O golpismo come seus próprios pais: vinde às diretas vossos filhos

13/06/2017
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Foto: Maia Rubim / Sul21
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Hungria. Entre 23 de outubro de 1956 e 10 de novembro, do mesmo ano, no período do que foi chamado de “Revolução Húngara” – ou “contra-revolução”, segundo outra perspectiva – um grande movimento que defendia liberdades políticas, estimulado por uma grave crise econômica, depõe o governo comunista “real” de Erno Gerö, alinhado com a URSS. A trepidação no Partido Comunista permite elevar à condição de Chefe de Governo, a Imre Nagy, um quadro comunista renovador – ex-combatente da Primeira Guerra mundial – até então minoritário nos mecanismos deliberativos do Partido. Nagy – depois da ocupação soviética em 10 de novembro do mesmo ano – é deposto e substituído pelo stalinista Janos Kadar, apoiado pelo Exército Vermelho. Kadar firma novamente a Hungria na órbita soviética e promove, dois anos depois, a execução de Nagy, preso caído em “desgraça” pelas suas simpatias com as demandas de liberdades políticas da “Revolução Húngara”.

 

França. Entre 26 de outubro de 1795 e 9 de novembro de 1799, o “Diretório” dirige a nação. É o regime da Primeira República Francesa, orientado por “republicanos moderados”, que elitizam a revolução, instauram o voto censitário e também enfrentam, não só tentativas de restauração monárquica, mas igualmente vários movimentos revolucionários que tentavam reinstituir os princípios igualitários, que estavam na origem de 1789. Robespierre, o “Incorruptível”, já havia sido guilhotinado pelos “excessos” cometidos no período do Terror, aos quais ele não queria renunciar. Neste momento, Saint Just diz que “a Revolução está congelada”, pois o “Diretório”, que organiza o novo regime, transforma-se “na vingança da sociedade civil sobre a democracia revolucionária”, que não conseguira instituir uma ordem consensual de poder.

 

Dizer que as revoluções comem os seus próprios filhos é uma redundância. Comparar as situações históricas referidas, com a nossa crise atual, é um exagero. Primeiro, porque não estamos no curso de uma revolução; segundo porque – para responder ao desajuste institucional que estamos vivendo – não há nenhum movimento insurgente clássico contra a democracia política. A fragilidade da democracia, neste momento, não está na sociedade, mas está ancorada nas próprias instituições que sustentam a soberania: a fragilidade da Presidência, a pobreza moral e política do Congresso, a emergência do Ministério Público e da Polícia como poderes “quase-soberanos”, bem como nas dificuldades do Supremo Tribunal Federal, para resgatar a sua função de Guardião da Constituição. Estamos, assim, é iniciando um processo (des)constituinte, que pode ser bloqueado, não uma crise terminal de regime.

 

Na cruzada para derrubar a Presidenta Dilma foram forjados argumentos jurídicos, cujo convencimento só poderia prosperar num Congresso dotado de uma transparente amoralidade e pobreza ideológica, atestada pelos próprios argumentos da malta majoritária, que ao votaram o “sim” ao “impeachment”. O resultado foi este Ministério que aí está. Este Presidente acossado que aí está. O aprofundamento da crise que aí está. Os exemplos dos destinos de Nagy e Robespierre, em outras épocas, simbolizam o destino merecido do Senador Aécio Neves e outros próceres do golpe, que bradavam aos quatro ventos -com apoio do oligopólio da mídia- que para acabar com a corrupção bastava “tirar o PT do Governo”. Lição comparada: o golpismo pós-moderno ainda não tem filhos, mas já come os seus próprios pais e, se a Revolução não está “congelada” (pois nem está em curso) e a democracia está petrificada pela judicialização da política e a república travada num impasse ciclópico.

 

O Congresso do PT firmou, na direção sobre o Partido, o mesmo grupo hegemônico. Foi preso o deputado Rodrigo Loures, assessor direto do Presidente; circula a notícia de mais um processo contra Lula; um grupo de deputados faz acusações implícitas contra o ministro Fachin (de que ele teria relações equívocas com um “delator premiado”); Janot denuncia Aécio junto ao STF e pede a sua prisão; o resultado do julgamento do TSE infere que Temer pode superar a “crise” e permanecer no poder até 2018. O esfacelamento da esfera da política, que atingia em cheio os partidos , está sendo agora de tal monta que a própria Rede Globo – que se transformara num partido unitário do golpismo e do anti-petismo – também vem perdendo o seu papel dirigente: não consegue emplacar a deposição de Temer, igualmente defendida pela esquerda que defende eleições diretas para sairmos da crise. É uma situação de tal anomalia política e institucional, que qualquer prognóstico para as próximas doze horas pode sucumbir envenenado pela rapidez da história em rede.

 

Neste já longo processo de “exceção” – não como golpe tradicional, mas como “técnica” de governar a rotina formal das instituições – nenhum fato foi tão simbólico do nosso drama republicano como o julgamento da cassação da chapa presidencial. Ali os projetos de classe revelaram toda a essência da crise, já que a inversão de papeis dos atores políticos não alteraram, mas revelaram a essência do projeto golpista: interromper o mandato presidencial, para revogar o que nos restava de Estado Social. O consórcio político da Globo quer a saída de Temer, porque este perdeu as condições de fazer as “reformas” que liquidam com este Estado Social. A liderança política do Ministro Gilmar sobre o Supremo -que até ontem era festejada pela própria Globo como relevante- tornou-se um incômodo, pois o Ministro passou a bloquear a cassação da Chapa, deixando para história -involuntariamente- o atestado pleno de um “impeachment” sem causa. Ou melhor, apenas pendurado no ridículo argumento das pedaladas.

 

Do lado da esquerda, que pedia coerência ao TSE para a cassação da chapa presidencial – em nome da busca de uma saída para a crise – apreciava-se positivamente o voto do Ministro Benjamim. Mas, atenção: ele partia da validação de provas de “exceção” – que é o que são as delações premiadas sem confirmação dos fatos no processo – portanto, aproveitando os mesmos mecanismos probatórios\acusatórios, que reputamos como inválidos nos processos encetados contra o Presidente Lula. Mais além da questão da coerência impossível dos atores políticos, neste momento de desordem democrática, tudo isso é resultado do esvaziamento da esfera da política, que foi executado pela imposição da agenda das reforma, exigidas pelo complexo midiático golpista. Este, usando o bom nome da “luta contra a corrupção” transformou a política no espetáculo de um país inerte, um corpo quase presente no altar de sacrifícios demandados pelo capital financeiro.

 

O Golpe do 18 Brumário foi a solução da crise do “Diretório” e levou ao poder Napoleão Bonaparte, que consolidou politicamente a Revolução Burguesa na França, a República e, mais tarde, a democracia política. A ocupação soviética na Hungria restaurou o poder da burocracia do PC húngaro e afogou a ideia de uma democracia socialista nos escaninhos assassinos da Polícia Política. É bom revisitar os exemplos da história, pois quando as saídas para uma crise não são orientadas por decisões políticas legítimas, elas são solucionadas -em qualquer regime- por soluções de mais força ou pela espontaneidade sem direção, de cujo ventre emerge o fascismo como sucessor do caos. A ação política tem uma força constituinte própria, que sucumbe quando só se expressa pela pura força, mas renasce quando é capaz de criar saídas inesperadas, quando tudo parece estar perdido.

 

As gravações feitas com o senador Aécio mostram a grande fraude histórica engendrada para derrubar Dilma e construir um “atalho” para o poder, da pior parte da “elite” política do país. Se é verdade que este sistema político jamais foi um acolhedor de “santos”, também é verdade que nunca um dirigente político-moralista e “liberal” – foi tão desmascarado com tanta transparência, depois de ter enganado com tal profundidade seus eleitores e liderados. Aécio, que neste momento é o símbolo da corrupção provado, pode inspirar -pelo seu exemplo negativo – um repúdio ao golpismo na base popular que acreditava na sua honestidade. O golpismo está comendo seus pais, que seus filhos deserdados – antes iludidos – venham compor conosco a estrada que nos leva às diretas, para recuperar a soberania popular!

 

- Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

junho 12, 2017

http://www.sul21.com.br/jornal/o-golpismo-come-seus-proprios-pais-vinde-as-diretas-vossos-filhos/

 

https://www.alainet.org/fr/node/186119
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