Um dia sem imigrantes

01/05/2006
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Foi como uma coisa mágica. De repente, desde bem cedinho, as gentes latinas e de outras partes do mundo foram tomando as ruas de quase todas as grandes cidades dos Estados Unidos. Talvez, pela primeira vez, sem medo. Eram os homens e mulheres que, no cotidiano, vivem se escondendo como baratas – as cucarachas – nos buracos, nos pardieiros, nas vielas escuras, fugindo da polícia de imigração. São os que limpam as casas, recolhem o lixo, fazem hambúrgueres, desinfetam as latrinas, produzem os fios, arrumam carros, fazem segurança. São os não-seres, os invisíveis, os indesejados. Os sem-rosto ou nome. Latinos. Imigrantes. Gente de fala estranha. Desde há muitos anos eles vêm chegando na busca de oportunidades que não têm em seus países de origem. Paradoxalmente, países sangrados pelo monstro que hoje habitam. Então, despojados da vida digna por conta da ganância do Tio Sam e seus comparsas, eles cruzam muros, rios, desertos e se fincam nas terras do “patrão” e agora, ainda, pasmem... exigem direitos. O dia primeiro de maio, chamado pela mídia de dia do trabalho, não o é. Na verdade é para ser dia do trabalhador, uma celebração das lutas de homens e mulheres que precisam batalhar para garantir direitos, para ser menos explorados. Em quase todo mundo é um dia feriado. Não nos EUA. Lá, a terra do trabalho, não pode parar. Pois neste dia de 2006, os imigrantes decidiram que não iriam para seus postos. Queriam ver como o país se sai sem os latinos, indianos, coreanos, italianos, enfim...sem as gentes “de fora”. Pois quando raiou a manhã eles não chegaram nas lanchonetes, nas fábricas, nas empresas, em lugar nenhum. Los Angeles, Nova Iorque, Washington, grandes e pequenas cidades acordaram com as lojas fechadas, sem carros nas ruas. E lá pelo meio do dia as caras latinas e morenas foram aparecendo nas ruas. Em pouco tempo eram milhões, vestidos de branco e carregando suas bandeiras nacionais junto com a dos Estados Unidos. Em todo o país existem hoje mais de dois milhões de negócios comandados por hispânicos e esses negócios movimentos mais de 500 bilhões de dólares por ano. Não é pouca coisa. As perdas econômicas deste dia não trabalhado serão grandes e, na imprensa, é tudo sobre o que se ouve. Perdas econômicas. Chega a ser patética a cobertura dada pela grande máquina ideológica estadunidense para a América Latina, a CNN. Os comentaristas mostram as grandes marchas, com milhões de pessoas, mas na barra da tela aparece a manchete: grupos hispânicos fazem críticas às manifestações. E logo, vem a imagem de um pequeno grupo de bem vestidos, reunido em um hotel. Enquanto isso, nas ruas, a multidão toda conta de tudo com a música alegre, com a festa, com o riso e com a luta. Outro elemento absurdo são as entrevistas. O prefeito de Los Angeles, um hispânico, falando espanhol com sotaque, insiste, quase histérico, que vai manter a ordem a qualquer preço. E não há desordem. Pelo menos não na rua. Um professor da universidade de Nova Iorque, também hispânico, diz que não entende porque os seus “irmãos” são contra alei aprovada que garante legalidade aos imigrantes por tempo determinado. “Isso significa que mais gente vai poder vir pra cá. A pessoa vem, trabalha um tempo e depois volta. Isso é bom”. Mas ele mesmo é um imigrante e já tem o green-card, portanto, não precisa voltar. Que se danem os outros não é, professor? A lei aprovada pelos deputados permite que os imigrantes fiquem apenas por um tempo determinado. Fora isso, são criminalizados, assim como quem os emprega. Dessa foram, torna os chamados “indocumentados” ilegais e criminosos. Além disso, o país está iniciando a construção de mais um pedaço de 700 metros de muro na fronteira com o México. Ninguém mais vai poder entrar. Por outro lado, pesquisas mostram que os estadunidenses não querem nem saber de fazer o trabalho que os imigrantes fazem. A sociedade está dividida e as marchas gigantescas que acontecem desde março estão mostrando a verdadeira cara do monstro. Dentro dele vivem mais de 11 milhões de latinos que jogam todas as fichas na grande metrópole neo-colonial porque nos seus países não encontram formas de viver com dignidade. Essa gente toda que limpa a sujeira dos gringos quer ter direitos como qualquer cidadão estadunidense. Quer respeito. “Nenhum ser humano é ilegal”, dizem as camisetas e as vozes. Há uma tensão no país, isso ninguém nega. A mídia exultava, aliviada, ontem, ao dizer que tudo transcorreu dentro da ordem, como se fosse natural que uma caminhada de hispânicos acabasse em confusão. Mas a ordem é coisa fugaz, dúbia. Ordem para quem? A ordem para os estadunidenses que odeiam imigrantes é mantê-los “no seu lugar”, limpando as latrinas. Ordem para os latinos e outras gentes de fora é garantir direitos, vida digna, liberdade. Nesse choque de interesses as coisas ainda vão bem. Caminhadas pacíficas, gritos de protesto, declarações de amor aos EUA. Mas, essas coisas de reivindicar direitos são coisas estranhas. Quando eles não vêm, as gentes despertam e percebem que nada nessa vida é dado de mão-beijada pela classe dominante. Tudo tem de ser arrancado na luta renhida. Hoje as “cucarachas” saem às ruas e, nesse processo, na caminhada inversa do personagem de Kafka, se transfiguram em gente, real, com nome e sobrenome. Sabe lá deus o que isso poderá significar... Quem sabe, nas ruas, juntas, entendam que só estão ali porque lhe roubaram o direito de ser feliz em seu próprio chão. Talvez entendam quem foi, e talvez...quem sabe!... - Elaine Tavares – jornalista no OLA O OLA é um projeto de observação e análise das lutas populares na América Latina. www.ola.cse.ufsc.br
https://www.alainet.org/fr/node/115050
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