Grécia, Irlanda e Portugal

Porque é que os acordos com a Troika são odiosos?

12/08/2011
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A Grécia, a Irlanda e Portugal são os três primeiros países da zona euro a ficar sob a tutela directa dos seus credores, depois de terem assinado com a Troika composta pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) os planos de “ajuda”. Mas estes acordos, que geram novas dívidas e impõem às populações medidas de austeridade sem precedentes, podem ser postos em causa com base no direito internacional. Com efeito, os acordos são odiosos e por conseguinte ilícitos. Como sublinha a doutrina da dívida odiosa, “as dívidas dos Estados devem ser contraídas e os fundos correspondentes devem ser utilizados no interesse e para as necessidades do Estado[1]”. Ora, os empréstimos da Troika acarretam como contrapartida medidas de austeridade que violam o direito internacional e que não permitirão a estes Estados sair da crise.

 

Todos os empréstimos concedidos em contrapartida de políticas que violem os direitos humanos são odiosos

 

Como afirma o relator especial Mohammed Bedjaoui no seu projecto de artigo sobre a sucessão dos Estados em matéria de dívidas para a Convenção de Viena de 1983: “Do ponto de vista da comunidade internacional, pode entender-se por dívida odiosa qualquer dívida contraída com fins não conformes ao direito internacional contemporâneo, em particular aos princípios do direito internacional incorporados na Carta das Nações Unidas.”[2]

 

Não restam dúvidas de que as condições impostas pela Troika (despedimentos em massa na função pública, desmantelamento da segurança social e dos serviços públicos, aumento de impostos directos como o IVA, diminuição do salário mínimo, etc.) violam de forma manifesta a Carta das Nações Unidas. Com efeito, entre as obrigações contidas na Carta, estipula-se nos artigos 55.°e 56.° : “a melhoria dos níveis de vida, o pleno emprego e as condições de progresso e de desenvolvimento na ordem económica e social (…), o respeito universal e efectivo pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Por consequência, as medidas de austeridade e as dívidas contraídas no quadro dos acordos com a Troika estão feridos de nulidade, já que tudo quanto está lá escrito é contrário à Carta da ONU.[3]

 

Além da violação dos direitos económicos, sociais e culturais resultante da aplicação de medidas anti-sociais, a Troika põe em causa o direito de autodeterminação dos povos, consagrado no artigo 1-2 da Carta da ONU e nos Pactos de 1966 sobre direitos humanos. Segundo o artigo primeiro, comum aos dois pactos, “Todos os povos têm direito à autoderminação. Em virtude deste direito, podem determinar livremente o seu estatuto político e assegurar livremente o seu desenvolvimento económico, social e cultural. Para alcançarem os seus fins, todos os povos podem dispor livremente das suas riquezas e dos seus recursos naturais, sem prejuízo das obrigações decorrentes da cooperação económica internacional, fundada no princípio do interesse mútuo e do direito internacional. Em caso algum se poderá privar um povo dos seus próprios meios de subsistência.”

 

Ora, a ingerência da Troika nos assuntos internos destes Estados prejudica flagrantemente a democracia. Os credores advertiram claramente que as eleições na Irlanda e em Portugal não poderiam pôr em causa a aplicação dos acordos. Citemos por exemplo o artigo do quotidiano francês LeFigaro de 9 de Abril de 2011, que refere as condições impostas a Portugal pelos ministros das finanças da zona euro e da União Europeia aquando duma reunião realizada em Budapeste, antes das eleições legislativas portuguesas: “A preparação [do plano de austeridade] deve começar imediatamente, tendo em vista um acordo entre os partidos a partir de meados de Maio, e permitir a implementação sem demora do programa de ajuste desde a formação do novo governo”. “[…] Os ministros deram claramente a entender a Portugal que não pretendem rever as contrapartidas da ajuda, seja qual for o resultado das eleições.”[4] No caso da Grécia, o programa de austeridade acordado com a Troika foi imposto em 2010 sem que o Parlamento o tivesse ratificado, à revelia do disposto na Constituição grega (artigo 36.°, parágrafo 2º)[5].

 

Este desprezo da Troika pela soberania dos Estados foi facilitado pela gravidade da situação financeira da Grécia, da Irlanda e de Portugal (primeiras vítimas na zona euro da crise da dívida, mas certamente não as últimas). Neste sentido, dificilmente se pode defender a validade dos acordos com o argumento da liberdade de consentimento. Em direito, quando uma das partes dum contrato não pode exercer a sua vontade com autonomia, o contrato fica ferido de nulidade. De que forma se aplica este princípio ao caso em estudo? Ao ser impedido de recorrer ao crédito nos mercados financeiros em condições razoáveis e a longo termo, devido às taxas de juro exigidas pelos mercados financeiros (entre 12 e 17%, conforme os casos), os governos destes três países tiveram de recorrer à Troika, que se aproveitou da sua condição de emprestador de último recurso. Ao aproveitar-se da situação aflitiva das autoridades gregas, irlandesas e portuguesas, a Troika conseguiu impor planos que tiveram e terão um efeito negativo na saúde económica desses países, em consequência do carácter pró-cíclico das medidas adoptadas (trata-se de medidas que reforçam os factores que geram o decréscimo da actividade económica).

 

As privatizações massivas nos sectores essenciais da economia (transportes, energia, correios, etc.) impostos pela Troika oferecem às empresas privadas estrangeiras um grau de controlo que afecta a soberania desses Estados e o direito dos povos a disporem livremente das suas riquezas e recursos naturais. Embora um Estado tenha o direito de transferir uma parte da sua soberania para uma entidade estrangeira, por meio de um acordo, essa transferência não pode, sem violar o direito internacional, comprometer a independência económica do Estado, que é um elemento essencial da independência política.[6]

 

Através destes condicionalismos, a Troika não se limitou a violar o direito internacional. Também se tornou cúmplice da violação dos direitos nacionais desses Estados. Na Grécia, mais especificamente, assiste-se a um verdadeiro golpe de Estado jurídico. A título de exemplo, várias disposições da lei 3845/2010 que implementa o programa de austeridade violam a Constituição, nomeadamente ao suprimirem o salário mínimo legal. O abandono da soberania do Estado grego é ainda agravado pela cláusula do acordo com a Troika que prevê a aplicabilidade do direito anglo-saxónico e a competência do Tribunal da União Europeia em caso de litígio. O Estado renuncia assim a uma prerrogativa fundamental de soberania que consiste na competência territorial dos tribunais nacionais. Ao mesmo tempo, a lei grega que implementa o programa de austeridade determina que as sentenças arbitrais (com valor constitucional) que concedam aumentos salariais para os anos de 2010 e 2011 sejam declaradas inválidas e improcedentes. Em suma, como escreveram os juristas G. Katrougalos e G. Pavlidis, “a soberania estatal fica limitada de forma muito similar ao controlo financeiro internacional que foi imposto ao país em 1897 após a falência (1893) e sobretudo em resultado da derrota grega na guerra grego-turca.”

 

Qualquer empréstimo cuja causa seja ilícita ou imoral é odioso

 

O fundamento jurídico extraído da causa ilícita e imoral que põe em causa a validade dos contratos encontra-se em numerosas legislações nacionais civis e comerciais. Este fundamento remete-nos directamente para uma questão que diz respeito à doutrina da dívida odiosa: quem se beneficia com os empréstimos? No caso dos acordos estabelecidos com a Grécia, a Irlanda e Portugal, são claramente os bancos privados europeus - que emprestaram a esses países de maneira totalmente irresponsável - que tiram proveito dos empréstimos, ao passo que são responsáveis pela crise da dívida. Com efeito, a ajuda aos bancos privados por parte dos poderes públicos após a crise financeira de 2007 acarretou a explosão da dívida dos Estados. Neste sentido, podemos classificar de imoral, no mínimo, a fundamentação dos acordos estabelecidos com a Troika e invocar o enriquecimento ilícito (um princípio geral do direito internacional segundo o artigo 38.° dos estatutos do Tribunal Internacional[7]) em proveito dos bancos privados.

 

O enriquecimento ilícito dos bancos privados é ainda agravado pelo facto de os bancos tirarem enorme proveito à custa dos poderes públicos em virtude da diferença entre, por um lado, as taxas de juro de mais de 4% que exigem aos Estados em causa para comprar títulos emitidos a prazo de 3 ou 6 meses, e, por outro, a taxa de 1% à qual esses mesmos bancos se financiaram junto do Banco Central Europeu até Abril de 2011, antes de este juro ter sido elevado para 1,25 e depois para 1,50%. Podemos igualmente invocar enriquecimento ilícito (enriquecimento abusivo ou ilegal) a propósito de Estados como a Alemanha, a França e a Áustria, que pediram emprestado nos mercados a 2% e emprestaram à Grécia a 5% ou a 5,5%, à Irlanda a 6%.[8] O mesmo é válido para o FMI, que empresta aos seus membros a taxas de juro baixasmas empresta à Grécia, à Irlanda e a Portugal a taxas nitidamente superiores.

 

As medidas anunciadas pelas autoridades europeias a 21 de Julho de 2011 constituem uma confissão clara e inequívoca de enriquecimento ilícito pelo qual são responsáveis, e do carácter doloso da sua política. Por fim, anunciaram a intenção de reduzirem em 2 ou 3 pontos percentuais as taxas de juro que exigem à Grécia, à Irlanda e a Portugal. Ao proclamarem que reconduziam as taxas de juro a cerca de 3,5% para os créditos a 15 ou 30 anos, reconheceram que as taxas de juro que estavam a pedir eram proibitivas. Fazem-no por se ter tornado evidente o desastre a que condenaram aqueles países e pelo forte perigo de contágio a outros países.

 

Qual seria o interesse da Irlanda, da Grécia e de Portugal em aceitarem estes acordos com a Troika? Nenhum, para além duma pequena lufada de oxigénio financeiro… que serve, no entanto, para reembolsar os credores. A médio e longo prazo, os planos de austeridade piorarão a situação, desencadeando um efeito “bola de neve”. Com efeito, o encargo dos juros sobre as novas dívidas aumenta, ao passo que as medidas impostas pela Troika trazem como consequência a redução da actividade económica, diminuindo a procura global e afectando as condições de vida da população. Podemos, portanto,estabelecero comportamento doloso do FMI, tão abissal é o fosso entre o seu discurso e a realidade. Na verdade, de acordo com o artigo 1.°dos seus estatutos, o FMI tem por objectivo “facilitar a expansão e o crescimento harmonioso do comércio internacional e assim contribuir para instaurar e manter níveis elevados de emprego e de rendimento real e para desenvolver os recursos produtivos de todos os Estados-membros, objectivos primeiros da política económica”[9] ou ainda “dar estabilidade aos Estados-membros, pondo os recursos gerais do Fundo temporariamente ao seu dispor, negociando garantias adequadas, fornecendo-lhes assim a possibilidade de corrigir os desequilíbrios das suas balanças de pagamento sem recorrer a medidas prejudiciais à prosperidade nacional ou internacional”[10]. Da mesma forma, podemos afirmar que a acção da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu constituem dolo à custa dos países envolvidos.

 

As medidas impostas pelo FMI, o BCE e a Comissão Europeia têm ainda por consequência condenar estes países à lógica infernal do endividamento, pois terão de continuar a pedir crédito para poderem reembolsar. Assim se inicia um ciclo de 10, 15 ou 20 anos de austeridade e aumento da dívida.[11] O estudo da OCDE sobre a dívida grega, publicado a 2 de Agosto de 2011[12], afirma nomeadamente que a dívida pública, que era de 140% em 2010, deverá voltar a ser 100% do PIB (produto interno bruto) em… 2035.

 

Perante esta situação, se os governantes pretendem respeitar os interesses da população, devem romper os acordos com a Troika, suspender imediatamente o reembolso da dívida (e respectivos juros) e proceder a auditorias com participação civil. Estas auditorias deverão determinar a parte ilegítima das dívidas, a qual deverá ser anulada sem condições. O resto da dívida pública deve igualmente ser reduzido pela aplicação de medidas à custa dos que dela se aproveitaram. Devem ser instaurados processos judiciais contra os responsáveis pelos danos causados. Obviamente, devem ser tomadas medidas complementares e essenciais (transferência de bancos para o sector público, reforma fiscal radical, socialização dos sectores privatizados durante a era neoliberal, etc.[13]), pois a anulação das dívidas ilegítimas, embora necessária, será insuficiente se a lógica do sistema permanecer intacta.

Tradução de Rui Viana Pereira, revisão de Noémie Josse.

 

- Renaud Vivien, jurista, membro do grupo de trabalho de Direitodo CADTM Bélgica. Eric Toussaint, doutorado em Ciências Políticas, presidente do CADTM Bélgica. São co-autores do livrocolectivoLa Dette ou la Vie, Aden-CADTM, 2011.

[1]Alexander Nahum Sack, Les Effets des Transformations des États sur leurs dettes publiques et autres obligations financières, Recueil Sirey, 1927.

[2] Mohammed Bedjaoui, «Neuvième rapport sur la succession dans les matières autres que les traités», A/CN.4/301et Add.l, p. 73.

[3] Monique e  Roland Weyl, Sortir le droit international du placard, PubliCETIM n°32, CETIM, Novembro de 2008.

[4]http://www.lefigaro.fr/conjoncture/2011/04/08/04016-20110408ARTFIG00645-le-portugal-au-regime-sec.php

      Ler Virginie de Romanet, «Le Portugal: dernière victime en date du modèle néolibéral», 2011,

      http://www.cadtm.org/Le-Portugal-derniere-victime-en.

[5]GeorgiosKatrougalos et GeorgiosPavlidis, «La Constitution nationale face à une situation de détresse financière: leçon tirées de la crise grecque (2009-2011)».

[6]http://unesdoc.unesco.org/images/0003/000331/033110fb.pdf.

[7]Está também previsto em diversos códigos civis nacionais, como no caso do código civil espanhol (nos artigos 1895.° e seguintes) e francês (artigos 1376.° e seguintes).

[8] Recordemos que o Tratado de Maastricht impede o BCE de emprestar directamente aos Estados.

[9] Ler os estatutos do FMI em http://www.imf.org/external/pubs/ft/aa/fre/aa01.htm.

[10] Sublinhados dos Autores.

[11] Eric Toussaint, As Ajudas Envenenadas do Menu Europeu, 2011,

http://www.cadtm.org/As-ajudas-envenenadas-do-menu.

[12]http://www.oecd.org/document/62/0,3746,fr_21571361_44315115_48475902_1_1_1_1,00.html

[13]Ver Oito Propostas Urgentes para Uma Outra Europa, http://www.cadtm.org/Oito-propostas-urgentes-para-uma.

 

https://www.alainet.org/fr/node/151834?language=es
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