As três fontes da vida
21/10/2004
- Opinión
Há três coisas inerentes a nós, seres humanos: nutrição,
sexualidade e espiritualidade. São as fontes de nossa
existência. Pela nutrição, desenvolvemos e asseguramos a saúde;
pela sexualidade, preservamos e multiplicamos a espécie; pela
espiritualidade, transcendemos a nós mesmos, relacionando-nos
com a natureza, o próximo e Deus.
Sem ingerir alimentos ninguém vive. De nossos cinco sentidos, o
paladar é o primeiro a ser ativado. Ainda na fase intra-uterina
sugamos os nutrientes maternos. Por isso, este é o mais
arraigado dos sentidos. Ao mudar de país, modificamos hábitos,
adotamos outro idioma etc., mas jamais trocamos de paladar. Como
a linguagem, ele é fator primordial de identificação. Na
Austrália ou no Alasca, um brasileiro experimenta indizível
prazer ao comer arroz com feijão ou manga e abacaxi.
A comensalidade é o mais humano de nossos atos. Nenhum outro
animal cuida de preparar os alimentos e, em seguida, sentar em
torno da mesa, acompanhado de seus semelhantes. Só nós, humanos,
fazemos do preparo dos alimentos uma arte a culinária. E um
ritual estar à mesa e obedecer a determinadas rubricas:
talheres, guardanapo, pratos, travessas... E nada pior do que
comer sozinho. Comer é comungar, partilhar. É uma ação
ressurrecional. A carne que nos alimenta é um animal que morreu
para nos dar vida, assim como a salada, um vegetal, ou o arroz e
feijão, cereais... A vida é sempre reciclável. E em torno da
mesa eu dou ao outro algo de mim mesmo. Ele se "alimenta" do meu
ser, assim como eu do dele.
A sexualidade pode ser sublimada, reprimida, mas nunca ignorada.
É o reflexo da idade que a vida tem: cerca de 3,5 bilhões de
anos. É ela que assegura a cadeia geracional que veio se
aperfeiçoando desde os trilobitas até o ser humano. É a mais
significativa manifestação de que a vida é um fenômeno
intrinsecamente comunitário.
A libido, como ensinou Freud, pode ser canalizada, mas não
descartada. Nem Jesus deixou de ter pulsão sexual. A questão é
saber em que nível se manifesta a nossa sexualidade, como porno,
eros, filia ou ágape. Como porno (donde pornografia) o meu
prazer é a sua degradação; como eros (donde erotismo) o meu
prazer é também o seu; como filia (donde filia + sofia = amizade
à sabedoria, filosofia), o prazer reside na amizade, na
cumplicidade; como ágape, nossos prazeres culminam na
felicidade, na comunhão espiritual entre dois seres que se amam.
Graças à ciência moderna, a sexualidade não está mais atrelada à
procriação, o que permite que exista como sacramento amoroso, de
interação física da comunhão espiritual. O inverso, porém, é
perverso: a sexualidade como mero prazer físico, imediato, sem
mediação da subjetividade.
Espiritualidade é a janela de nossa vocação à transcendência.
Podemos canalizá-la para o consumismo, o mercado, o poder,
escolhendo o dinheiro no lugar de Deus (Mateus 6, 24), mas ela
está sempre presente, pois é o que imprime sentido à nossa
subjetividade e, portanto, à existência. Portanto, ela precede a
experiência religiosa, assim como o amor antecipa e fundamenta a
instituição familiar. É bom lembrar: Deus não tem religião.
É a vida espiritual que nos induz à comunhão com Deus,
reativando a nossa potencialidade amorosa. O caminho mais curto
não é ser amoroso com o próximo para, em seguida, amar a Deus.
Ao contrário, invadidos pelo amor de Deus transbordamos amor na
direção do próximo.
A comunhão com Deus tem duas vias. A mais em voga é a que
imagina que Deus é alcançável pela escalada de nossas virtudes
morais. Quanto mais puros e santos, mais próximos estamos de
Deus. A via evangélica adota a direção contrária. Deus é amor e
é irremediavelmente apaixonado por cada um de nós. Nenhum pecado
faz com que ele se afaste de nós e deixe de nos amar. Portanto,
basta-nos abrir o coração ao amor divino.
É como a relação de um casal: o homem sente-se tão amado e ama
tanto a sua mulher que não consegue deixar de ser fiel. Assim é
a relação com Deus. Em respeito à nossa liberdade, ele espera
apenas que decidamos nos abrir mais ou menos ao seu amor, que é
terno. E o método mais fácil a essa abertura é a oração, em
especial a meditação, que nos permite descobrir Deus no âmago de
nosso ser, e o serviço aos mais pobres, sacramentos vivos da
presença de Cristo.
* Frei Betto é escritor, autor de "Gosto de Uva" (Garamond),
entre outros livros.
https://www.alainet.org/fr/node/110744
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