Lutas cidadãs em torno da Internet

A Internet e o ciberespaço são o cenário de disputas de poder para dominar esta nova dimensão, integrando-a no marco dos conflitos geopolíticos, geoeconômicos e militares.

22/07/2016
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Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 513, 514: La comunicación en disputa 02/06/2016

De forma crescente, a Internet e o ciberespaço são o cenário de disputas de poder, onde superpotências e corporações transnacionais protagonizam uma luta mundial para conquistar e dominar esta nova dimensão, integrando-a no marco dos conflitos geopolíticos, geoeconômicos e militares. Esta disputa tende a deixar em segundo plano outro conflito — não menos relevante — entre diferentes visões sobre a Internet, que enfrenta esta ótica de poder e domínio com outra, centrada em consolidar os direitos e o empoderamento da cidadania através de sua apropriação da tecnologia e dos novos espaços comunicacionais. Este segundo conflito tem como cenário as lutas de inovação e resistência, do âmbito local para o mundial, para ir conquistando, passo a passo, direitos, garantias e políticas de defesa do interesse público no âmbito virtual.

 

Hoje ficaram ultrapassadas as ideias utópicas do início da Internet, que pressupunham que seria um espaço autogerido de intercâmbio, onde floresceria a democracia direta, assim como meios de comunicação democráticos e participativos, oferta e recepção de serviços sem intermediários, livre troca de informação e conhecimentos: em resumo, um espaço de comunicação sem fronteiras nem hierarquias, de relações horizontais em rede, sob controle descentralizado. De fato, isso ocorreu em um grau diferente; mas ficou como um tema marginal no contexto global da Internet, talvez porque não se percebeu a tempo que implicava uma luta-chave.

 

Com efeito, na última década e meia, foi produzida uma acelerada concentração da infraestrutura-chave, das plataformas mais utilizadas e dos mecanismos de controle e governança na Rede de Redes. Para isso contribuiu o domínio que os EUA mantêm sobre grande parte da infraestrutura crítica e dos aspectos mais estratégicos da governança da Internet, com o que impõe um controle unilateral sobre o que hoje é o mais importante sistema de comunicação mundial. A isso se acrescenta o “efeito rede” (que significa que os usuários tendem a optar por utilizar as mesmas plataformas onde já há mais pessoas), o que permitiu a conformação de empresas internacionais quase monopólicas que açambarcam cada vez mais — e controlam segundo o seu desejo — os espaços onde se convive e interage na Internet, em particular nas redes digitais1.

 

Além do mais, agora, Washington, em sua busca por estender ainda mais o seu domínio mundial e favorecer as suas empresas, incluiu as tecnologias e as plataformas digitais nas negociações dos novos tratados de livre comércio, como o Tratado Transpacífico (TPP) e o Transatlântico (TTIP). Por exemplo, existem cláusulas do TPP que obrigam os países signatários a permitir a transferência transfronteiras não regulada de dados de usuários; e que proíbem que os governos exijam que as empresas armazenem esses dados em servidores locais. Isso poderia vulnerar qualquer legislação nacional de proteção da privacidade frente à vigilância ou aos abusos do marketing2. Outra cláusula permitiria a qualquer empresa demandar um provedor de serviços de Internet em um país signatário, que cancele de seus servidores um site da Web com conteúdos que considere que afetem os seus direitos de propriedade3. Não está claro se esse passaria por uma decisão judicial, como deveria ser.

 

Lutas em torno das políticas públicas

 

Se antes muitas pessoas vinham argumentando que não é necessária a intervenção estatal para regulamentar e governar os espaços digitais, hoje fica cada vez mais em evidência que não podem ser deixados liberados somente para a “autogestão” ou de acordo com as leis do mercado; sem regulamentação, se impõe a lei do mais forte. De um modo geral, existe consenso sobre a necessidade de políticas públicas e mecanismos de governança: a disputa é em torno do tipo de políticas públicas — se são para defender os interesses cidadãos ou particulares —, e quem as define.

 

Em um âmbito tão amplo e complexo, existem muitas disjuntivas a resolver. Para mencionar algumas: que equilíbrio estabelecer entre a segurança do Estado e da cidadania (por exemplo, frente a supostas ameaças terroristas) e as garantias de privacidade das comunicações e das pessoas? A quem pertencem os dados dos usuários da Internet, que são recopilados em enormes quantidades e que se tornam uma grande fonte de lucro e poder? O que priorizar entre o direito de acesso à informação e os conhecimentos, e os chamados direitos de propriedade intelectual? É justo permitir que os prestadores de serviços de Internet discriminem os conteúdos que são transmitidos pelos seus canais, mediante cobranças diferenciadas, criando assim uma Internet de primeira e de segunda classe? Deve-se permitir aos novos serviços em linha (intermediação de vendas, transporte, empregos…) que façam concorrência desleal, sem regulamentação, aos serviços tradicionais que sim estão submetidos a regulamentos?

 

Entre os casos mais emblemáticos dos últimos meses se destaca a luta na Índia a respeito da neutralidade da rede (ou seja, o princípio de que os provedores de conectividade devem dar acesso aos conteúdos sem privilegiar um participante da rede em relação a outros); luta que teve sucesso neste ano, quando a autoridade regulatória de telecomunicações adotou uma histórica decisão de proibir as tarifas discriminatórias para os serviços de dados. A decisão respondeu a uma ampla mobilização entre a população contra serviços de tipo “taxa zero”, como a iniciativa Free Basics do Facebook. Promovida pela empresa como uma oportunidade para populações desconectadas de ter o seu primeiro acesso (limitado, mas sem custo) à Internet através do celular, a decisão considera na verdade que tais práticas são particularmente prejudiciais para países em desenvolvimento como a Índia, porque “seguem contra as características básicas da Internet e devem ser restringidas de entrada, devido às consequências de longo alcance que certamente teriam na estrutura da Internet e dos direitos dos interessados. Uma vez que se permitam tais práticas, poderia já não ser possível quantificar, medir ou remediar as consequências a curto e médio prazo”4.

 

Entretanto, várias cidades tiveram enfrentamentos com empresas que oferecem sites para contratar transporte privado, como Uber, cuja interface conecta motoristas com passageiros e conta com um sistema de preços que flutua segundo a demanda. Estes serviços estão tirando da praça os táxis tradicionais, que têm que cumprir com uma série de regulações e operar com preços fixos. Além disso, o Uber se considera intermediário e não empregador, portanto, os motoristas não recebem nenhum benefício social. Quando as cidades procuram regulamentar o serviço, o Uber utiliza a sua plataforma para mobilizar os seus usuários contra as autoridades, tática com a qual venceu inclusive as pretensões da cidade de Nova York de regulamentar os seus serviços. Surpreendentemente, a cidade de Austin, no Texas, ganhou recentemente uma disputa com o Uber e o Lyft, quando recorreu a uma consulta popular a respeito de se é preciso obrigar os motoristas desses serviços a se submeterem a controles de identidade, como garantia para a segurança dos passageiros. No entanto, uma campanha beligerante e cara dessas empresas (na qual investiram mais de 10 milhões de dólares), a moção ganhou o apoio da cidadania; e as empresas, em represália, se retiraram da cidade.

 

Na América Latina…

 

Na nossa região, existem situações muito díspares na adoção de políticas públicas a respeito da nova realidade digital da comunicação e do conhecimento. O Marco Civil da Internet do Brasil foi um dos avanços mais significativos, já que garante a neutralidade da rede, obriga as empresas provedoras a assegurar a privacidade das comunicações e, de um modo geral, defende os direitos dos usuários. Elaborada com ampla participação cidadã, e aprovada há dois anos, esta lei só entrará plenamente em vigor agora, desde que, em um de seus últimos atos antes de ser suspendida de suas funções por um golpe parlamentar no último dia 12 de maio, a presidente Dilma Rousseff assinou o Decreto de Regulamentação do Marco Civil. Mas o presidente interino, Michel Temer, anunciou a sua intenção de rever as últimas decisões de Rousseff e a indústria de telecomunicações já tem propostas apresentadas perante o Congresso contra o marco civil5.

 

Outra iniciativa inovadora é o Código Orgânico de Economia Social do Conhecimento e Inovação (COESC), no Equador, atualmente em consideração da Assembleia Nacional, que foi elaborado do mesmo modo com contribuições dos cidadãos. A proposta base do COESC aponta para “a construção de um sistema econômico social e solidário; e, para a transição de uma matriz produtiva excludente e monopólica, baseada na extração de recursos finitos, para uma inclusiva e democrática, baseada no uso intensivo de recursos infinitos — os conhecimentos, a criatividade e a inovação”6.

 

Iniciativas como estas no âmbito local ou nacional são importantes porque, além de sua implementação in situ, vão configurando antecedentes que inspiram novas lutas e iniciativas em outros lugares. Mas não se deve deixar de considerar que existem limites para o que se pode legislar no âmbito nacional, sendo que o ciberespaço não tem fronteiras.

 

As empresas que dominam a Internet — uma dúzia de transnacionais estadunidenses — têm tanto poder que nem nos EUA existe a vontade política de lhes aplicar as leis antimonopólio. A Rússia e a China têm as suas próprias plataformas; a China bloqueia a entrada de algumas corporações como Facebook e Twitter e a Rússia aumentou as restrições. A União Europeia empreendeu ações legais contra o Google e outras corporações estadunidenses por abusar de seu poder de monopólio, ou por concorrência desleal (por exemplo, do Skype ou do WhatsApp, com as empresas telefônicas). Mas a maioria dos países não tem a capacidade para enfrentar essas gigantes. Enquanto isso, os organismos mundiais que gerem a Internet são dominados por essas mesmas empresas e pelo governo dos Estados Unidos7.

 

Neste contexto, é necessário criar novas instituições democráticas, nos âmbitos nacional e internacional, com o mandato de gerar soluções para as novas realidades digitais e formular políticas públicas, a partir do enfoque do interesse público8. Mas é pouco provável que isso se dê a menos que haja uma forte pressão social nesse sentido, que implicaria construir pontes entre as diversas lutas e movimentos que compartilham a visão de uma Internet cidadã.

 

Sally Burch é jornalista britânico-equatoriana.

 

Artigo publicado na edição de junho 2016 da ediçao em portugês da revista América Latina en Movimiento: “La comunicación en disputa” http://www.alainet.org/pt/revistas/513-514 (ALAI - SENGE-RJ)

 

1 Ver Sally Burch. 2014. “Entrevista con Robert McChesney: ¿Cómo desmonopolizar Internet?”. América Latina en Movimiento. Internet, poder y democracia, no 494.

2 http://techcrunch.com/2015/11/05/tpp-vs-privacy/

3 http://bit.ly/20DeLGh

4 Parminder Jeet Singh. Trai’s historic decision. 13/02/2016 http://bit.ly/22pyQl2

5 http://www.alainet.org/pt/articulo/177616

6 http://bit.ly/1mjp29X

7 Ver: Michael Gurstein, 2014, “La gobernanza ‘posdemocrática’ de Internet”, América Latina en Movimiento, no 494.

8 Um dos espaços onde se propõe debater estas alternativas é o Foro Social Internet, “Por una Internet ciudadana”, prevista para início de 2017. Ver http://internetsocialforum.net/

 

 

 

https://www.alainet.org/fr/node/179004?language=es

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Publicado en Revista: La comunicación en disputa

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