Mensagem em vídeo
15/10/2004
- Opinión
O segundo aniversário da revista Rebeldia foi celebrado num auditório
lotado e numa mesa de reflexão da qual participaram Pablo González
Casanova, Adolfo Gilly, Javier Elorriaga, Adriana López Monjardín e Sergio
Rodríguez Lazcano. Ao término do ato, o Sistema Zapatista de Televisão
Intergaláctica transmitiu um vídeo no qual o Subcomandante Insurgente
Marcos leu o texto que segue:
O bolso furado
(As Altas Finanças segundo os zapatistas)
A revista Rebeldia é aniversariante e me pediu um texto para o seu
aniversário. Eu respondi que já não faço textos, agora estou produzindo
vídeos para o Sistema Zapatista de Televisão Intergaláctica (SZTI), "a
única televisão que se lê".
Teimosos que são (por isso mantêm a publicação há dois anos), os da
Rebeldia responderam dizendo que possuem a tecnologia necessária para se
conectar com o SZTI e que para isso basta saber que programa está sendo
transmitido na hora de sua mesa redonda (que, com certeza, é quadrada)
para que um número indeterminado de girafas, desculpem, de espectadores,
se ajeitem diante da tela (ou seja, da cartolina) da televisão
zapatista.
Sendo assim, nosso seleto público (pelo número, claro) poderá agora se
deliciar com o nosso número de finanças zapatudas que, como qualquer
economista pós-moderno sabe, tem os seguintes eixos fundamentais: o
pagamento, o crédito, as contas e um saldo.
Por isso, tirem suas calculadoras, seus ábacos e suas tabuadas, porque na
cartolina, ou seja, na tela, já aparece...
I. O pagamento
Ignoro se Eva ainda guarda o vídeo Escola de vagabundos e se ainda suspira
quando Pedro Infante canta ao ouvido de Miroslava. Eva já tem 15 anos e,
como dizemos por aqui, está solteirinha. Isso quer dizer que ao piscar de
seus olhos todos os ventos jovens que rondam a sua casa (coisa que,
diga-se de passagem, não desperta nenhum entusiasmo no pai dela) se sentem
convocados.
Já faz quase dez anos, quando Eva completava 4 e entrava no 5 (ou seja
tinha 6 anos), que ela colocou num lenço as poucas coisas que tinha e foi
para o exílio com o seu povoado. No dia 10 de fevereiro de 1995, pela
traição de Ernesto Zedillo (este que, junto com Deus, está no altar da
"mudança" foxista), helicópteros artilhados, tanques de guerra e tropas de
elite do Exército federal mexicano tomaram o seu povoado, Guadalupe
Tepeyac, e, violando o direito internacional, irromperam na sede do Comitê
Internacional da Cruz Vermelha (CICV), onde os moradores tojolabales
haviam se refugiado.
O CICV, como, em seguida, iria comprovar no acampamento de refugiados de
Polhó, em Los Altos de Chiapas, tem vocação por uma boa mesa e pelas
adulações do governo, e não pelo trabalho humanitário, e, por isso, ficou
calado. O neoconvertido à democracia Gustavo Iruegas (que, durante uma
bebedeira com Bernal e Del Valle, deu sua memorável receita de "diálogo":
"é necessário acabar com as comunidades zapatistas; sem elas, o EZLN não
vale nada"), então arquiteto da política de Zedillo contra o EZLN,
consolou a delegação da Cruz Vermelha Internacional com um grande banquete
num restaurante de luxo na Cidade do México.
Enquanto os "próceres" do humanismo e da neutralidade do CICV jantavam com
o assassino desmemoriado, os moradores de Guadalupe Tepeyac subiam a
montanha e iniciavam o que seriam sete anos de exílio, os mesmos que não
iriam terminar até que a mobilização das "sociedades" civis nacionais e
internacionais, no contexto na Marcha da Cor da Terra, obrigou o governo
Fox a tirar o Exército destas terras, possibilitando assim o retorno dos
autodenominados "tepeyaqueiros".
Mas deixemos o discípulo predileto de George Castañeda tentar enganar os
bobos com jantares e escritos com posições supostamente democráticas, e
permitamos que a Cruz Vermelha Internacional acumule situações ridículas e
de falta de prestígio em todo o planeta. Deixemos que o carnaval de cima
continue com a troca de máscaras e com a venda de dignidades.
Deixemos isso e vamos com Eva. Agora Eva tem15 anos e sérios problemas
econômicos diante de si. Dez anos atrás Eva não ia à escola e não tinha
outros problemas a não ser lavar roupas e carregar lenha.
Agora ela está na escola e seus problemas não só aumentaram, como também
se complicaram. Contudo, eles nada têm a ver com soma, subtração,
multiplicação e divisão. Ou melhor, sim, mas não na sala de aula.
Acontece que Eva não tinha dinheiro para comprar lápis e caderno. Alguém
se ofereceu para lhe dar um de presente, mas Eva retrucou com um: "Por
acaso estou pedindo que me dêem o que não tenho".
Naquele momento, ninguém entendeu Eva. E tampouco quando a viram se
ocupando, atarefada, da criação de coelhos. Muito menos quando conseguiu
vender dois coelhos e receber alguma coisa em pagamento. A surpresa veio
quando, no lugar de comprar uma tiara ou um portatrecos, Eva mandou
comprar um caderno novinho que tem muitas folhas: umas em branco, outras
com linhas e outras ainda quadriculadas. Na capa do caderno está desenhada
uma girafa rosa carregando alguns livros e Eva, que também mandou comprar
um lápis e um jogo de canetas, pintou um passamontanhas azul na girafa.
"Por acaso os zapatistas usam passamontanhas azul", lhe diz Heriberto (seu
irmãozinho, que agora tem 13 anos) quando Eva lhe mostra o seu caderno.
Eva volta a olhar a girafa e retruca: "Por acaso lhe perguntei alguma
coisa, se fui eu a conseguir o dinheiro para o meu caderno eu coloco o
passamontanhas da cor que eu quiser".
Heriberto (que durante alguns anos conseguiu fugir da escola argumentando
que ele não teria o que fazer caso o professor lhe fizesse perguntas,
porque ele não sabia nada), está enojado, mas não com a Eva. Bom, não só
com Eva, mas sim com o mundo inteiro. Está enojado porque não lhe dão um
cavalo, apesar de já ter demonstrado que, subindo numa pedra, ele consegue
alcançar o estribo com o pé. Heriberto fica desesperado, mas aprende, e
não exatamente na escola.
Depois da resposta da Eva, Heriberto vai e se planta diante do pai dele e
diz: "Por acaso estou pedindo que me dêem o que não tenho. Vou juntar o
dinheiro, vou comprar o meu cavalo e vou pintá-lo de azul", e se vira para
olhar para a Eva, como que pedindo o seu apoio.
Eva continua fazendo a tabuada do 7 e, sem sequer se virar em sua direção,
lhe diz: "Por acaso existem cavalos azuis".
"Existem", diz Heriberto.
"Não existem", diz Eva.
"Existem", diz Heriberto.
"Não vou te dar o doce", diz Eva.
"Não existem", diz Heriberto, que compreende que deve ser flexível e que,
afinal, ainda não tem o dinheiro e que ele gosta de cavalos pretos porque,
diz que o Sup lhe disse, "os cavalos azuis são para as meninas".
Não acreditem no Heriberto, ele está mentindo. Eu não disse que os cavalos
azuis são para as meninas. Pensei-o, mas não disse.
II. O crédito.
Nas conquistas territoriais dos séculos passados, os poderosos procuraram
sempre a desculpa da civilização. A espoliação das riquezas nacionais
passou a se chamar então de "nascimento de novas civilizações", e a fraude
humana que isso significou não se refere só ao fato de que nunca puderam
demonstrar que o construído é melhor do que o destruído. Também, e
sobretudo, que a "domesticação" fracassou.
Vez por outra, na história que é escrita lá em cima, a "pacificação"
depois de uma guerra de conquista nada mais era a não ser uma definição do
novo status dos contrários: uns ganharam, outros perderam. Ou seja, uns
domesticaram outros. Ou, em termos mais apropriados: uns passaram a mandar
e outros a obedecer.
Nos grandes passos que a humanidade deu desde então, para a historiografia
do Poder as coisas não mudaram muito: continua havendo guerras, continua
havendo vencedores e vencidos, as domesticações continuam, e continua
acontecendo que uns mandam e outros obedecem.
Uma das muitas conseqüências desta maneira de entender a história é que
define os acontecimentos como resultados definitivos de triunfo e derrota.
Na história de cima não há gradação do sucesso obtido: se vence ou se é
vencido.
E na distribuição de graças e desgraças, o Poder é tão magnânimo quanto o
permite o pincel dos que enfeitam o rosto do de cima e do de baixo.
Assim, o consolo para o derrotado não é a revanche, mas sim a beleza.
Desta forma, se constrói a estética do derrotado: "Perdemos sim, mas
éramos tão bonitos".
Contudo, a derrota não tem nenhuma beleza. A aparente formosura da saudade
que a adorna não foi construída a partir de baixo. É só uma má pintura
para que nós, os derrotados de sempre, continuemos sempre derrotados,
apaixonados pela queda e convencidos de que a vitória não nos pertence
porque sua feiúra só pertence ao poderoso.
O que o poder quer é, pura e simplesmente, que voltemos a lutar, sim, mas
sem outro objetivo a não ser o de acumular estas belezas que nada mais são
a não ser a triste moeda da derrota. Agora, temos os armazéns cheios dela,
e só a podemos comercializar com outros como nós, de baixo.
Em suma, nas finanças da falta de memória, quem ganha cobra a conta, quem
perde paga a crédito e a longo prazo. O sistema bancário do Poder só
oferece aos de baixo crédito para a derrota. Quanto mais aumenta a conta
de nossas quedas, mais imponente serão as boas-vindas que vamos receber no
sistema bancário da falta de esperança.
Contudo, há alguma coisa que fica fora de lugar. Como peças de
quebra-cabeças num tabuleiro errado, a resistência à domesticação e a
rebeldia contra a corrente de comando/obediência rompem com a lógica de
uma obediência imposta e se negam a comprar o bonito pôster tridimensional
do anjo caído.
Quando o Poder escreve a palavra "FIM", a resistência acrescenta o ponto
de interrogação que não só questiona o fim da história, mas que, também,
se nega a aceitar um amanhã que só a inclui como derrotada. Desta forma,
apostando em transformar o futuro, a resistência aposta em mudar o
passado. A resistência é assim o duplo vaivém do olhar, o que nega e o que
afirma. O que nega o fim da história e o que afirma a possibilidade de
refazê-la.
III. As contas
Não é simples tornar realidade as contas em La Realidad. Sentado perto de
mim, Andrés está "me ensinando" a contar. Segurando a respiração, Andrés
começa pelo um e passa sem dificuldade até o 77. Ao chegar aí acelera e,
já arroxeado, termina com um "97, 98, 99 e sinto que não agüento mais".
Andrés fica me olhando. Eu entendo que tenho que lhe dar os parabéns (e,
obviamente, não lhe devo fazer notar que omitiu os números do 37 ao 66), e
por isso aplaudo discretamente.
Andrés vive em La Realidad e tem 7 anos e está entrando no 8. Nasceu no
mesmo dia em que foram assinados os Acordos de San Andrés, nos quais o
governo federal se comprometia a reconhecer, na Constituição, os direitos
e a cultura dos povos indígenas do México.
Agora, estamos sentados com Andrés à beira do riacho onde se banham os
cavalos. Chegamos aí correndo, depois de assaltar a vendinha La Nana, no
caracol de La Realidad. Agora podemos descansar, porque ainda vai demorar
para que encontrem Moy e lhe digam que "veio o Sup com umas crianças e
levaram os Totis, as bolachas Marias, os chicletes e os refrescos, e
disseram que vão pagar quando ganharmos a guerra", o que não passa de uma
mentira, já que não havia refrescos.
Achando que me comoveu com sua "conta" até o cem, Andrés me confessa que
tem o bolso da calça furado e que perdeu todo o seu botim. Faço de conta
que não vi que ele o escondeu atrás de um arbusto e o convido para
partilhar os meus Totis.
Com a boca cheia de frituras e com um tom amanteigado, Andrés me diz que
ele, quando crescer, vai ser contador. Eu entendo que Andrés não quer
dizer o que quer dizer, e lhe pergunto o que é que ele vai contar.
"Estrelas", me diz, como se dissesse "vacas".
"Mmmh, mas estas são muitas", lhe digo tratando de orientá-lo para uma
profissão mais lucrativa.
Ele diz: "Não importa, vou ficar aqui até tarde".
Ia lhe pedir para que me desse um autógrafo quando chegam Olivio e Marcelo
para me convidar a caçar "galininhas d'água". Pergunto a eles se não têm
medo. Eles ficam indignados.
"Já somos grandes", me dizem-informam-advertem.
"Então, quantos anos vocês têm?", pergunto.
"As mãos já não bastam para fazer a conta", me dizem, assim que devo
deduzir que têm 11 anos. Vendo um pacote de bolachas Marias, Olivio me
diz: "Olá Zup, os promotores de saúde já estão no caracol".
"Sim", diz Marcelo, "...e têm muitas injeções!".
Dei-lhes as bolachas Marias. Mesmo porque eu gosto mesmo é das Pancrema.
Olivio e Marcelo prometeram vir me avisar quando os promotores forem
embora, por isso continuo escondido na copa da árvore enquanto Andrés está
de guarda.
Mesmo que esteja escuro, ele continua aí. Ouço claramente que conta: "35,
36, 57, 58, 59...".
De repente pára e na copa da árvore chega uma pergunta: " Olá Zup, as
estrelas que andam contam ou não contam?".
IV. Uma saudação.
(In) definição financeira da rebeldia: "Uma quantidade indefinida de
girafas que, de pé, sonham que em sua conta aparecem estrelas feias e não
as bonitas derrotadas. Não são sujeitas de crédito e, sobretudo, não se
vendem e nem se compram. De render-se, melhor nem falar".
Das montanhas do Sudeste Mexicano
Subcomandante Insurgente Marcos
México, novembro de 2004, 20 e 10.
P. S. Termina aqui o nosso programa de finanças globalizadas. Continue
sintonizando o Sistema Zapatista de Televisão Intergaláctica, "a única
televisão que se lê".
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Texto divulgado no La Jornada de 17/11/2004.
https://www.alainet.org/fr/active/7383
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