Rumo ao Quênia em 2007

03/03/2006
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Em 2006 o Fórum Social Mundial foi policêntrico: realizou-se em Bamako, no Mali, e em seguida em Caracas, na Venezuela. O terceiro previsto – adiado por motivo dos terremotos que ocorreram no Paquistão - terá lugar em Karachi no final de março. O quarto Fórum Social Europeu acontecerá na Grécia, em maio, e no segundo semestre será realizado um Fórum Social Asiático, na Tailândia. Quase ao mesmo tempo dos dois primeiros policêntricos, realizou-se no Marrocos uma assembléia constitutiva do Fórum Social Magrebino, previsto para 2007, pouco depois do próximo Fórum Social Mundial, que será novamente centralizado, desta vez em Nairobi, no Quênia.

Pode-se portanto dizer que o processo Fórum Social Mundial está em plena expansão. Mas mais do que ressaltar essa expansão, é preciso dizer que ela é portadora de algo novo: uma mudança qualitativa no tipo de unidade que vai sendo forjada entre os que querem construir o “outro mundo possível” - uma unidade que respeita a diversidade, e na  qual todos são protagonistas. Os Fóruns não resultam de decisões de uma cúpula internacional que os programe e monitore: eles são sempre de iniciativa e responsabilidade dos movimentos, entidades e organizações da sociedade civil do país ou da região em que se realizam, com o apoio de um Conselho Internacional do qual eles também participam. Os organizadores dos Fóruns – ou facilitadores, como os chamamos – estimulam, por sua vez, a auto-organização, pelos próprios participantes, das suas atividades nos Fóruns.

Assimila-se assim cada vez mais a forma de fazer política que está embutida na Carta de Princípios do FSM: a da ação horizontalizada, em rede, sem lutas internas por hegemonia, abrindo espaço para a irrupção da sociedade civil como novo ator político, autônomo em relação a partidos e governos.

Mas o momento após os policêntricos é de balanços e avaliações, essenciais para continuar a caminhada, considerando os avanços e retrocessos metodológicos ocorridos. Este texto levanta algumas das questões que poderão vir a ser discutidas, nesta perspectiva, na reunião do Conselho Internacional previsto para fins de março em Nairobi.

As cinco chagas do neoliberalismo

O objetivo do processo político lançado em 2001 pelo FSM continua o mesmo: tornar possível o encontro das “entidades e movimentos da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo, e estão empenhadas na construção de uma sociedade planetária orientada a uma relação fecunda entre os seres humanos e destes com a Terra”[1].

A reflexão e a ação ao longo dos Fóruns que vêm se realizando, desde então, vêm permitindo identificar melhor as grandes chagas que o neoliberalismo, a dominação do capital e o imperialismo abrem na face da terra. A mim me parece que elas seriam as seguintes:

- a guerra e a militarização dos conflitos;

- o terrorismo, como resposta desesperada ou estratégia equivocada de combate à dominação;

- a destruição progressiva e crescente do planeta Terra;

- a manutenção de parcelas crescentes da humanidade na miséria;

- a corrupção que deteriora o tecido social.

Elas têm uma gravidade diferente nas diversas partes da terra, assim como varia a importância dos mecanismos ou instrumentos que as perpetuam. Mas todas afetam todos os povos. Elas se alimentam umas das outras e se aprofundam, em decorrência da mesma lógica egoísta, competitiva e suicida que conduz o capitalismo.

Nas reuniões do Conselho Internacional do FSM muitas vezes ressurge a proposta de levar os Fóruns a focalizar somente uma dessas chagas – por exemplo, a da guerra. A preocupação é de eficácia, que seria maior com a concentração de esforços e a redução da extensão e variedade das lutas que podem ser discutidas - e transformadas em planos de ação – nos Fóruns.

Mas ela corresponde a uma forma de fazer política diferente da experimentada no FSM, como “espaço aberto de encontro para o aprofundamento da reflexão, o debate democrático de idéias, a formulação de propostas, a troca livre de experiências e a articulação para ações eficazes”[2], segundo as especificidades de cada luta e do tipo de atuação de cada protagonista.

Pode ser que a realização do próximo Fórum Mundial na África – numa nova realidade social, econômica e política – diminua a possibilidade de se propor essa focalização única. Mas a forma de fazer política que ela traduz é a mesma que está por detrás de quatro desafios que a continuidade e a expansão do processo FSM enfrenta, e que poderão ser tema de discussão no Conselho Internacional de março. Dois desses desafios vêm, por assim dizer, de fora do Fórum, e dois de dentro dele mesmo.  

Os desafios que vêm de fora dos Fóruns

Os dois desafios que vêm de fora resultam da ação de governos e de partidos. Dando continuidade à luta política na forma como ela sempre foi desenvolvida, eles têm dificuldade de entender e, conseqüentemente, de aceitar, o que o FSM pretende. Esta dificuldade aparece claramente na maneira como muitas vezes partidos e governos – e, com eles, organizações internacionais inter-governamentais - buscam se associar aos Fóruns. A Carta de Princípios do FSM estabelece que eles não podem organizar atividades nos Fóruns, embora possam participar como convidados dos participantes, em atividades que estes organizem (dentro da orientação de Fórum auto-organizado).

Aos governos que dialogam com o processo do FSM – porque se situam no mesmo campo de luta contra o neoliberalismo - os organizadores dos Fóruns pedem algo ainda mais difícil: que ajudem sem interferir. Nem todos os governos se dispõem a isso. E é difícil resistir à tentação de se promover, no evento. A dificuldade de respeitar a autonomia da sociedade civil é uma decorrência natural da cultura política que prevaleceu durante todo o século passado.

Essa dificuldade é vivida também pelos partidos, que até agora tinham a hegemonia da atuação política, com a tomada dos governos como objetivo de atuação. Para seus dirigentes não tem sentido atuar fora deles e pretender fazer coisas sem tomar o poder. Essa dificuldade cresce na medida em que a hegemonia dos partidos é ameaçada pela sociedade civil como novo ator político que emerge.

Porque não dar aos governos e partidos o lugar central que sempre tiveram e, no processo do FSM, apoiá-los em sua ação? O risco será o de esboroar todo o sentido dos Fóruns. Governos e partidos têm, evidentemente, um papel muitas vezes decisivo para realizar as mudanças que a construção de “outro mundo” exige. Mas porque não permitir que a sociedade civil reforce as frentes de luta, e o faça de forma autônoma?

Não se trata de incluir nessas frentes os Fóruns enquanto tais. Em si mesmos eles não são atores políticos – não podendo portanto pretender passar a ser o novo “sujeito histórico” que os especialistas em política procuram encontrar. Ele é somente um espaço. Mas é um espaço da sociedade civil, para que os diferentes setores dessa sociedade possam intercambiar reflexões e experiências e encontrar caminhos para ações políticas eficazes, inclusive para pressionar e constranger governos e partidos, assim como para contribuir para as mudanças fazendo o que esteja ao seu alcance, sem deles depender. De fato a sociedade civil não dispunha até agora de um instrumento desse tipo para articular-se autonomamente.

É bem verdade que na própria organização do Fórum Social Mundial, em seus inícios, pairaram certas ambigüidades nestas questões. Até hoje há participantes que se apóiam nessas ambigüidades para reforçar seus argumentos em favor da participação e presença direta, nos Fóruns, de governos e partidos enquanto tais. Elas decorreram do fato da maioria dos organizadores dos primeiros FSM ser filiada ao PT, e ele se realizar numa cidade - Porto Alegre - em que eram desse partido os governos estadual e municipal. As dúvidas cresceram com a presença de Lula, recém-eleito Presidente da República, num grande ato público no Fórum de 2003.

Já se escreveu muito para explicar o que de fato ocorria e a própria presença de Lula em 2003. Mas só a prática e o tempo convencerão as pessoas que nem o Partido enquanto tal, nem os governos comandavam a organização dos Fóruns ou nela interferiam. Até porque eles não perdiam as oportunidades que surgiam para se tornarem visíveis. Para complicar esse quadro, o FSM de 2005 foi praticamente iniciado com Lula, Presidente do Brasil, e terminado com Chavez, Presidente da Venezuela. Mas de fato tais atos foram organizados por participantes, que usaram a liberdade de que dispõem para auto-gerir suas atividades nos Fóruns...

Em 2006 (nos dois policêntricos já realizados), já parecia menor o risco de seqüestro por partidos. Mas muitos apontavam para o risco de interferência do governo no caso da Venezuela. Seu Presidente é uma forte presença naquele país, e dispõe de muitos recursos que ajudam mas criam também dependências. Mas segundo os testemunhos ouvidos os organizadores do Fórum conseguiram manter a autonomia das atividades no evento. De fato o que nele ocorreu foi de novo o que faz a riqueza dos Fóruns: o interesse maior dos participantes estava na troca livre de experiências e no desenvolvimento de novas articulações entre os movimentos e entidades da sociedade civil.

A presença maior de Chavez, pessoalmente, e dos recursos que disponibilizou – até para o Fórum de Bamako - foi no entanto bastante explorada pelos meios de comunicação que buscam desvirtuar a imagem do FSM. Tendo sido no entanto menos explorada uma presença também forte: a do governo brasileiro e suas empresas estatais. Ambas decorrentes da auto-organização das atividades pelos participantes do Fórum. O que nos leva a refletir sobre os dois desafios que vêm de dentro do Fórum.

Os desafios que vêm de dentro do Fórum

Estes desafios são em verdade os mais fortes. Vindo de dentro do FSM, têm um poder maior de minar resistências. Ambos se originam na mesma perspectiva que procura “focalizar” os Fóruns, referida no inicio deste texto, e na dificuldade de aceitar as inovações neles propostas quanto à forma de fazer política, referida quando se tratou dos desafios que vêm de fora do Fórum.

Trata-se agora da aceitação de inovações na própria prática dos que se engajam na luta contra o neoliberalismo. No Conselho Internacional do FSM ou nos diferentes Coletivos Organizadores vivemos recorrentemente essa dificuldade, como ocorre com toda mudança cultural.

Ela é devida ao enorme peso da concepção segundo a qual toda luta política precisa contar com direções ou vanguardas que mobilizem os militantes e os dirijam na ação. Combinada com o autoritarismo que o capitalismo desenvolve e que marca muitas posturas até na esquerda, ela leva a que se lute pela hegemonia na condução da ação concreta. O que se traduz numa competição permanente pelo poder entre as forças que se opõem ao capitalismo dominante, fazendo prevalecer a lógica da disputa sobre a da escuta e abrindo espaço para todos os tipos de manobras e golpes anti-democráticos para ganhar posições.

O primeiro desses desafios surge pela ação dos que vêm sendo chamados de “intelectuais”, convidados para conferências e debates; o segundo decorre da ação da assim chamada Assembléia dos Movimentos Sociais, que divulga, ao final dos Fóruns, apelos para a mobilização na luta contra o neoliberalismo, e às vezes promove manifestações que tornem mais visível sua presença e sua força.

O risco decorrente tanto do primeiro como do segundo desafios é o da divisão e re-divisão que já faz parte da história das esquerdas – como resultado da estratégia mais do que conhecida, dos dominantes, de dividir para dominar. Se a unidade é condição para se construir uma força política realmente capaz de enfrentar o capitalismo, e é urgente construí-la, a tentação é a de tentar chegar a ela não pela convicção militante – mais demorada - mas por comandos unificados capazes de impor a disciplina e a obediência – supostamente mais eficazes.

A experiência mostra que esse segundo caminho não é eficaz, assim como é contrário à construção do “outro mundo possível” – que deverá ser necessariamente marcado pelo respeito à diversidade e ao ritmo de cada um, ou não será “outro” mundo. Se a unidade é no entanto mantida – o processo do FSM já entra em seu oitavo ano – isto se deve provavelmente à adoção, desde o inicio, entre os organizadores dos Fóruns, da regra da decisão por consenso. Também mais demorada, ela leva a que as decisões sejam assumidas pelos que delas participam, em nome da unidade a preservar.

Os “intelectuais” em Bamako

No Fórum de Bamako se tentou fazer algo parecido com o “Manifesto” lançado em Porto Alegre em 2005 por 19 personalidades, buscando unificar todas a propostas e lutas que emergem nos Fóruns em torno de alguns temas principais. Desta vez, o esforço se situou na perspectiva de relançar a coalizão dos países “não alinhados” da Conferência de Bandung de 1955, agora que se comemora seu qüinquagésimo aniversário. Um seminário internacional, no dia anterior ao do inicio do Fórum de Bamako, contando com figuras de alto porte no mundo intelectual e na luta anti-imperialista, buscou ser apresentado como ato de abertura do Fórum – como uma orientação prévia às discussões que nele se fizessem.

O bom senso dos convidados levou a que não se constituísse em ato de abertura, não chegando portanto a ser considerado como diretivo pelos participantes do Fórum, movidos mais fortemente pela sua proposta horizontalizante. Mas um “apelo” final do Seminário, redigido após o mesmo, foi levado a Caracas, eventualmente na perspectiva de então ganhar a importância que não teve em Bamako. E está agora buscando mais subscritores nos meios da resistência ao imperialismo. O que está permitindo, diga-se de passagem, uma boa discussão, via Internet, sobre seu conteúdo.

Sabemos que a Conferência de Bandung, na luta pela independência econômica e política dos paises do Terceiro Mundo, foi uma conferência de Chefes de Estado e não de povos – ainda que os primeiros possam se apresentar como seus representantes. Sua proposta supõe portanto que tudo depende dos governos, e que a ação efetivamente transformadora passa pela tomada do poder político. Ora, esta questão é bastante discutida no processo do FSM, espaço para a articulação dos povos a partir de suas organizações. Neste aspecto a iniciativa tomada em Bamako se soma a um dos desafios que vêm de fora do Fórum, isto é, a busca de uma maior presença dos governos nas ações. E Caracas oferecia uma oportunidade impar para ganhar um aliado vigoroso: o Presidente Chavez, notório combatente da causa anti-imperialista, apresentado por alguns como “o líder de que estávamos precisando”.

Os “intelectuais” dispõem de recursos para apresentar suas análises mas todos sabemos que não dispõem de toda a verdade. Por isso mesmo o Fórum Social Mundial abre um espaço especial para tornar visível o que nasce da base da sociedade. Mas como, segundo sua Carta de Princípios, todas as atividades nele desenvolvidas têm a mesma importância e prioridade, nem sempre é fácil esperar que as propostas se afirmem porque convencem e não porque são apresentadas por algum tipo de autoridade.

A preocupação de construir consensos unindo a todos se defronta por outro lado com um dos princípios fundamentais da Carta do Fórum: o de não ter um documento final único – como exigiria a existência de dirigentes - mas sim o máximo possível de “documentos finais”, diversificados quanto aos seus objetivos e níveis de atuação dos que os propõem.

A Assembléia dos Movimentos Sociais em Caracas

Na verdade a dificuldade em aceitar que não se tenha um “documento final’’único é também a da Assembléia dos Movimentos Sociais, que colocam ao Fórum o segundo dos desafios que vêem de dentro. E ela procura responder a essa dificuldade propondo que “seu” documento final seja assumido como o do Fórum como um todo. Para isso ela quase sempre programa sua reunião conclusiva no dia seguinte ao do término dos Fóruns, como se pudesse assim colher e sistematizar tudo de importante que se discutiu e se propôs nos mesmos.

Com a ajuda de jornalistas desavisados ou mal intencionados, esta sua mensagem acaba passando. Como ocorreu em Mumbai, na Índia, e agora no Fórum de Caracas: a TV Globo apresentou, para todo o Brasil, como se fosse seu ato de encerramento, “uma prestação de contas do Fórum ao Presidente Chavez”, em reunião da Assembléia depois de terminado o Fórum, com um número limitado de convidados, e que era de sua iniciativa e não dos organizadores de Caracas. Por certo essa interpretação da Globo foi facilitada pelo fato de Chavez falar, nessa reunião, à frente de uma grande faixa com a marca do Fórum Social Mundial. Na verdade esses são os pequenos detalhes que contaminam as intenções...

Diferentemente do desafio colocado pelos intelectuais que se colocam como dirigentes e orientadores dos Fóruns, o decorrente da ação da Assembléia dos Movimentos Sociais vem de baixo, alternativa que o Fórum busca reforçar. Nisto ela corresponde a um dos melhores resultados que o Fórum vem propiciando, uma vez que articula um número crescente de organizações da sociedade civil. Dentro dos objetivos do Fórum, o ideal é que muitas articulações como essa nasçam e cresçam com ele. E isto vem ocorrendo, de fato. O problema da Assembléia dos Movimentos Sociais é pretender hegemonizar os Fóruns, para tornar-se a principal das articulações neles nascidas. É como se ela buscasse seqüestrar os Fóruns para a realização dos objetivos dos movimentos que a compõem.

Esse desafio é o maior dos quatro aqui indicados. Ele surgiu ainda no Fórum de 2001, onde pela primeira vez os organizadores da Assembléia quiseram passar seu “Apelo” final como sendo de todos os participantes do evento, apoiando-se para isso no próprio site oficial do Fórum[3]. Ele associa a valorização da ação da base da sociedade – que é uma opção do Fórum - com o sentimento da urgência das mobilizações. Mas em vez de se integrar naturalmente ao processo em curso, ela se mantém no tipo de ação política competitiva que se considera necessário mudar para construir a necessária unidade.

Como evitar que o efeito final da atuação da Assembléia seja fatal para o Fórum, ao transformá-lo num movimento com ação e direção únicas, afastando todos que não aceitem essa ação e direção? Superar esse desafio exigiria um diálogo aberto e franco entre os que advogam estas ou aquelas posições. Se o fizermos teremos conseguido dar um passo decisivo rumo à nova cultura política necessária para a construção do “outro mundo possível”. Quem sabe a preparação do Fórum de Quênia nos oferecerá essa ocasião.

- Chico Whitaker,representante da Comissão Brasileira Justiça e Paz na organização dos Fóruns Sociais Mundiais


[1] Da Carta de Princípios do FSM

[2] Da Carta de Princípios do FSM

[3] Para maiores detalhes sobre esse fato e outras questões tratadas neste artigo, ver, do seu autor,  “O Desafio do Fórum Social Mundial – um modo de ver”, publicado em português pelas Edições Perseu Abramo e Loyola, e em espanhol pela Editorial Icaria, de Barcelona.

https://www.alainet.org/fr/node/114473
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