Fórum Social Mundial — Riscos e Oportunidades
- Opinión
É consenso na esquerda mundial a importância dos Fóruns Sociais Mundiais nos anos de 2001 a 2005. Havia uma sinergia muito forte e uma congregação de esforços coletivos que mobilizavam praticamente todos os processos altermundialista anti-sistêmicos, anti-neoliberais, democráticos e de defesa de um outro mundo possível.
Após 2005, no entanto, algumas coisas mudaram. No Brasil, país central no processo de articulação política do FSM, ocorreu a primeira grande crise política do Governo Lula. As diferentes leituras e posicionamentos em relação ao grau e a profundidade da crise, desagregaram os movimentos sociais brasileiros o que impactou nas suas articulações regionais e internacionais. Da mesma forma, na Europa, outro continente fundamental para o sucesso dos primeiros anos do FSM, as forças política que se articulavam neste processo se esfacelaram. A esquerda europeia até hoje anda não reencontrou seu caminho. A consequência, é que, pós 2005, a sinergia já não era a mesma, e esta dinâmica acabou resultando em que o FSM começou a circular pelo mundo em edições bianuais, sendo a primeira, em 2007, uma edição policêntrica, em vários países ao mesmo tempo: Caracas/Venezuela, Karachi/Paquistão, e Bamako/Mali.
Esta desarticulação foi interrompida, momentaneamente, pela crise econômica mundial de 2008 que, potencializou o FSM 2009, realizado novamente no Brasil, em Belém do Pará. As organizações e movimentos sociais saíram de Belém com um novo ânimo, até porque, naquela edição, houve novos protagonismos de movimentos sociais, em especial, dos povos indígenas e das agendas ambientais. No entanto, passada a euforia do evento, o FSM retomou sua peregrinação e dinâmica, sendo o FSM 2011 realizado em Dakar/Senegal, os FSM de 2013 e 2015 em Túnis/Tunísia e um evento extemporâneo que foi o FSM em 2016, no Canadá. É com esse legado que chegamos a 2017.
É importante se notar que de 2001 até hoje passaram-se meros 16 anos. Um tempo relativamente curto para um processo tão rico e tão complexo. Afinal, o desafio de reunir a cidadania planetária, de forma horizontal, para discutir a derrubada do capitalismo e a construção de um outro mundo possível, radicalmente democrático, ambientalmente sustentável e socialmente justo não é das tarefas mais simples. Estamos falando de uma revolução política, econômica, social e ambiental. E de uma revolução que aconteça dentro da ética democrática, afinal, as redes e movimentos sociais que se articular entorno do FSM são todas e todos, defensores da democracia como valor estratégico.
Fundamental, também, registrar que essa trajetória acima refere-se a dinâmica do Fórum Social Mundial centralizado e não as dinâmicas dos Fóruns Sociais como um todo. A realização de Fóruns Sociais continentais, regionais e temáticos, seguiu uma outra trajetória. Talvez por se alimentar de outras dinâmicas políticas que são as articulações da lutas internacionais ou das dinâmicas territoriais, estes processos centrados em causas comuns, seguiram outros caminhos sendo realizados à margem e à revelia do FSM como processo centralizado.
Em função das enormes dificuldades deste processo, há segmentos que desistiram do FSM já em 2005, outros em 2011 e, mais recentemente, há uma leva muito grande de pessoas, redes e movimentos que estão desistindo do FSM em 2017. Os motivos da desistência são muito variados. Alguns acham que o FSM perdeu seu tom irreverente, questionador, reunindo os movimentos tradicionais que se adaptaram ao sistema, perdendo assim sua vitalidade. Há aqueles que acham que o FSM não consegue se conectar com as juventudes, com os novos movimentos, com novas dinâmicas de lutas que estão ocorrendo em nossos países e continentes. Há aqueles que se afastaram por discordar da dinâmica de governança dos processos do FSM e de sua incapacidade de aglutinar novos atores e atoras para o centro das decisões. Há aquelas e aqueles que se afastaram por discordar das lógicas onde os protagonismos das mulheres, suas lutas e formas de ser, dos povos indígenas, suas lutas e formas de ser, dos povos de matriz africana, suas lutas e formas de ser, as causas ambientais, as causas das libertações de povos subjugados pelo imperialismo, as agendas democráticas e tantas outras, não estavam suficientemente incorporados nos processos. E, há ainda, quem tenha se afastado porque não tem mais tempo e nem recursos para articulações nacionais e internacionais, tendo que priorizar a luta cotidiana e direta em seus territórios.
Há quem deseje que o FSM acabe de forma honrosa. Até já foram publicados artigos com essa proposta. É uma ideia generosa, que pretende preservar as melhores lembrança do que fizemos. Mas tem sentido? Vamos colocar o que no lugar do FSM? Afastar-se dos processos do FSM por causas das dificuldades de organizá-lo, não seria aceitar, resignar-se e, no meu modesto pensar, abrir mão das possibilidades de mudanças que foram sendo gestadas nos processos do FSM que realizamos?
Tenho prá mim que o FSM é expressão do que nós somos como movimentos sociais, como redes de movimentos, como projeto de futuro. E, por isso, os limites do FSM são nossos próprios limites, as contradições e insuficiências do FSM são nossas próprias contradições e insuficiências.
Sim, as mulheres, seu modo de pensar e de agir tem que ser hegemônico no FSM, porque a sociedade nova que precisamos construir tem que ser uma sociedade feminista. Sim, a olhar e o modo de ser dos povos negros tem que estar no centro da superação do modelo capitalista, e o conceito de reparação das consequências de séculos de escravização tem que estar no centro da construção do FSM porque é tema constitutivo da nova sociedade que precisamos construir. Sim, os direitos dos povos originários, dos povos indígenas, da regularização das terras e da valorização das culturas ancestrais e sua relação com a mãe terra tem que estar no centro do FSM porque representa, além do direitos destes povos, uma reafirmação da agenda ambiental e sua relação com novos paradigmas de desenvolvimento. Sim, as lutas urbanas, dos sem teto, dos sem trabalho, dos recicladores, das populações em situação de rua, das culturas de resistências das periferias, das agendas sociais urbanas, da mobilidade, da desprivatização dos espaços coletivos e toda a gama de questões e dilemas que nos afligem nas cidades, tem que estar no centro do FSM, porque mais da metade da humanidade vive em cidades e elas são um dos esteios da manutenção e reprodução do sistema capitalista. As experiências de economia solidária, de agroecologia, de resistências econômicas e de novas formas de fazer economia tem que estar no centro do FSM porque sem uma nova lógica de produção e de consumo a sociedade nova não se realiza e, por aí, podemos elencar todas nossas causas, como os direitos sexuais e reprodutivos, as liberdades e a dignidade humana, os direitos universais e indivisíveis.
Temos diferenças, temos divergências e interesses contraditórios. Mas nossas lutas não tem sentido isoladamente. Nossos sonhos não se realizam individualmente em cada movimento ou luta específica. Necessitamos uns dos outros, umas das outras. O maior desafio é vivenciarmos uma dinâmica e uma metodologia que propicie o diálogo. Um processo que nos permita o fortalecimento de cada identidade sem, com isso, negar a identidade da outra e do outro.
E temos que reconhecer, o FSM foi o mais perto que chegamos disso. Acabar com ele, seria começar do zero. Nosso desafio, é reinventar o Fórum Social, mantendo aquilo que ele nos trouxe de bom, como sua dinâmica mundial, sua metodologia horizontal e radicalmente autogestionada, sem ser espontaneista ou desprovida de sentido estratégico, ou de classe.
A intolerância, a xenofobia, a ideia de supremacia racial, a crise ambiental e o modo de vida capitalista estão levando a humanidade para um caminho sem volta. A humanidade vive um dos períodos de maior acumulação e de profunda divisão social. Está no limiar de sua própria existência. E, as saídas para a humanidade, estão do lado de cá. O lado de lá, nada tem a nos oferecer. Desistir do FSM, parece, desistir de nós mesmos.
Como disse, Cândido Grzybowski em artigo2 logo após o FSM 2011: É hora de mudar esta civilização, clamor que se fortalece cada vez mais no FSM. Entrando por dentro do FSM, é necessário reconhecer a sua capacidade de mobilizar sempre mais diferentes grupos, organizações e movimentos sociais pelo mundo afora. Rodar o mundo, contagiando gente e trazendo novas identidades políticas e culturais e novas vozes, parece ser o maior segredo da vitalidade do FSM. Quando se pensa que ele está em declínio, eis que ressurge com vitalidade. E conclui: Aqui cabe uma pequena reflexão sobre o processo do FSM e seu futuro. Penso o FSM como uma nova onda, onda da nascente cidadania planetária. Mas ondas, como no mar, supõe umas seguindo outras, num movimento de fluxo e refluxo. Para que a primeira onda do FSM, de mobilização e do despertar da cidadania produza uma nova cultura política, que abrace o mundo em sua diversidade e dela tire força, é necessário que o fórum chegue a todos os cantos e povos, na imensa, populosa e complexa Ásia, no Leste Europeu, no Mundo Árabe, no Caribe… Enfim, falta muito mundo para o fórum ser realmente mundial.
Por seguir acreditando nessa ideia generosa é que, centenas de pessoas de várias partes do mundo seguem articuladas para realizar o FSM 2018, de 13 a 17 de março de 2018, em Salvador, Bahia. Será mais uma vez a oportunidade que teremos de reafirmar nossos sonhos, trocar experiências, fortalecer nossos laços de solidariedade e pensarmos em ações conjuntas para a construção de um outro mundo urgente e necessário.
- Mauri Cruz é advogado socioambiental, especialista em direitos humanos, professor de pós graduação em direito à cidade, mobilidade urbana e gestão de organizações da sociedade civil. Membro da Diretoria Executiva da Abong, colunista do Sul21.
2 https://www.cartacapital.com.br/internacional/um-balanco-do-forum-social...
agosto 24, 2017
https://www.sul21.com.br/jornal/forum-social-mundial-riscos-e-oportunidades-por-mauri-cruz/
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