; e que longe de ser “rica” (se analisamos a situação per capita), vem dando seguidas mostras ao mundo de ser menos autocentrada que os EUA.
Em fevereiro, equipe da OMS constatou que: “deparados com um vírus até então desconhecido, a China efetuou o mais ambicioso, ágil e agressivo plano de controle de transmissão na história”.
A estratégia do gigante asiático, para enfrentar a doença com a rapidez que o surto exige, foi:
i) isolar não apenas a província infectada, mas ainda restringir movimentos dentro das cidades, com o uso da tecnologia e da força pública;
ii) direcionar para a saúde recursos materiais e humanos (testes, aparatos de proteção, maquinário hospitalar, equipes médicas e de enfermagem), sem restrições de “tetos orçamentários” (como no economicismo-liberal, de visão curta), conforme fosse exigido pela calamidade, incluindo verba para a construção relâmpago de hospitais completos;
iii) garantia de alimentação e serviços básicos a todos os cidadãos sujeitos à quarentena, e mecanismos para se barrar a propagação de boatos e notícias falsas, evitando o pânico.
(Práticas tão diferentes de nosso apequenado Brasil, este resto do golpe liberal de 2016, que abriu alas para a aventura neofascista de Bolsonaro.)
A cidade de Wuhan e a província de Hubei, permaneceram em isolamento por 76 dias; a China estancou a pandemia em seu território. E hoje são os Estados Unidos – além do Brasil – que caminham para uma catástrofe. Fenômeno que logo mais há de cobrar sua fatura política interna e geopolítica.
Além disso, na reunião anual da OMS, realizada neste mês de maio, o presidente Xi Jinping declarou que a potência oriental, durante dois anos, destinará dois bilhões de dólares ao combate do coronavirus, verba que será sobretudo dirigida ao desenvolvimento social e econômico dos países pobres afetados. Assegurou ainda que laboratórios chineses já começaram a testar em humanos cinco vacinas, e que assim que se encontre uma que funcione, ela será disponibilizada a todas as nações do globo, como “bem público mundial” (AFP, maio/2020).
Ideia tão contrastante com a de um Trump que tentou corromper laboratório alemão por patente que desse aos EUA a “exclusividade” da nova vacina a ser criada (RTP, março/2020), e que pirateou respiradores artificiais a caminho do Brasil de seu “amigo” Bolsonaro (The Intercept, abril/2020).
Palavras de um pensador de dentro do redemoinho
Como diz o pensador crítico Noam Chomsky (Diálogos do Sul, abril/2020): a crise do coronavírus é “uma falha colossal do mercado”, “da intensificação neoliberal”. Ou seja, uma falha das práticas produtivas e sociais que vêm ocorrendo especialmente desde que a crise estrutural capitalista deixa de ser teoria – no fim dos anos 1960 (e cujos mais claros efeitos foram as rebeliões populares mundiais de 1968). “Isso era sabido há muito tempo, que a pandemia era altamente provável” – pondera o estadunidense –, uma “modificação” da epidemia da Síndrome Respiratória Aguda Grave, de 2003; este vírus tinha de ter sido “identificado, sequenciado” – “vacinas estavam disponíveis, laboratórios ao redor do mundo poderiam trabalhar diretamente em desenvolver uma proteção para uma potencial pandemia”. Mas não: “entregamos nosso destino a tiranias privadas”, pois pesquisar “novos cremes corporais é mais lucrativo que vacinas”.
E o nonagenário socialista acrescenta ainda uma observação instigante – espécie de símbolo do patológico individualismo contemporâneo, que se reflete na fragilização da resistência e da organização social: “As universidades nos Estados Unidos têm placas dizendo ‘olhe para frente’”; “as redes sociais” isolam cada vez mais as pessoas; “laços sociais”, “organizações” têm que ser criadas.
Pois é: produzir mais intensivamente não é preciso, pelo contrário; olhar para a frente é preciso.
Pandemia: fruto podre da libertinagem do capital
Esta pandemia é, em suma, mais um dos frutos podres da libertinagem produtiva do capitalismo: mais um recorrente “efeito colateral” desse modelo concorrencial destrutivo que não consegue minimamente “olhar à frente”, e que violenta assim os últimos rincões naturais da Terra.
A calamidade e sua consecutiva crise é o resultado de décadas de pressões globais – dos estados dominantes sobre os periféricos – por “ajustes” neoliberais. Sempre em prol da “cidadania mínima”: com sua ideologia contrária aos investimentos em direitos sociais, com sua falta de planejamento estatal, com sua falácia de “estado mínimo” (que lega cada vez mais os rumos do planeta aos interesses privados, centrados em algumas centenas de famílias-máfias).
A responsabilidade por essa pandemia – e das próximas que provavelmente surgirão – é portanto dos dirigentes de uma “civilização” que faz mau uso dos saberes e tecnologias, pondo-os não a serviço do homem, mas do lucro. É de uma cultura torta, que investe em cosméticos, não em vacinas; que promove o agronegócio desmatador e avança sobre florestas e culturas originárias (destruindo milenares saberes da terra); que exige “estados mínimos” para a saúde, educação, seguridade social, saneamento básico… mas apela ao estado forte para suas guerras de dominação e seus resgates bilionários do mercado financeiro.
Como é bem-sabido, detrás de todo “estado mínimo”, há “estados fortes” – sempre à espreita.
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