A força que vem do Trópico
31/08/2008
- Opinión
As lutas em defesa da folha de coca na região do Chapare, no coração boliviano, serviram de fermento para a consolidação de um movimento social e político decisivo para a chegada de Evo Morales ao governo
Numa estrada de cascalho em Chipiriri, María Eugenia caminha, ainda sob o efeito da reunião do sindicato de cocaleros, que acabara de terminar.
- Como foi?, pergunto. (Havia esperado três horas por sua saída)
- Boa. Era importante.
- Qual era o motivo?
- Por causa dos professores rurais que participaram do protesto contra o governo. Discutimos o que fazer com eles.
- Ah, pela Lei de Pensões, né?
- Isso. Eles têm todo o direito de se manifestar, mas não às vésperas do referendo revogatório. Serviram como instrumento da direita.
- Entendi. Por isso que vocês estão bravos?
- É. Passamos por tanta luta, tantas humilhações, violações e mortes para chegar a este processo de transformações, que não podemos pô-lo a perder.
Chipiriri não é um lugar qualquer do território boliviano. A pequena e pobre comunidade rural faz parte de uma importante região, famosa internacionalmente: o Chapare, ou Trópico de Cochabamba.
É nessa zona tropical no coração da Bolívia, que, do final da década de 1980 até os primeiros anos do novo século, viveu-se uma verdadeira guerra. De um lado, os produtores de folha de coca, acusados de narcotraficantes. Do outro, os governos de turno, armados com a polícia e o exército, e assessorados pela embaixada dos EUA, com o objetivo de erradicar as plantações.
O saldo: inúmeros mortos, feridos, detidos, traumatizados. Outras tantas estupradas. Mas, felizmente, não só isso. Tamanho terror estatal contribuiu, também, para o nascimento de uma consciência política cujo desdobramento ninguém foi capaz de controlar.
Pois o Chapare foi o berço do Movimiento Al Socialismo (MAS), espécie de partido/movimento social/sindicato que exerce a presidência da República desde janeiro de 2006. E é a região onde despontou como líder sindical e, posteriormente, político, o cocalero aymara Evo Morales, hoje presidente da Bolívia, e impulsionador, como diz María Eugenia, do “processo de transformações” pelo qual passa o país.
Tempos de terror
“Posso ver suas credenciais?”, pergunta Ever Montoya, diretor da Radio Soberanía, antes de aceitar conceder a entrevista. Estamos a poucos metros e alguns dias antes da conversa com María Eugenia.
Entrego minha carteira internacional de jornalista. Ele olha, examina com atenção... e indaga, desconfiado: “O senhor é militar?”. Não, de jeito nenhum, quase exclamo. Ever tinha se confundido com meu endereço em São Paulo que constava no documento. A rua homenageia algum tenente desconhecido.
No Trópico de Cochabamba, os traumas adquiridos com os anos de guerra contra o Estado são perceptíveis a olho nu. Exemplos como esse acima se somam aos relatos dos que viveram, direta ou indiretamente, os horrores dos massacres, das invasões de domicílios, das prisões arbitrárias, das violações às mulheres e crianças.
“Antes, sofríamos. Não nos deixavam semear nossa coquita. Eles vinham e nos tiravam. Sequer nos deixavam coca para o pijcheo [o ato de mascar coca, em quéchua]. Porque nós estamos acostumados a pijchar para trabalhar. Eles diziam que, para ficarmos com um pouco, tinham que obter uma ordem do governo dos EUA. Pedíamos muito, dizendo que nos deixasse pelo menos um pouco para irmos a Cochabamba e trocarmos por vagem, por chuño [variação da batata]. Mas não permitiam”, lembra Luiza Argota, uma senhora cocalera que está no Chapare desde 1963 e que hoje vive em um chaco (como é chamada a pequena propriedade rural) em Chipiriri com o filho, a nora e os netos.
O filho, Claudio López Argota, quase não tem tempo de falar com a reportagem e mostrar a plantação de coca. Precisa remexer as folhas que estão no pátio, sobre uma lona de uns 60 metros quadrados. O processo ajuda na secagem adequada. Do contrário, a coca fica quebradiça e pouco apta para o consumo.
Mas, depois de alguns minutos, Claudio se dá uma folga: “Éramos bem reprimidos pelos governos anteriores. Havia muitas matanças, feridos. A vida não era tranqüila. Nos sentíamos como se estivéssemos em uma guerra. A cada instante, tínhamos que nos mobilizar. Então, nos jogavam gás lacrimogêneo, nos metiam bala. Eles diziam que aqui era a zona vermelha. Agora, mudou. Graças ao novo governo, é um lugar bem tranqüilo. Já dizem que é um paraíso tropical”.
A dirigente María Eugenia, hoje com 30 anos, viveu a “guerra” no Chapare na adolescência e no início da juventude. Ela sentiu o sofrimento na pele, pois seus pais participaram da resistência cocalera.
Quando tinha 8 anos, sua mãe, acusada de narcotráfico, ficou presa por quase cinco meses, até ser solta por falta de provas. Seu pai, em defesa da folha de coca, fez greve de fome durante três semanas, voltando para casa “meio morto”.
“Durante esse tempo, sofríamos muito. Tudo que tínhamos, o dinheiro que meus pais podiam economizar, eles levavam tudo. As coisas novas, cobertores, mosqueteiras, levavam tudo. Então, havia muita pobreza. Mesmo assim, não tínhamos onde viver, e por isso continuávamos aqui no Chapare”, lembra.
Não se conhece exatamente o número de mortos e feridos dos anos de repressão estatal aos cocaleros. No entanto, levantamento feito com base em dados de fontes oficiais e da imprensa pelo pesquisador Fernando Salazar, do Instituto de Estudos Sociais e Econômicos da Universidad Mayor de San Simón (UMSS), de Cochabamba, dá uma idéia aproximada.
No período de 1980 a 2004, teriam sido mortas 95 pessoas (entre elas, oito bebês asfixiados por gás lacrimogêneo, três menores de idade e três mulheres); detidas ilegalmente, 4130, e, estupradas, 13 mulheres, embora tal número seja considerado subestimado. Além disso, entre 1985 e 2004, foram torturados pelas forças oficiais 121 civis (dois menores e oito mulheres).
“Podemos fazer uma comparação com esse gravador. Se quisermos, apagamos o que tem dentro. O que não se pode fazer com a mente das pessoas, as crianças em particular, desde um ponto de vista psicológico. Ou seja, o jovem de agora, a criança de ontem, ainda vive seus traumas. Das invasões, dos gases, do cheiro... associam imediatamente um helicóptero com a presença militar”, lamenta Ever, da Radio Soberanía.
O “combate ao narcotráfico” made in USA
Os cocaleros do Trópico de Cochabamba tinham plena consciência que o inimigo era tanto interno quanto externo. Isso porque, a partir de 1986, o governo boliviano decidiu seguir as políticas antidrogas do governo estadunidense.
O tripé estava formado: guerra ao narcotráfico, erradicação das plantações de coca, e sua substituição por cultivos alternativos. Assim, uma série de planos, programas e leis nesse sentido foram sendo paulatinamente implantados pelas gestões neoliberais, acompanhados por uma duríssima repressão estatal e pela assessoria – militar, financeira e de inteligência – da embaixada dos EUA.
Mas os três eixos de atuação das políticas antidrogas do Estado boliviano não funcionariam sem um quarto pilar, fundamental: a intensa campanha mediática contra os cocaleros.
“Todos éramos narcotraficantes, narcoguerrilheiros. Até o povo nos odiava. Quando íamos nos mobilizar em Cochabamba, nos cuspiam. Era proibido que filho de cocalero ingressasse na universidade. Que fosse aos colégios na cidade. A população não entendia porque lutávamos. Claro, eram mal informados. Porque a lei dizia que coca era cocaína”, lembra Julio Salazar, secretário-geral da Federação do Trópico de Cochabamba.
Hoje, todos os cocaleros fazem questão de frisar que os tempos são outros. De paz, tranqüilidade, respeito à folha de coca. Mas a militarização da época da repressão permanece viva nos postos de controle de drogas do exército, espalhados pelo Chapare.
Sábado, 9 de agosto, estou no carro com María Eugenia e Julio, que havia me prometido a entrevista, mas em Villa Tunari, distante alguns quilômetros de Chipiriri, onde nos conhecemos.
No posto militar do meio do caminho, o dirigente cocalero tenta convencer o soldado a deixá-lo passar sem os trâmites obrigatórios. “Amigo, está chegando o presidente, vamos nos encontrar com ele”. Evo se reuniria com os cocaleros um dia antes do referendo. “Registro”, diz o militar, apontando a guarita em frente, com a voz e a expressão firmes, sem se comover. Resignado, Julio sai do carro com os documentos e se encaminha à identificação.
“Eles abusam. Nos apalpam”, aproveita María Eugenia para protestar. “Às vezes, fazem a gente se despir lá dentro”. Hoje ainda é assim?, pergunto, ingenuamente. “Sim, é”. Olho pela janela do veículo e leio, numa faixa: “Ajude a acabar com o narcotráfico no Chapare”.
Da repressão à organização
“Morrer, antes que viver como escravos” é o que diz o refrão do hino boliviano. E seguindo a canção nacional que os cocaleros do Chapare foram se fortalecendo cada vez mais, à medida que a repressão aumentava.
“Se sabemos cantar, e desde crianças cantamos, então, agora, vamos enfrentar. Morreremos antes do que viver como escravos no Trópico de Cochabamba”, pensaram os sindicalistas, de acordo com María Eugenia.
“Tanta repressão nos obrigou a nos organizarmos. Agora, temos uma estrutura bem sólida. Em nenhuma parte do mundo, acredito que seja tão organizado. Porque, para nos mobilizarmos, são suficientes 24 horas. Sabemos exatamente quantas comunidades existem, quantas centrais, quantas federações. Na assembléia das seis federações [de centrais de sindicatos cocaleros da região], o que se decide é lei, se cumpre”, orgulha-se Julio.
O dirigente chama a atenção para o fato de que, embora um “companheiro” deles seja hoje o presidente, os cocaleros não dependem do governo, pois as bases contribuem financeiramente. “As bases aportam. Portanto, os dirigentes têm que trabalhar para elas”.
Claudio Argota, o cocalero que seca as folhas de coca no pátio de sua propriedade, é um exemplo. “Se não fossem nossas organizações sindicais, não poderíamos entender as coisas que acontecem. Graças a elas, nos metemos na política, temos mais conhecimento”, reconhece.
Hoje, o movimento continua mostrando uma coesão e uma força política impressionantes. Uma mostra clara disso foi a decisão, em junho deste ano, de expulsar a USAID (agência estadunidense de ajuda ao desenvolvimento) de todo o Chapare.
De acordo com os cocaleros, a entidade agia com o objetivo de dividir o movimento. “O dinheiro que vinha dos EUA em nome de desenvolvimento alternativo era usado para comprar dirigentes. Eles tinham moto, tinham soldo. Os opositores não tinham nada, éramos perseguidos, nem sequer dormíamos em casa”, conta Feliciano Mamani Quispe, hoje prefeito de Villa Tunari.
Segundo ele, que em 2002 foi baleado na perna pelo exército, obrigando-o a ficar por quase um ano no hospital, a USAID condicionava o financiamento a, por exemplo, apoio a prefeitos da região. “Se não apóia, perde o dinheiro. Já te põe entre a cruz e a espada”.
Fernando Salazar, da UMSS, identifica dois tipos de dinâmicas no sindicalismo do Trópico de Cochabamba. Um, ao nível das bases, de demandas ao Estado, muito horizontal: as decisões são amplamente discutidas, e tomadas em consenso.
“Quanto à relação com o Estado e organismos internacionais, por exemplo, existe outro nível de representação. É uma dinâmica mais vertical. Aqui há a hegemonia de Evo Morales, seu estilo. A coerção muito forte”, explica.
Segundo ele, a dinâmica das bases surpreende até ao presidente. “Existem esses espaços de horizontalidade que até ele é obrigado a reconhecer. Por exemplo, a eleição de dirigentes. Muitos não são de seu agrado. Seus grandes aliados às vezes são deslocados. Essa é a lógica também do MAS”, analisa.
O partido-sindicato-movimento
No mercado de coca de Villa 14 de Septiembre, distrito de Villa Tunari onde Evo vivia e militava, já não há mais tanta coca. Um ou outro saco do produto é guardado nos armazéns.
Às vésperas do referendo revogatório dos mandatos do presidente e dos governadores departamentais, o chão do local está forrado de faixas que acabaram de ser pintadas. Dirigentes cocaleros as avaliam. Em azul e branco (duas das cores do MAS, que ainda tem o preto), dizem: “Sim ao processo de transformações. Vote Evo”.
“No Chapare, a organização sindical e a política se confundem”, diz o sociólogo Jorge Komadina. Talvez por isso mesmo, nenhum cocalero entrevistado pela reportagem se referiu ao partido de Evo Morales como “MAS”. Todos, ao falar dele, usavam a expressão “instrumento político”.
Pois foi com essa razão de ser que ele nasceu, em meados dos anos 1990. “Antes, não sabíamos de política. Só estávamos organizados para reclamarmos as reivindicações específicas. Depois, junto com outras organizações do país, pensamos: Por que os produtores de coca, os camponeses, os indígenas, a classe média, a classe operária, não podemos ter um instrumento político?”, lembra Feliciano.
Os cocaleros já estavam fartos de apoiarem eleitoralmente os tradicionais partidos de esquerda ou até os de direita, em troca da manutenção das plantações de coca. As negociações de espaços de poder por parte da esquerda, sem consultá-los, e as políticas de criminalização da coca por parte da direita os fazem repensar suas ações.
“Esse é o momento de coesão do movimento cocalero, e também do movimento camponês em geral, que coincide com o rechaço às comemorações dos quinhentos anos do descobrimento da América, em 1992”, explica Fernando Salazar.
De acordo com ele, a contestação ao Estado colonial ainda vigente no país fez com que, nacionalmente, se trabalhasse muito fortemente o empoderamento dos povos originários, com a formação de uma militância de esquerda, através da educação e comunicação populares, mas para um projeto indígena.
“Era um projeto político de uma nova Bolívia. Entre setembro de 1990 e outubro de 1992, houve um intenso trabalho para que amadurecesse a proposta de criação do instrumento político para a soberania dos povos. Instrumento indígena, com apoio das classes médias e de intelectuais, mas saindo das margens da velha esquerda nacional”, sintetiza.
Assim, o novo “partido” nasce, primeiro, com o nome Assembléia para a Soberania dos Povos (ASP). No entanto, a burocracia da Corte Nacional Eleitoral impede, durantes quatro anos, sua participação nas eleições nacionais e municipais, obrigando o novo movimento a fazer alianças com partidos tradicionais.
Em 1999, “um grupo de intelectuais de esquerda de La Paz, dá a sigla MAS de presente aos cocaleros. Porque estes decidem, de uma vez por todas, lançar-se com partido próprio, enquanto os outros setores ainda estavam na velha prática de buscar alianças”, explica Fernando.
À nova sigla, agrega-se o nome “Instrumento Político para a Soberania dos Povos”. Estava criado o MAS-IPSP. A partir daí, o crescimento eleitoral foi vertiginoso, até conquistar a presidência, em dezembro de 2005.
Segundo Jorge Komadina, o MAS surgiu, a princípio, como um movimento que queria intervir nas eleições municipais, combinando tal atuação institucional com a defesa da folha de coca. “Em virtude de sua luta contra os governos neoliberais, os sindicatos de produtores de coca se constituíram em um setor de vanguarda das lutas sociais na Bolívia. É o movimento social melhor estruturado, que conseguiu articular demandas específicas com um programa político nacional antiimperialista, de defesa da dignidade nacional. Não é casual que Evo Morales, dirigente dos cocaleros, tenha sido o representante das lutas anti-neoliberais na Bolívia”, analisa.
Para ele, por essas razões, o MAS é mais um movimento social que um partido político, pois, apesar de atuar nas eleições, é uma organização política com profunda base social. “É um fenômeno inédito na história boliviana”.
Quanto aos riscos de burocratização devido às funções de governo, Jorge acredita que, até agora, isso não aconteceu, pois existe um fluxo muito intenso entre o presidente e os dirigentes dos movimentos sociais.
Para garantir que Evo não se afaste das bases, os cocaleros o mantêm como presidente da Coordenação das Seis Federações do Trópico de Cochabamba, entidade sindical máxima do Chapare.
Uma metáfora
“O instrumento político seria como a pessoa, e a folha de coca, o sangue. Todas essas ações, concentrações, que estamos realizando, é a folha que nos financia. Cultivamos, vendemos, e com esse mesmo dinheirinho, vamos fazer campanha. A organização sindical, o instrumento e a coca não podem ser separados. Estão muito ligados, porque, da coca, passamos à política”, resume María Eugenia.
O “controle social” do narcotráfico
Para impedir o aumento das atividades ilícitas na região, sindicatos atuam para garantir que a produção de coca por família se restrinja ao máximo permitido
De forma unânime, os cocaleros do Chapare reconhecem a presença do narcotráfico na região. Mas rechaçam veementemente a criminalização da folha de coca e dos seus produtores. “Pela necessidade das pessoas, elas sempre se metem nisso. Não negamos que isso existe. Não podemos dizer que somos livres de narcotráfico, mas queremos acabar com ele”, diz Feliciano Mamani Quispe, prefeito de Villa Tunari, município local.
De acordo com Fernando Salazar, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Econômicos da Universidad Mayor de San Simón (UMSS), de Cochabamba, o Chapare se tornou uma zona livre de produção de cocaína em meados dos anos 1970. “Todo camponês estava ligado à droga. Não havia outra alternativa. Tudo era caríssimo na região”.
Do início do neoliberalismo no país, em 1985, até 1990, a produção de cocaína se intensifica, ajudada pela vinculação dos governos de então com o tráfico de entorpecentes. “Toda a pobreza da Bolívia vai ao Chapare como último recurso de sobrevivência. Para trabalhar na coca para o narcotráfico”, explica Fernando.
Na década de 1990 em diante, a ligação dos camponeses com a produção da droga diminui, mas a repressão estatal aumenta. No entanto, durante a gestão do presidente Carlos Mesa (2003-2005), na iminência de uma guerra civil – nas palavras do pesquisador da UMSS – entre cocaleros e agricultores que recebiam financiamento para cultivos alternativos, decide-se permitir que cada família possa produzir um cato de coca, ou seja, 1,6 mil metros quadrados (mais ou menos a sexta parte de um hectare).
Tal medida permanece até hoje, mas não é suficiente para garantir a sobrevivência familiar. Claudio López Argota, por exemplo, explica que há, por ano, quatro colheitas da planta, o que rende, aproximadamente, 600 libras.
Com a libra a 20 bolivianos (a moeda do país), a produção de coca gera em torno de mil bolivianos por mês, um pouco menos que dois salários mínimos. “Isso não sustenta, temos que fazer durar até a próxima colheita. Não dá para viver. Nos sustentamos com outros cultivos: cítricos, banana, mandioca, arroz”, conta Claudio.
Mesmo assim, o cato de coca é objeto de um “controle social” por parte dos sindicatos cocaleros. “Nos comprometemos a respeitar para ajudar nosso governo a governar. Não queremos que a comunidade internacional o acuse no tema do narcotráfico”, esclarece Julio Salazar, secretário-geral da Federação do Trópico de Cochabamba.
Já María Eugenia Ledezma, secretária de atas da Federação de Mulheres do Trópico de Cochabamba, protesta contra a penalização da folha de coca. “Em seu estado natural, ela não é droga. Para que seja droga, põem químicos, e estes, onde fabricam? Nos EUA, e desde lá vêm. Os postos de controle que deixam esses químicos passar. E nos envolvem pelo fato de que produzimos a folha de coca”.
A trincheira cocalera na guerra de informação
Na parede da Radio Soberanía, em Chipiriri, pode-se ler: “A voz soberana do cocalero”. Provavelmente, sem esse instrumento, teria sido muito mais difícil para o movimento sindical do Trópico de Cochabamba avançar em sua organização.
Pois a rádio comunitária local serviu como uma das principais trincheiras da resistência cocalera às políticas de erradicação da folha de coca durante os governos neoliberais. Criada em 1996, o meio nasceu, segundo Ever Montoya, seu diretor, com a necessidade de expressar o pensamento, a idéia, as inquietudes e as aspirações das pessoas assentadas na região.
“Nenhum meio daqui queria sequer difundir sua música, seus costumes. Para as rádios da década de 1970 e 1980, os cidadãos que viviam na área não existiam. Ou seja, se vulneravam os direitos da liberdade da informação e de expressão”, explica.
Por isso, os sindicalistas da Federação do Trópico de Cochabamba começaram a considerar, já nos anos 1980, a possibilidade de se comprar meios de comunicação. “Era importante também para contestar as políticas de erradicação da coca, de sua substituição por produtos alternativos. Por meio de uma ação mediática, tinha-se a imagem que todo o Chapare era zona de atividade ilícita, de narcotráfico”.
Segundo Ever, na época da repressão estatal, a rádio servia como instrumento de convocatória massiva e imediata. Por isso, para ele, é uma das mais combativas que existem. “Defendeu os direitos humanos, a terra e o território de quem veio formar esses assentamentos”.
Hoje, a Radio Soberanía conta com o apoio financeiro das federações de cocaleros do Chapare. Antes de alcance mais limitado, agora chega a todas as comunidades da região. De acordo com Ever, a população local confia na rádio como “único instrumento para dizer sua verdade. Porque não existe outro meio de comunicação crível para eles”.
Igor Ojeda
de Chipiriri, Villa Tunari e Cochabamba (Bolívia)
Numa estrada de cascalho em Chipiriri, María Eugenia caminha, ainda sob o efeito da reunião do sindicato de cocaleros, que acabara de terminar.
- Como foi?, pergunto. (Havia esperado três horas por sua saída)
- Boa. Era importante.
- Qual era o motivo?
- Por causa dos professores rurais que participaram do protesto contra o governo. Discutimos o que fazer com eles.
- Ah, pela Lei de Pensões, né?
- Isso. Eles têm todo o direito de se manifestar, mas não às vésperas do referendo revogatório. Serviram como instrumento da direita.
- Entendi. Por isso que vocês estão bravos?
- É. Passamos por tanta luta, tantas humilhações, violações e mortes para chegar a este processo de transformações, que não podemos pô-lo a perder.
Chipiriri não é um lugar qualquer do território boliviano. A pequena e pobre comunidade rural faz parte de uma importante região, famosa internacionalmente: o Chapare, ou Trópico de Cochabamba.
É nessa zona tropical no coração da Bolívia, que, do final da década de 1980 até os primeiros anos do novo século, viveu-se uma verdadeira guerra. De um lado, os produtores de folha de coca, acusados de narcotraficantes. Do outro, os governos de turno, armados com a polícia e o exército, e assessorados pela embaixada dos EUA, com o objetivo de erradicar as plantações.
O saldo: inúmeros mortos, feridos, detidos, traumatizados. Outras tantas estupradas. Mas, felizmente, não só isso. Tamanho terror estatal contribuiu, também, para o nascimento de uma consciência política cujo desdobramento ninguém foi capaz de controlar.
Pois o Chapare foi o berço do Movimiento Al Socialismo (MAS), espécie de partido/movimento social/sindicato que exerce a presidência da República desde janeiro de 2006. E é a região onde despontou como líder sindical e, posteriormente, político, o cocalero aymara Evo Morales, hoje presidente da Bolívia, e impulsionador, como diz María Eugenia, do “processo de transformações” pelo qual passa o país.
Tempos de terror
“Posso ver suas credenciais?”, pergunta Ever Montoya, diretor da Radio Soberanía, antes de aceitar conceder a entrevista. Estamos a poucos metros e alguns dias antes da conversa com María Eugenia.
Entrego minha carteira internacional de jornalista. Ele olha, examina com atenção... e indaga, desconfiado: “O senhor é militar?”. Não, de jeito nenhum, quase exclamo. Ever tinha se confundido com meu endereço em São Paulo que constava no documento. A rua homenageia algum tenente desconhecido.
No Trópico de Cochabamba, os traumas adquiridos com os anos de guerra contra o Estado são perceptíveis a olho nu. Exemplos como esse acima se somam aos relatos dos que viveram, direta ou indiretamente, os horrores dos massacres, das invasões de domicílios, das prisões arbitrárias, das violações às mulheres e crianças.
“Antes, sofríamos. Não nos deixavam semear nossa coquita. Eles vinham e nos tiravam. Sequer nos deixavam coca para o pijcheo [o ato de mascar coca, em quéchua]. Porque nós estamos acostumados a pijchar para trabalhar. Eles diziam que, para ficarmos com um pouco, tinham que obter uma ordem do governo dos EUA. Pedíamos muito, dizendo que nos deixasse pelo menos um pouco para irmos a Cochabamba e trocarmos por vagem, por chuño [variação da batata]. Mas não permitiam”, lembra Luiza Argota, uma senhora cocalera que está no Chapare desde 1963 e que hoje vive em um chaco (como é chamada a pequena propriedade rural) em Chipiriri com o filho, a nora e os netos.
O filho, Claudio López Argota, quase não tem tempo de falar com a reportagem e mostrar a plantação de coca. Precisa remexer as folhas que estão no pátio, sobre uma lona de uns 60 metros quadrados. O processo ajuda na secagem adequada. Do contrário, a coca fica quebradiça e pouco apta para o consumo.
Mas, depois de alguns minutos, Claudio se dá uma folga: “Éramos bem reprimidos pelos governos anteriores. Havia muitas matanças, feridos. A vida não era tranqüila. Nos sentíamos como se estivéssemos em uma guerra. A cada instante, tínhamos que nos mobilizar. Então, nos jogavam gás lacrimogêneo, nos metiam bala. Eles diziam que aqui era a zona vermelha. Agora, mudou. Graças ao novo governo, é um lugar bem tranqüilo. Já dizem que é um paraíso tropical”.
A dirigente María Eugenia, hoje com 30 anos, viveu a “guerra” no Chapare na adolescência e no início da juventude. Ela sentiu o sofrimento na pele, pois seus pais participaram da resistência cocalera.
Quando tinha 8 anos, sua mãe, acusada de narcotráfico, ficou presa por quase cinco meses, até ser solta por falta de provas. Seu pai, em defesa da folha de coca, fez greve de fome durante três semanas, voltando para casa “meio morto”.
“Durante esse tempo, sofríamos muito. Tudo que tínhamos, o dinheiro que meus pais podiam economizar, eles levavam tudo. As coisas novas, cobertores, mosqueteiras, levavam tudo. Então, havia muita pobreza. Mesmo assim, não tínhamos onde viver, e por isso continuávamos aqui no Chapare”, lembra.
Não se conhece exatamente o número de mortos e feridos dos anos de repressão estatal aos cocaleros. No entanto, levantamento feito com base em dados de fontes oficiais e da imprensa pelo pesquisador Fernando Salazar, do Instituto de Estudos Sociais e Econômicos da Universidad Mayor de San Simón (UMSS), de Cochabamba, dá uma idéia aproximada.
No período de 1980 a 2004, teriam sido mortas 95 pessoas (entre elas, oito bebês asfixiados por gás lacrimogêneo, três menores de idade e três mulheres); detidas ilegalmente, 4130, e, estupradas, 13 mulheres, embora tal número seja considerado subestimado. Além disso, entre 1985 e 2004, foram torturados pelas forças oficiais 121 civis (dois menores e oito mulheres).
“Podemos fazer uma comparação com esse gravador. Se quisermos, apagamos o que tem dentro. O que não se pode fazer com a mente das pessoas, as crianças em particular, desde um ponto de vista psicológico. Ou seja, o jovem de agora, a criança de ontem, ainda vive seus traumas. Das invasões, dos gases, do cheiro... associam imediatamente um helicóptero com a presença militar”, lamenta Ever, da Radio Soberanía.
O “combate ao narcotráfico” made in USA
Os cocaleros do Trópico de Cochabamba tinham plena consciência que o inimigo era tanto interno quanto externo. Isso porque, a partir de 1986, o governo boliviano decidiu seguir as políticas antidrogas do governo estadunidense.
O tripé estava formado: guerra ao narcotráfico, erradicação das plantações de coca, e sua substituição por cultivos alternativos. Assim, uma série de planos, programas e leis nesse sentido foram sendo paulatinamente implantados pelas gestões neoliberais, acompanhados por uma duríssima repressão estatal e pela assessoria – militar, financeira e de inteligência – da embaixada dos EUA.
Mas os três eixos de atuação das políticas antidrogas do Estado boliviano não funcionariam sem um quarto pilar, fundamental: a intensa campanha mediática contra os cocaleros.
“Todos éramos narcotraficantes, narcoguerrilheiros. Até o povo nos odiava. Quando íamos nos mobilizar em Cochabamba, nos cuspiam. Era proibido que filho de cocalero ingressasse na universidade. Que fosse aos colégios na cidade. A população não entendia porque lutávamos. Claro, eram mal informados. Porque a lei dizia que coca era cocaína”, lembra Julio Salazar, secretário-geral da Federação do Trópico de Cochabamba.
Hoje, todos os cocaleros fazem questão de frisar que os tempos são outros. De paz, tranqüilidade, respeito à folha de coca. Mas a militarização da época da repressão permanece viva nos postos de controle de drogas do exército, espalhados pelo Chapare.
Sábado, 9 de agosto, estou no carro com María Eugenia e Julio, que havia me prometido a entrevista, mas em Villa Tunari, distante alguns quilômetros de Chipiriri, onde nos conhecemos.
No posto militar do meio do caminho, o dirigente cocalero tenta convencer o soldado a deixá-lo passar sem os trâmites obrigatórios. “Amigo, está chegando o presidente, vamos nos encontrar com ele”. Evo se reuniria com os cocaleros um dia antes do referendo. “Registro”, diz o militar, apontando a guarita em frente, com a voz e a expressão firmes, sem se comover. Resignado, Julio sai do carro com os documentos e se encaminha à identificação.
“Eles abusam. Nos apalpam”, aproveita María Eugenia para protestar. “Às vezes, fazem a gente se despir lá dentro”. Hoje ainda é assim?, pergunto, ingenuamente. “Sim, é”. Olho pela janela do veículo e leio, numa faixa: “Ajude a acabar com o narcotráfico no Chapare”.
Da repressão à organização
“Morrer, antes que viver como escravos” é o que diz o refrão do hino boliviano. E seguindo a canção nacional que os cocaleros do Chapare foram se fortalecendo cada vez mais, à medida que a repressão aumentava.
“Se sabemos cantar, e desde crianças cantamos, então, agora, vamos enfrentar. Morreremos antes do que viver como escravos no Trópico de Cochabamba”, pensaram os sindicalistas, de acordo com María Eugenia.
“Tanta repressão nos obrigou a nos organizarmos. Agora, temos uma estrutura bem sólida. Em nenhuma parte do mundo, acredito que seja tão organizado. Porque, para nos mobilizarmos, são suficientes 24 horas. Sabemos exatamente quantas comunidades existem, quantas centrais, quantas federações. Na assembléia das seis federações [de centrais de sindicatos cocaleros da região], o que se decide é lei, se cumpre”, orgulha-se Julio.
O dirigente chama a atenção para o fato de que, embora um “companheiro” deles seja hoje o presidente, os cocaleros não dependem do governo, pois as bases contribuem financeiramente. “As bases aportam. Portanto, os dirigentes têm que trabalhar para elas”.
Claudio Argota, o cocalero que seca as folhas de coca no pátio de sua propriedade, é um exemplo. “Se não fossem nossas organizações sindicais, não poderíamos entender as coisas que acontecem. Graças a elas, nos metemos na política, temos mais conhecimento”, reconhece.
Hoje, o movimento continua mostrando uma coesão e uma força política impressionantes. Uma mostra clara disso foi a decisão, em junho deste ano, de expulsar a USAID (agência estadunidense de ajuda ao desenvolvimento) de todo o Chapare.
De acordo com os cocaleros, a entidade agia com o objetivo de dividir o movimento. “O dinheiro que vinha dos EUA em nome de desenvolvimento alternativo era usado para comprar dirigentes. Eles tinham moto, tinham soldo. Os opositores não tinham nada, éramos perseguidos, nem sequer dormíamos em casa”, conta Feliciano Mamani Quispe, hoje prefeito de Villa Tunari.
Segundo ele, que em 2002 foi baleado na perna pelo exército, obrigando-o a ficar por quase um ano no hospital, a USAID condicionava o financiamento a, por exemplo, apoio a prefeitos da região. “Se não apóia, perde o dinheiro. Já te põe entre a cruz e a espada”.
Fernando Salazar, da UMSS, identifica dois tipos de dinâmicas no sindicalismo do Trópico de Cochabamba. Um, ao nível das bases, de demandas ao Estado, muito horizontal: as decisões são amplamente discutidas, e tomadas em consenso.
“Quanto à relação com o Estado e organismos internacionais, por exemplo, existe outro nível de representação. É uma dinâmica mais vertical. Aqui há a hegemonia de Evo Morales, seu estilo. A coerção muito forte”, explica.
Segundo ele, a dinâmica das bases surpreende até ao presidente. “Existem esses espaços de horizontalidade que até ele é obrigado a reconhecer. Por exemplo, a eleição de dirigentes. Muitos não são de seu agrado. Seus grandes aliados às vezes são deslocados. Essa é a lógica também do MAS”, analisa.
O partido-sindicato-movimento
No mercado de coca de Villa 14 de Septiembre, distrito de Villa Tunari onde Evo vivia e militava, já não há mais tanta coca. Um ou outro saco do produto é guardado nos armazéns.
Às vésperas do referendo revogatório dos mandatos do presidente e dos governadores departamentais, o chão do local está forrado de faixas que acabaram de ser pintadas. Dirigentes cocaleros as avaliam. Em azul e branco (duas das cores do MAS, que ainda tem o preto), dizem: “Sim ao processo de transformações. Vote Evo”.
“No Chapare, a organização sindical e a política se confundem”, diz o sociólogo Jorge Komadina. Talvez por isso mesmo, nenhum cocalero entrevistado pela reportagem se referiu ao partido de Evo Morales como “MAS”. Todos, ao falar dele, usavam a expressão “instrumento político”.
Pois foi com essa razão de ser que ele nasceu, em meados dos anos 1990. “Antes, não sabíamos de política. Só estávamos organizados para reclamarmos as reivindicações específicas. Depois, junto com outras organizações do país, pensamos: Por que os produtores de coca, os camponeses, os indígenas, a classe média, a classe operária, não podemos ter um instrumento político?”, lembra Feliciano.
Os cocaleros já estavam fartos de apoiarem eleitoralmente os tradicionais partidos de esquerda ou até os de direita, em troca da manutenção das plantações de coca. As negociações de espaços de poder por parte da esquerda, sem consultá-los, e as políticas de criminalização da coca por parte da direita os fazem repensar suas ações.
“Esse é o momento de coesão do movimento cocalero, e também do movimento camponês em geral, que coincide com o rechaço às comemorações dos quinhentos anos do descobrimento da América, em 1992”, explica Fernando Salazar.
De acordo com ele, a contestação ao Estado colonial ainda vigente no país fez com que, nacionalmente, se trabalhasse muito fortemente o empoderamento dos povos originários, com a formação de uma militância de esquerda, através da educação e comunicação populares, mas para um projeto indígena.
“Era um projeto político de uma nova Bolívia. Entre setembro de 1990 e outubro de 1992, houve um intenso trabalho para que amadurecesse a proposta de criação do instrumento político para a soberania dos povos. Instrumento indígena, com apoio das classes médias e de intelectuais, mas saindo das margens da velha esquerda nacional”, sintetiza.
Assim, o novo “partido” nasce, primeiro, com o nome Assembléia para a Soberania dos Povos (ASP). No entanto, a burocracia da Corte Nacional Eleitoral impede, durantes quatro anos, sua participação nas eleições nacionais e municipais, obrigando o novo movimento a fazer alianças com partidos tradicionais.
Em 1999, “um grupo de intelectuais de esquerda de La Paz, dá a sigla MAS de presente aos cocaleros. Porque estes decidem, de uma vez por todas, lançar-se com partido próprio, enquanto os outros setores ainda estavam na velha prática de buscar alianças”, explica Fernando.
À nova sigla, agrega-se o nome “Instrumento Político para a Soberania dos Povos”. Estava criado o MAS-IPSP. A partir daí, o crescimento eleitoral foi vertiginoso, até conquistar a presidência, em dezembro de 2005.
Segundo Jorge Komadina, o MAS surgiu, a princípio, como um movimento que queria intervir nas eleições municipais, combinando tal atuação institucional com a defesa da folha de coca. “Em virtude de sua luta contra os governos neoliberais, os sindicatos de produtores de coca se constituíram em um setor de vanguarda das lutas sociais na Bolívia. É o movimento social melhor estruturado, que conseguiu articular demandas específicas com um programa político nacional antiimperialista, de defesa da dignidade nacional. Não é casual que Evo Morales, dirigente dos cocaleros, tenha sido o representante das lutas anti-neoliberais na Bolívia”, analisa.
Para ele, por essas razões, o MAS é mais um movimento social que um partido político, pois, apesar de atuar nas eleições, é uma organização política com profunda base social. “É um fenômeno inédito na história boliviana”.
Quanto aos riscos de burocratização devido às funções de governo, Jorge acredita que, até agora, isso não aconteceu, pois existe um fluxo muito intenso entre o presidente e os dirigentes dos movimentos sociais.
Para garantir que Evo não se afaste das bases, os cocaleros o mantêm como presidente da Coordenação das Seis Federações do Trópico de Cochabamba, entidade sindical máxima do Chapare.
Uma metáfora
“O instrumento político seria como a pessoa, e a folha de coca, o sangue. Todas essas ações, concentrações, que estamos realizando, é a folha que nos financia. Cultivamos, vendemos, e com esse mesmo dinheirinho, vamos fazer campanha. A organização sindical, o instrumento e a coca não podem ser separados. Estão muito ligados, porque, da coca, passamos à política”, resume María Eugenia.
O “controle social” do narcotráfico
Para impedir o aumento das atividades ilícitas na região, sindicatos atuam para garantir que a produção de coca por família se restrinja ao máximo permitido
De forma unânime, os cocaleros do Chapare reconhecem a presença do narcotráfico na região. Mas rechaçam veementemente a criminalização da folha de coca e dos seus produtores. “Pela necessidade das pessoas, elas sempre se metem nisso. Não negamos que isso existe. Não podemos dizer que somos livres de narcotráfico, mas queremos acabar com ele”, diz Feliciano Mamani Quispe, prefeito de Villa Tunari, município local.
De acordo com Fernando Salazar, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Econômicos da Universidad Mayor de San Simón (UMSS), de Cochabamba, o Chapare se tornou uma zona livre de produção de cocaína em meados dos anos 1970. “Todo camponês estava ligado à droga. Não havia outra alternativa. Tudo era caríssimo na região”.
Do início do neoliberalismo no país, em 1985, até 1990, a produção de cocaína se intensifica, ajudada pela vinculação dos governos de então com o tráfico de entorpecentes. “Toda a pobreza da Bolívia vai ao Chapare como último recurso de sobrevivência. Para trabalhar na coca para o narcotráfico”, explica Fernando.
Na década de 1990 em diante, a ligação dos camponeses com a produção da droga diminui, mas a repressão estatal aumenta. No entanto, durante a gestão do presidente Carlos Mesa (2003-2005), na iminência de uma guerra civil – nas palavras do pesquisador da UMSS – entre cocaleros e agricultores que recebiam financiamento para cultivos alternativos, decide-se permitir que cada família possa produzir um cato de coca, ou seja, 1,6 mil metros quadrados (mais ou menos a sexta parte de um hectare).
Tal medida permanece até hoje, mas não é suficiente para garantir a sobrevivência familiar. Claudio López Argota, por exemplo, explica que há, por ano, quatro colheitas da planta, o que rende, aproximadamente, 600 libras.
Com a libra a 20 bolivianos (a moeda do país), a produção de coca gera em torno de mil bolivianos por mês, um pouco menos que dois salários mínimos. “Isso não sustenta, temos que fazer durar até a próxima colheita. Não dá para viver. Nos sustentamos com outros cultivos: cítricos, banana, mandioca, arroz”, conta Claudio.
Mesmo assim, o cato de coca é objeto de um “controle social” por parte dos sindicatos cocaleros. “Nos comprometemos a respeitar para ajudar nosso governo a governar. Não queremos que a comunidade internacional o acuse no tema do narcotráfico”, esclarece Julio Salazar, secretário-geral da Federação do Trópico de Cochabamba.
Já María Eugenia Ledezma, secretária de atas da Federação de Mulheres do Trópico de Cochabamba, protesta contra a penalização da folha de coca. “Em seu estado natural, ela não é droga. Para que seja droga, põem químicos, e estes, onde fabricam? Nos EUA, e desde lá vêm. Os postos de controle que deixam esses químicos passar. E nos envolvem pelo fato de que produzimos a folha de coca”.
A trincheira cocalera na guerra de informação
Na parede da Radio Soberanía, em Chipiriri, pode-se ler: “A voz soberana do cocalero”. Provavelmente, sem esse instrumento, teria sido muito mais difícil para o movimento sindical do Trópico de Cochabamba avançar em sua organização.
Pois a rádio comunitária local serviu como uma das principais trincheiras da resistência cocalera às políticas de erradicação da folha de coca durante os governos neoliberais. Criada em 1996, o meio nasceu, segundo Ever Montoya, seu diretor, com a necessidade de expressar o pensamento, a idéia, as inquietudes e as aspirações das pessoas assentadas na região.
“Nenhum meio daqui queria sequer difundir sua música, seus costumes. Para as rádios da década de 1970 e 1980, os cidadãos que viviam na área não existiam. Ou seja, se vulneravam os direitos da liberdade da informação e de expressão”, explica.
Por isso, os sindicalistas da Federação do Trópico de Cochabamba começaram a considerar, já nos anos 1980, a possibilidade de se comprar meios de comunicação. “Era importante também para contestar as políticas de erradicação da coca, de sua substituição por produtos alternativos. Por meio de uma ação mediática, tinha-se a imagem que todo o Chapare era zona de atividade ilícita, de narcotráfico”.
Segundo Ever, na época da repressão estatal, a rádio servia como instrumento de convocatória massiva e imediata. Por isso, para ele, é uma das mais combativas que existem. “Defendeu os direitos humanos, a terra e o território de quem veio formar esses assentamentos”.
Hoje, a Radio Soberanía conta com o apoio financeiro das federações de cocaleros do Chapare. Antes de alcance mais limitado, agora chega a todas as comunidades da região. De acordo com Ever, a população local confia na rádio como “único instrumento para dizer sua verdade. Porque não existe outro meio de comunicação crível para eles”.
Igor Ojeda
de Chipiriri, Villa Tunari e Cochabamba (Bolívia)
Fonte: Brasil de Fato
http://www.brasildefato.com.br
https://www.alainet.org/fr/node/129435
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