Brasil, radiografia do golpe

Dilma está definitivamente afastada? Ainda não. Para que isso ocorra será preciso que 53 dos 81 senadores aprovem o seu impeachment.
07/08/2016
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A

Quando é difícil manter o rumo,  

o pessimista se queixa do vento;

o otimista aguarda a calmaría;

O realista ajusta as velas.

William G. Ward (1812-1882)

 

Em 17 de abril de 2016, o governo Dilma Rousseff foi destituído por um golpe parlamentar. Eis a nova modalidade de ação conservadora na América Latina. O primeiro golpe parlamentar ocorreu em Honduras (2009), com a deposição do presidente Manuel Zelaya. O segundo, no Paraguai (2012), quando destituíram o presidente Fernando Lugo. 

 

 No caso do Brasil, o golpe está devidamente comprovado pelas gravações telefônicas entre o senador Romero Jucá e o ex-diretor da Petrobras Sérgio Machado, acusado de corrupção pela Operação Lava Jato - investigação da Justiça para apurar o envolvimento de políticos, empresários e servidores públicos com tais crimes. Nomeado ministro do Planejamento por Michel Temer, presidente interino do Brasil, Jucá permaneceu no cargo apenas oito dias. Na gravação, amplamente divulgada, o então ministro diz claramente que tirar Dilma do poder seria uma forma de impedir o avanço da Lava Jato, em cujas denúncias de corrupção Jucá é citado. 

 

 Dilma foi afastada da presidência do Brasil por 180 dias. Este prazo pode ser antecipado pelo Senado Federal, que tem a função constitucional de julgar o impeachment presidencial. Até lá, o país passou a ser presidido por Michel Temer, vice-presidente da República, presidente do PMDB e mentor do golpe. 

 

 De que Dilma é acusada? De haver cometido crime de responsabilidade fiscal. Explico: o dinheiro de que dispõe o governo resulta dos impostos embutidos nos produtos e serviços consumidos pela população; dos tributos pagos por pessoas físicas de maior renda, e por pessoas jurídicas, como bancos e empresas rurais e urbanas. Esses recursos tributários ficam em mãos do Tesouro Nacional.

 

 Em 2014, ano de eleição presidencial, a crise econômica mundial, em especial a redução dos preços das commodities, afetou o Brasil. A tonelada de ferro caiu de US$ 180 para US$ 55. A saca de soja, de US$ 40 para US$ 18. O barril de petróleo cru, de US$ 140 para US$ 40. No ano seguinte, o PIB brasileiro decresceu 3,7.

 

 Para manter os programas sociais, como o Bolsa Família, e financiar o Plano Safra, de incentivo à agricultura, Dilma recorreu a dois bancos públicos, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. Pouco depois, o Tesouro Nacional repôs o valor retirado dos bancos públicos.

 

 Na óptica da oposição, Dilma cometeu um crime. A lei de responsabilidade fiscal impede que bancos públicos financiem projetos públicos! Embora todos os presidentes anteriores tenham cometido o mesmo “crime”, apenas Dilma foi punida. A lógica que rege o sistema bancário brasileiro decorre dos bancos privados. Banco é para especular, dar um para tomar dois ou três. Jamais para promover ações sociais ou impedir a suspensão de programas sociais que, no Brasil, tiraram da miséria, nos últimos 13 anos, 45 milhões de pessoas. 

 

 Esta a razão legal, embora injusta, que justificou a abertura do processo de impeachment de Dilma, aprovado pela Câmara dos Deputados no domingo, 17 de abril. No dia 12 de maio, o Senado acatou a decisão da Câmara. 

 

Razões políticas e econômicas

 

 Até a aprovação de abertura do processo de impeachment, a Câmara dos Deputados era presidida por Eduardo Cunha, do PMDB (mesmo partido do presidente interino, Michel Temer), acusado pela Operação Lava Jato de vários crimes graves, como depositar em diversos paraísos fiscais dinheiro de corrupção. 

 

 Em dezembro de 2015, o PT (Partido dos Trabalhadores, fundado por Lula, e ao qual pertence a presidente Dilma) votou favorável a que a Comissão de Ética da Câmara dos Deputados desse andamento ao processo de cassação do mandato de Eduardo Cunha. Foi o bastante para o presidente da Câmara decidir se vingar e, assim, aceitar o pedido de impeachment de Dilma.

 

 O pedido mereceu a aprovação inclusive de partidos que, até a véspera da votação, eram aliados do PT. A mudança brusca e oportunista se deveu ao baixo índice de popularidade de Dilma, rejeitada por 85% da opinião pública. Tal desprestígio é consequência de vários fatores políticos e econômicos. 

 

 Em 13 anos de governo do Brasil, o PT, ao longo de duas gestões de Lula (2003-2006 e 2007-2010) e do primeiro mandato de Dilma (2011-2014), promoveu mudanças significativas no mapa social do Brasil, como estender a energia elétrica a 15 milhões de domicílios; permitir a 9 milhões de jovens o acesso à universidade; reduzir significativamente a pobreza; estender a atenção médica à população mais pobre através do Programa Mais Médicos, que trouxe para o Brasil mais de 11 mil cubanos profissionais da saúde etc.

 

 Graças ao governo do PT, a impunidade perdeu espaço, a Operação Lava Jato foi deflagrada, o Ministério Público e a Polícia Federal atuaram com autonomia, inclusive prendendo e condenando dirigentes históricos do PT, como José Dirceu, acusados de corrupção. 

 

 Embora os 13 anos do PT tenham sido os melhores de nossa história republicana, equívocos cometidos permitiram que o segundo mandato de Dilma se visse fragilizado frente à ofensiva da oposição. Entre estes se destacam: 

 

 1. O êxito de programas sociais, como o Bolsa Família, não foi acompanhado por um intenso trabalho de alfabetização política dos beneficiários. Devido à facilidade de crédito concedido pelos bancos públicos e a desoneração tributária de gêneros de primeira necessidade, aqueceu-se o mercado interno. O aumento anual do salário mínimo acima do índice da inflação favoreceu o crescimento da renda dos segmentos mais pobres da população. 

 

No entanto, a falta de uma educação política fez com que a inclusão social se desse pela via do consumo, e não da produção. A população teve mais acesso a bens pessoais que a bens sociais. Dentro de um barraco de favela, pode-se encontrar toda a linha branca (fogão, geladeira, microonda) - produtos adquiridos a preços mais baixos em consequência da desoneração tributária - e, ainda, computador, celular e, quem sabe, no pé do morro, o carro comprado a prestações. 

 

 Porém, lá está o barraco ocupado pela família sem acesso à moradia, segurança, saúde, educação, saneamento e ao transporte coletivo de qualidade. A prioridade deveria ter sido o acesso aos bens sociais. Criou-se, portanto, uma nação de consumistas, não de cidadãos.

 

 Com a crise econômica agravada a partir de 2014, e a incapacidade de o governo Dilma de freá-la, disseminou-se a insatisfação popular frente ao aumento da inflação e do desemprego – 11,4 milhões de pessoas, segundo levantamento recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatítica (IBGE). Diante desta realidade que afeta toda a população, o apoio ao governo se enfraqueceu. 

 

 O PT, que surgiu em 1980 com o propósito de “organizar a classe trabalhadora”, não se empenhou no trabalho político de base nem em democratizar a mídia, para impedir que seus inimigos de classe falassem mais alto. 

 

 2. Desde o primeiro mandato de Lula o PT optou por garantir sua governabilidade através de alianças com os partidos representados no Congresso Nacional. A maioria partidos fisiológicos, acostumados ao “toma lá, dá cá”, reféns da bancada do B (boi, bala, bíblia e bancos) – que reúne políticos ligados ao agronegócio, à industria de armas, a cultos religiosos e ao sistema financeiro - sempre dispostos a trocar votos por propinas. Tal promiscuidade contaminou dirigentes do PT e setores do governo, cujo envolvimento em corrupção foi comprovado nas investigações policiais denominadas “mensalão” e, posteriormente, no “petrolão”. Assim, o PT perdeu a credibilidade a que se propunha ao ser fundado em 1980 – ser o partido da ética na política.

 

 O PT é fruto dos movimentos sociais que contribuíram para derrubar a ditadura militar que governou o Brasil entre 1964-1985. Uma vez no governo federal, deveria ter seguido o exemplo de Evo Morales e valorizado os movimentos sociais, de modo a que suas lideranças viessem a ocupar as cadeiras do Congresso Nacional. 

 

 3. Em 13 anos no governo, o PT não promoveu nenhuma reforma estrutural, nem a agrária, nem a tributária, nem a previdenciária. Agora é vítima por não ter proposto uma reforma política. A atual institucionalidade política do Brasil se caracteriza por aberrações como o fato de um estado da federação, como Rondônia, com 1,5 milhão de habitantes, ser representado no Congresso pelo mesmo número de senadores eleitos pelo estado de São Paulo, que abriga 44 milhões de habitantes. 

 

 4. Não se criaram as condições de sustentabilidade para o desenvolvimento. O modelo neodesenvolvimentista adotado pelo PT se esgotou com a crise econômica mundial, em especial a retração da economia chinesa, e o baixo preço das commodities. Não se estimulou o mercado interno nem se investiu suficientemente na qualificação do capital humano. 

 

 5. Enquanto o orçamento do Bolsa Família para 2016 é de R$ 28 bilhões (= US$ 8 bilhões), e o déficit primário do governo chega a R$ 120 bilhões (= US$ 34,2 bilhões), a “bolsa” empresário é de R$ 270 bilhões (= US$ 77 bilhões) – quase dez vezes superior ao Bolsa Família. Pai severo com os pobres, o governo atuou como mãe supergenerosa dos ricos. Nem assim o PT logrou aplacar o ódio de classe contra ele.

 

 A fortuna do “bolsa” empresário é o resultado da soma de subsídios, desonerações e regimes tributários diferenciados para portos, indústrias químicas, agronegócio, empresas de petróleo e fabricantes de equipamentos de energia eólica. 

 

 A agricultura, por exemplo, quase nada recolhe para a Previdência Social, e a maioria dos latifundiários e barões do agronegócio sonega impostos ao se enquadrar na Receita Federal como pessoa física e não jurídica.

 

Dilma está definitivamente afastada? Ainda não. Para que isso ocorra será preciso que 53 dos 81 senadores aprovem o seu impeachment. Em maio, 54 votaram a favor da abertura do processo contra ela. Portanto, bastam dois parlamentares mudarem seus votos para que Temer deixe de exercer interinamente a presidência e ceda o lugar para a Dilma. Nesse caso, ela voltaria a presidir o Brasil até o fim de seu mandato, em 31 de dezembro de 2018. 

 

 Muitos novos fatos políticos podem influir para que o governo Temer não dure mais de seis meses. Sobretudo se as gravações feitas pelo ex-diretor da Petrobras Sérgio Machado comprometerem líderes do governo Temer, como já ocorreu com o ex-ministro do Planejamento Romero Jucá. Destituído após uma semana de sua posse, está ameaçado também de perder o mandato de senador por crime de obstrução da Justiça. 

 

 Se for aprovado o impeachment de Dilma e Temer confirmado como presidente até 2018, ele terá que mostrar resultados positivos na recuperação da economia e ganhar o apoio da opinião pública, hoje bastante resistente à sua manutenção no poder. Caso contrário, será o grande eleitor de Lula na eleição presidencial de 2018. 

 

 De qualquer modo, resta à esquerda brasileira o desafio de fazer uma profunda autocrítica e repensar as bases teóricas e práticas de seu projeto político, para se reinventar como alternativa de poder fiel às aspirações dos mais pobres, aos principios éticos e à utopia ecossocialista.

 

- Frei Betto é escritor, autor de “A mosca azul – reflexões sobre o poder” (Rocco), entre outros livros.

 

https://www.alainet.org/fr/node/179332
S'abonner à America Latina en Movimiento - RSS