Os transgênicos e a soberania alimentar de nosso povo
30/09/2004
- Opinión
Durante a campanha eleitoral de 2002, o PT elaborou o documento
"Vida Digna no Campo", programa em que afirmava os compromissos
históricos do partido para o meio rural.
No capítulo sobre transgênicos está consignado o compromisso do
Partido com o principio da "precaução", pelo qual, os organismos
modificados geneticamente – transgênicos -,somente seriam
liberados comercialmente, se as amplas pesquisas comprovassem
que não haveria prejuízo para o meio ambiente, para a saúde dos
consumidores e para os agricultores. O documento está assinado
pelo médico e coordenador do programa de governo, Antonio
Palloci.
Nesses quase dois anos de governo, o Presidente Lula já assinou
duas Medidas Provisórias liberando o plantio e a comercialização
da soja transgênica no país, sem que pesquisas idôneas fossem
realizadas e pudessem atestar a inocuidade de tais OGMs.
Tampouco a Monsanto, principal interessada e que detém a patente
mundial da soja transgênica Round -up, apresentou qualquer
resultado de pesquisa realizada em solo brasileiro sobre impacto
ambiental e/ou influencias na saúde humana, apesar de haver uma
ação, tramitando na Justiça Federal há mais de seis anos, para
impedir o cultivo da soja transgênica. Tempo suficiente para
apresentar provas necessárias, se elas existissem, para a
liberação do produto. Por que não o fizeram, não se sabe.
O governo federal se viu obrigado a editar as tais MPs liberando
o plantio da soja transgênica em função das alianças eleitorais
e políticas com o PMDB gaúcho. Por conta desses acertos optou
por liberar o consumo de soja transgênica no Brasil, a despeito
de desconhecer suas conseqüências imediatas e futuras.
Poderia, na malandragem, passar o problema adiante e liberar
apenas para exportação. Mas, no meio do caminho há uma pedra.
Ou melhor, a nefasta Lei Kandir que assegura a isenção de
impostos estaduais, como subsídio e incentivo às exportações.
Ora, como quase a totalidade da soja gaúcha é transgênica, ao
ser exportada ficaria isenta do ICMS e, nesse caso, o governo
gaúcho iria a falência, pois não arrecadaria nada.
Então, entre mudar a lei Kandir, que beneficia apenas os
exportadores, ou levar à bancarrota o governo do PMDB, governo
preferiu editar a MP e deixar o povo pagar essa fatura.
A Monsanto aplaudiu a decisão. E tinha mesmo de comemorar, pois
a Medida Provisória reconhecia a existência da soja
transgênica, até então negada, e com isso dava a legitimidade
que a Monsanto precisava para poder então cobrar royalties dos
agricultores gaúchos. Dinheiro fácil, sem plantar um grão
sequer.
E, mesmo sem vender um grão sequer de sementes, recolheu na
ultima safra 80 milhões de reais, com um pequeno escritório de
advogados no centro de Porto Alegre. E assim salvou a matriz
estadunidense do vermelho, e suas ações voltaram a subir.
Mais tarde, diante de todas as manifestações contrárias à
liberação do plantio e questionadoras daquela decisão, o governo
federal tentou se redimir, editando uma lei pela qual,
estabelecia que todos os produtos comercializados que contivesse
componentes transgênicos deveriam fazer constar no rótulo, para
que as pessoas tivessem o direito de saber e optar se queriam ou
não consumir tais produtos. Aliás, esse é um direito já
garantido pelo código do consumidor.
Nesse processo de tentativa de rotulagem, instituiu um símbolo,
representado por um triangulo amarelo, que deveria constar em
todo produto que contivesse mais de 1% de organismo
transgênico. A lei está em vigor há mais de um ano. Foram
comercializadas no país, segundo o ministro da Agricultura, mais
de 5 milhões de toneladas de soja transgênica. Toda ela,
consumida pelo povo brasileiro, inserida em produtos
alimentícios, tais como embutidos, lácteos e na ração dos
animais que depois viram carne para consumo. Nenhuma indústria
acatou a determinação da lei, e ficou por isso mesmo.
Porém, a polêmica continuou na sociedade, inconformada com uma
decisão parcial que beneficiava um pequeno segmento de
produtores em detrimento da maioria da população brasileira.
As MPs, como o próprio nome indica, deveriam ser provisórias.
Para dar um encaminhamento mais adequado à questão, a Casa Civil
elaborou então, no final do ano passado, um projeto de lei de
Biossegurança, e que foi debatido com as entidades
ambientalistas, com os movimentos sociais do campo. O projeto de
lei realmente buscava preservar a segurança e os direitos do
povo brasileiro. Foi para a Câmara dos Deputados e, lá,
misteriosamente, o próprio líder do governo, o ex-comunista Aldo
Rebelo, não só não defendeu o projeto do governo como o
desfigurou, atendendo apelos dos ruralistas e das
transnacionais. A ministra Marina Silva reagiu vigorosamente,
mas surtiram mais efeitos as pressões pessoais do ministro da
Agricultura. A votação foi realizada por acordo de líderes, com
protestos de mais de 40 deputados do PT. É um projeto
rebaixado, em que libera a pesquisa com OGMs, mas preservava
minimamente o direito de precaução no que se refere à
comercialização, exigindo estudos de impacto ambiental e a
submissão das decisões a um conselho de ministros para analisar
os interesses do país, antes de liberar qualquer produto.
No Senado, os senadores Osmar Dias (PDT-PR) e Ney Suassuna
(PSDB-Paraíba jogaram uma pá de cal no espírito inicial do
projeto de lei do governo. Retirou-se qualquer principio de
precaução social. Liberaram a soja transgênica imediatamente,
deram total poderes para uma pequena comissão de 15 técnicos e
membros do governo, a CTN-Bio, que se reúne uma vez por mês,
para liberarem inclusive comercialmente, sem nenhum estudo de
impacto ambiental ou de implicações para saúde humana.
Retiraram a exigência do rótulo, e impediram que os governos
estaduais mantivessem a autonomia que já lhes fora outorgada por
suas assembléias legislativas de manterem seus territórios
livres de transgênicos, tais como os estados do Paraná, Goiás,
Santa Catarina e Pará que editaram leis proibindo o cultivo de
transgênicos em seus territórios.
As modificações são tão ruins que diversos senadores do
próprio PT se recusaram a votar e, portanto, faltou quorum.
Fomos salvos pela falta de quorum. E agora, só vai a votação em
meados de outubro, possivelmente quando você estiver lendo esse
artigo.
Se for aprovado no Senado, volta para a Câmara. Como não
haverá tempo para regulamentar o plantio da soja, o governo deve
editar uma nova MP para, de novo, proteger os interesses de
alguns fazendeiros agricultores gaúchos, esquecendo que estão
em jogo interesses de toda população brasileira, e sua segurança
alimentar e de nosso meio ambiente.(até o fechamento do artigo,
não se tinha ainda confirmação)
Mas o que está em jogo mesmo, com os transgênicos ?
Ao contrário do que os defensores da liberação dos transgênicos
apregoam, a verdade é que o que os movimentos sociais e os
ambientalistas mais querem é a pesquisa. É imprescindível que se
pesquise ao máximo, para que se tenha segurança absoluta em cada
caso, até porque há uma enorme quantidade os estudos provando a
periculosidade de tais OGMs, tanto para o meio ambiente como
para a saúde humana. A recusa em proceder às pesquisas
necessárias para liberação do produtos e a pressa com que alguns
grupos querem ver tais produtos amplamente comercializados deixa
muitas interrogantes. Seguramente, não é para resolver o
problema da fome no país.
Por outro lado, qual é o problema em rotular tais produtos? Se
são realmente bons, rotulados, darão à população a possibilidade
de optar pelo melhor.
O que os defensores da liberação dos transgênicos não têm
coragem de dizer é que, no fundo, o que está em jogo é o poder
monopólico das dez empresas transnacionais que controlam todas
as sementes transgênicas existentes no mundo. Elas querem nos
impor suas sementes, para controlar nossa agricultura e nos
expropriar por meio da lei de patentes da OMC, nos cobrando
royalties.
Na verdade, o que esta em jogo, nessa polêmica acerca dos
transgênicos é se seremos um país que garante a segurança
alimentar do seu povo, assegurando que um setor vital da
economia, a agricultura, permaneça sob controle dos
agricultores e a serviço do povo brasileiro. Ou, cederá passo
para a apropriação pelas transnacionais dos transgênicos do
fruto do trabalho dos agricultores, da riqueza nacional e, mais
grave ainda, colocando em risco a integridade do povo
brasileiro.
E o poder econômico das transnacionais, conhecem sobejamente as
vulnerabilidades de caráter e não hesitam em pagar viagens e
outros mimos para parlamentares, jornalistas com o fim de
atraí-los para o seu campo e convertê-los nos arautos da
transgenia.
O que está em jogo é nosso futuro. O que precisa ficar
esclarecido nesse processo é se o povo brasileiro terá autonomia
sobre a produção de seus alimentos, ou seja se preservará a
soberania alimentar, ou será dependente das transnacionais para
se alimentar. E como nos advertiram tantos pensadores, " um
povo que não produz e não controla seus próprios alimentos, não
é um povo livre!"
Dos nossos governantes esperamos , no mínimo, que tenham
consciência de suas responsabilidades históricas perante nosso
povo.
* João Pedro Stedile é membro da Via Campesina Brasil
https://www.alainet.org/fr/node/110636?language=en
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