E se o Syriza levasse à letra a UE e auditasse a dívida da Grécia?

20/01/2015
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Desde que foram anunciadas as eleições gregas de 25 de janeiro de 2015, a possibilidade de o Syriza sair vitorioso da ida às urnas e formar governo é apresentada como uma ameaça para a opinião pública internacional e, especialmente, para a zona euro. No entanto, aqueles que fazem soar o alarme sabem perfeitamente que o Syriza anunciou que não suspenderia o pagamento da dívida e não sairia do euro, uma vez que fosse governo. O Syriza propõe a renegociação da dívida, a nível europeu, e espera que a Grécia permaneça na zona euro. Por outro lado, o SYRIZA compromete-se a pôr fim às medidas injustas e antissociais tomadas pelos governos anteriores e pela Troika.
 
A campanha sobre as supostas ameaças que o SYRIZA representa destina-se a intimidar os eleitores gregos no sentido de os levar a renunciar ao direito à mudança. Visa também, em caso de vitória do SYRIZA, pôr uma parte da opinião pública europeia contra a coligação grega de esquerda radical para evitar, na sequência, que o PODEMOS em Espanha ganhe as eleições no outono de 2015. Outras surpresas podem, entretanto, surgir em países como Portugal, Eslovénia, Chipre, se os cidadãos e cidadãs acreditarem que vale a pena tentar substituir uma política ultraconservadora desastrosa por uma política de esquerda. Os dirigentes europeus e os grandes grupos privados que os apoiam sabem que a maioria da população da zona euro faz uma balanço negativo das políticas levadas a cabo nos últimos anos e tenta orientar o seu sentido de voto para forças que propõem a mudança. Uma vitória do Syriza na Grécia representaria uma grande ameaça para os partidos tradicionais, tanto para os conservadores como para os «socialistas», que temem que o contágio chegue a Espanha.
 
A dívida reclamada à Grécia representa 175% da riqueza nacional produzida num ano e constitui um fardo insustentável para o povo grego.
 
O que acontecerá se o Syriza, uma vez no governo, decidir interpretar literalmente o artigo 7º dum regulamento adotado, em maio de 2013, pela União Europeia, relativo aos países submetidos aos planos de ajustamento estrutural? Em causa, a Grécia, Portugal e Chipre, nomeadamente.
 
O ponto 9 do artigo 7º determina que os Estados sob ajustamento estrutural realizem uma auditoria integral à dívida pública no sentido de explicarem porque razão a dívida aumentou de maneira exagerada e com o objetivo de detetarem irregularidades. Eis o texto completo: «Os Estados-Membros sujeitos a programas de ajustamento macroeconómico devem realizar uma auditoria exaustiva às suas finanças públicas, a fim de, designadamente, avaliar os motivos que levaram à acumulação de níveis excessivos de dívida e detetar eventuais irregularidades».1
 
O governo grego de Antonis Samaras cuidou de não aplicar essa disposição do regulamento, escondendo à população grega as verdadeiras razões para o aumento da dívida e para as irregularidades a este associadas. Em novembro de 2012, o parlamento grego, controlado pela direita, rejeitou a moção apresentada pelo SYRIZA para a criação de uma comissão de inquérito sobre a dívida, com 167 votos contra, 119 a favor e 0 abstenções.
 
É claro que depois de uma vitória eleitoral do Syriza, um governo constituído sob a sua orientação poderia muito bem interpretar literalmente as palavras da União Europeia e criar uma comissão de auditoria da dívida (com participação cidadã ), com o objetivo de analisar o processo de endividamento excessivo da Grécia, detetar eventuais irregularidades e identificar as partes ilegais, ilegítimas, odiosas, ... dessa dívida.
 
A participação cidadã é fundamental num processo de auditoria que se pretende rigoroso e independente. Ora, convém salientar que no regulamento da UE, mencionado acima, no artigo 8º, é recomendada a participação dos «parceiros sociais e das organizações da sociedade civil» na elaboração dum «programa de ajustamento macroeconómico». Mais uma razão para associar ativamente os cidadãos à auditoria.
 
Eis aqui alguns dos elementos chave que poderiam ser trazidos à luz do dia através da realização de uma auditoria:
 
A dívida grega, que representava 113 % do PIB em 2009, antes da eclosão da crise grega e da intervenção da Troika que detém 4/5 dessa dívida, atingiu 175 % do PIB em 2014. A intervenção da Troika foi, portanto, seguida de um forte aumento da dívida grega.
 
De 2010 a 2012, os créditos concedidos pela Troika à Grécia foram usados em grande parte para reembolsar os principais credores da Grécia até essa altura, a saber, os bancos privados das principais economias da União Europeia, começando pelos bancos franceses e alemães2. Cerca de 80 % da dívida grega, em 2009, era detida por bancos privados de sete países da União Europeia. Só os bancos alemães e franceses detinham, em 2009, cerca de 50 % do total dos títulos da dívida grega.
 
Uma auditoria à dívida grega mostrará que os bancos privados europeus aumentaram drasticamente os seus créditos à Grécia entre finais de 2005 e 2009 (os créditos aumentaram mais de 60 mil milhões euros, passando de 80 mil milhões para 140 mil milhões), sem ter em conta a capacidade real de a Grécia pagar. Os bancos agiram de forma aventureira, convencidos de que as autoridades europeias viriam em seu socorro em caso de problema.
 
Como mencionado acima, a auditoria mostrará que o designado plano de resgate grego, posto em prática pelas autoridades europeias com a ajuda do FMI, na realidade, tem servido para permitir aos bancos de alguns países europeus, que têm um influência decisiva nas instâncias europeias, continuarem a receber os reembolsos da Grécia, transferindo o risco para os Estados através da Troika. Não foi a Grécia que foi salva, mas alguns grandes bancos privados europeus localizados principalmente nos países mais ricos da UE.
 
Os bancos privados europeus foram assim substituídos pela Troika, que se tornou o principal credor da Grécia a partir de finais de 2010.
 
A auditoria analisará também a legalidade e legitimidade do plano de resgate. Estará ou não o plano em conformidade com os tratados da UE (nomeadamente o artigo 125º, que proíbe um Estados-membros de assumir os compromissos financeiros de um outro Estado-membro)? O procedimento europeu normal de tomada de decisão terá sido respeitado? Os credores públicos em 2010 (ou seja, os 14 Estados-membros que concederam empréstimos à Grécia num total de 53 mil milhões de euros, o FMI, o BCE, a Comissão Europeia, etc.) respeitaram o princípio da autonomia da vontade do devedor, ou seja, a Grécia, ou antes beneficiaram da aflição face aos ataques especulativos dos mercados financeiros para imporem contratos que vão ao encontro dos seus próprios interesses? Esses credores impuseram condições leoninas, nomeadamente taxas de reembolso exageradas?3 Os 14 Estados-Membros que concederam empréstimos bilaterais à Grécia respeitaram ou não as disposições legais e constitucionais do seu país e da Grécia?
 
Trata-se também de auditar a ação do FMI. Sabemos que no seio da direção do FMI vários administradores executivos (o brasileiro, o suíço, o argentino, o indiano, o iraniano, o chinês, o egípcio) manifestaram as maiores reservas em relação ao empréstimo concedido pelo FMI, afirmando nomeadamente que a Grécia não seria capaz de pagar, devido às políticas que lhe tinham sido impostas4. Terá o governo grego, em sintonia com o chefe do FMI na altura, pedido ao seu serviço de estatísticas para falsear dados, com o objetivo de apresentar um boletim de saúde financeira tão negativo que permitisse ao FMI lançar um plano de resgate? Altos funcionários gregos afirmaram-no.
 
Terá o BCE extrapolado de forma grave as suas prerrogativas, exigindo que o parlamento grego legislasse sobre o direito à greve, a saúde, o direito de associação, a educação e sobre a regulação dos níveis salariais?
 
Em março de 2012, a Troika organizou uma reestruturação da dívida grega, que foi apresentada na época como um sucesso. Recorde-se que G. Papandreou, primeiro-ministro, anunciou no início de novembro de 2011, na véspera de uma reunião do G20, a intenção de realizar um referendo sobre a reestruturação da dívida grega em fevereiro de 2012, preparado pela Troika. Sob pressão da Troika, o referendo nunca aconteceu e o povo grego foi despojado do direito de se pronunciar sobre as novas dívidas. Os principais meios de comunicação fizeram passar o discurso de que a reestruturação permitiria reduzir em 50 % a dívida grega. Na verdade, a dívida grega é mais elevada em 2015 do que era em 2011, o ano que precedeu a grande anulação de, supostamente, 50 %. A auditoria mostrará que essa operação de reestruturação, que foi uma grande decepção, está relacionada com o aprofundamento de políticas que são contrárias aos interesses da Grécia e da sua população.
 
A auditoria deverá também avaliar se as condições estritas impostas pela Troika à Grécia, em troca de créditos que lhe foram concedidos, constituem uma violação de um conjunto de tratados e convenções que é suposto ser respeitado pelos poderes públicos, tanto do lado dos credores como do lado do tomador, a Grécia. O professor de Direito Andreas Fischer-Lescano, ao serviço da Câmara do Trabalho de Viena5, demonstrou de um modo irrefutável que os programas da Troika são ilegais em termos de direito europeu e de direito internacional. As medidas definidas nos programas de ajustamento a que a Grécia tem sido submetida e as políticas concretas que são daí consequência direta violam uma série de direitos fundamentais, tais como o direito à saúde, educação, habitação, segurança social, a um salário justo, mas também a liberdade de associação e de negociação coletiva. Todos esses direitos são protegidos por muitos textos legais a nível internacional e europeu, tais como a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a Carta Social Europeia, os dois Pactos das Nações Unidas sobre os direitos humanos, a Carta das Nações Unidas, a Convenção da ONU sobre os direitos da Criança, a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, mas também as convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que têm o estatuto de princípio geral do direito (PGD). A lista dos artigos violados pelos memoranda impostos à Grécia, feita meticulosamente pelo Professor Fischer-Lescano, é impressionante e envolve a responsabilidade jurídica das entidades que compõem a Troika e os mecanismos implementados por esta (por exemplo, o Mecanismo Europeu de Estabilidade).
 
A auditoria deverá verificar se, como exigido pelo Regulamento (UE) nº 472/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, mencionado acima, o programa «de ajustamento macroeconómico respeita plenamente o artigo 152º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e o artigo 28º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia». A auditoria deve também verificar se a passagem seguinte do Regulamento é respeitada: «Os esforços de consolidação orçamental, previstos no programa de ajustamento macroeconómico, levam em conta a necessidade de garantir os meios suficientes para assegurar políticas fundamentais, como a educação e a saúde pública». Trata-se também de verificar se é aplicado o seguinte princípio fundamental do Regulamento: «Nos termos do artigo 9º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, a União deve ter em conta, na definição e execução das suas políticas e ações, os requisitos para a promoção de um nível elevado de emprego, a garantia de uma proteção social adequada, a luta contra a exclusão social, bem como o direito a um nível elevado de educação, formação e proteção da saúde humana». Trata-se de relacionar o que ficou acima definido com o relatório de avaliação sobre a implementação do segundo programa de ajustamento estrutural, publicado em abril de 2014 pelos serviços competentes da UE, no qual os autores se felicitam pela redução de 20 % dos postos de trabalho na função pública grega6. Numa caixa intitulada os «sucessos do programa económico de ajustamento» («Success stories of the Economic Adjustment Programme»), lemos que as reformas do mercado de trabalho permitiram reduzir o salário mínimo legal e que foram suprimidos 150 mil postos de trabalho na função pública («decrease in general government employment by 150,000», p. 10).
 
A auditoria deverá poder mostrar claramente que as medidas ditadas pelos credores constituem regressões manifestas em termos de cumprimento dos direitos humanos fundamentais e uma violação grave de uma série de tratados. Diversas irregularidades significativas poderão ser identificadas. Na sequência, a comissão encarregue da auditoria poderá emitir um parecer sobre a legalidade, a ilegitimidade, ou seja, a nulidade da dívida contratada pela Grécia à Troika.
 
Tradução: Maria da Liberdade
 
Revisão: Rui Viana Pereira
 
1 Regulamento (UE) n ° 472/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de maio de 2013, relativo ao reforço da supervisão económica e orçamental dos Estados-membro da área do euro afetados ou ameaçados por graves dificuldades no que diz respeito à sua estabilidade financeira http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32013R0472&from=PT
 
2 C. Lapavitsas, A. Kaltenbrunner, G. Lambrinidis, D. Lindo, J. Meadway, J. Michell, J.P. Painceira, E. Pires, J. Powell, A. Stenfors, N. Teles: «The eurozone between austerity and default», Setembro de 2010. http://www.researchonmoneyandfinance.org/index.php/publication/eurozone-reports/33-second-rmf-report-on-the-eurozone-crisis-eurozone-between-austerity-and-default
 
Ver também Eric Toussaint, «Grécia-Alemanha: quem deve a quem? (2) Credores protegidos, povo grego sacrificado», publicado a 20 de outubro de 2012, http://cadtm.org/Grecia-Alemanha-quem-deve-a-quem-2
 
3 As taxas exigidas, que eram de 4 a 5,5% em 2010 - 2011, foram reduzidas para cerca de 1 % em 2012, após os protestos que se fizeram sentir em diferentes regiões (incluindo o governo irlandês, que tinha sofrido também a imposição de uma taxa muito elevada desde finais de 2010). Ao reduzirem consideravelmente as taxas, os 14 Estados reconheceram que as taxas anteriormente exigidas eram exageradas.
 
 
5Ver o relatório «Human Rights in Times of Austerity Policy», publicado a 17 de fevereiro de 2014, disponível em http://www.etui.org/content/downloa...).pdf.
 
6European Commission, Directorate-General for Economic and Financial Affairs, The Second Economic Adjustment Programme for Greece, Fourth Review – April 2014, p. 3. Ver http://ec.europa.eu/economy_finance/publications/occasional_paper/2014/pdf/ocp192_en.pdfo relatório possui 304 páginas.
 
- Éric Toussaint é docente na Universidade de Liège, porta-voz do CADTM internacional e membro do conselho científico da ATTAC França. É autor dos livros Bancocratie, Aden, 2014, http://cadtm.org/Bancocratie. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013 
https://www.alainet.org/fr/node/166937?language=en
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