A guerra, depois da guerra
17/03/2004
- Opinión
O governo norte-americano declarou terminada a guerra do Iraque há
exatamente um ano, tempo que já dura a ocupação do país pelas tropas
lideradas pelos Estados Unidos. Desde então morreram duas vezes mais
soldados norte-americanos do que durante o tempo da guerra – segundo
os critérios dos estrategistas dos EUA –, o mundo está mais inseguro
sem Sadam Hussein no poder, seu aliado Aznar acaba de cair,
derrotado pelas mentiras sobre a luta "contra o terrorismo" e o
próprio Bush vê ameaçada sua reeleição.
Tratou-se, na segunda guerra do Iraque, da aplicação mais coerente e
conseqüente da nova estratégia político-militar dos EUA, formulada
no segundo semestre de 2002, que reivindica para esse país o direito
de utilizar todos os meios para manter sua superioridade militar,
assim como o direito de atuar como "polícia do mundo", ao teorizar a
necessidade de um novo "poder imperial", que imponha ordem em
regiões e países do mundo incapazes de se autogovernar, no marco do
que reivindica também o direito de "guerras preventivas", que
previnam ataques "terroristas". Militarizam-se os conflitos, que
serão tratados por meio da força, simultaneamente à retirada de
qualquer acordo internacional pelos EUA – como ficou claro na sua
decisão unilateral de atacar o Iraque, mesmo sem apoio da ONU –,
porque ataques preventivos e unilaterais só são possíveis como uso
da força e não de um impossível consenso em torno de uma doutrina
legitimadora da superioridade militar norte-americana.
O caráter "preventivo" da guerra do Iraque sequer se confirmou,
porque as "armas de destruição massiva" não foram encontradas, o
argumento passou a ser o de que "o mundo está mais seguro sem
Sadam". Hoje os mesmos dirigentes são obrigados a reconhecer que
forjaram relatórios a fim de impor a necessidade de uma guerra que
era perfeitamente evitável. Mas ela projetou Bush e Blair como
cabeças da "guerra contra o terrorismo" em escala mundial e forçam
seus aliados a se adaptar a essa prioridade estratégica norte-
americana.
As guerras, porém, não acabam quando os que se consideram vencedores
assim o decretam, porque lhes convêm. A guerra regular terminou, os
EUA triunfaram, mas têm enormes dificuldades para impor sua "pax". O
país, já dividido em termos religiosos e políticos, ficou mais ainda
com a presença das forças de ocupação. Se não há formas alternativas
que pudessem reunificar o Iraque, tampouco parece haver coalizão
suficiente de forças para estabilizar a ocupação. Daí que o país se
dessangre, com uma resistência ativa, que golpeia não apenas
militares de ocupação, mas também os que ela considera colaboradores
dessas forças, assim como a população em geral, como para provar que
a ordem não pode reinar em um Iraque ocupado.
Terror em Madri
Os atentados de Madri, dois anos e meio depois dos de Nova York e
Washington, podem estar demonstrando que finalmente os grupos
islâmicos estão preparados para golpear outros alvos frágeis –
cidades de países como a Espanha, a Itália, a Inglaterra – pela
participação de seus governos na guerra e ocupação do Iraque. Seriam
alvos fáceis, mas facilitariam a missão norte-americana de
comprometer esses aliados com sua política de privilegiar o "combate
ao terrorismo".
No entanto o resultado eleitoral da Espanha, punindo a Aznar e seu
partido da "nova direita", o PP, pela mentira, pela tentativa de
instrumentalização dos atentados para obter ganhos eleitorais e por
deixar a população do país vulnerável pelo apoio incondicional a
Bush, levou à queda de um dos governos mais estreitamente aliados
dos EUA e pode indicar uma direção perigosa para os que estreitem
ainda mais suas alianças com Washington.
Os atentados de Madri podem significar um enfraquecimento ou um
fortalecimento da nova candidatura de Bush. Ele se enfraquece, na
medida em que se constata que o mundo é mais vulnerável do que há
dois anos e meio aos ataques terroristas e que os aliados de Bush,
como Aznar, têm dificuldades em se manter no poder, quando se
comprometem fortemente com a estratégia belicista dos Estados
Unidos. Mas Bush pode se fortalecer, conforme se tome os atentados
como confirmação do risco que a Al Qaeda representa para todo o
mundo e da necessidade de privilegiar a "guerra contra o
terrorismo", o que favorece a reeleição no plano interno.
Desafios para a esquerda
Esse quadro coloca um duro desafio para os que lutamos por "um outro
mundo possível". Os fundamentalistas islâmicos retomam sua ofensiva
para polarizar contra o poder imperial norte-americano, buscando
ocupar o lugar central de resistência, dando-lhe um caráter
religioso e impondo métodos de terror. A resistência iraquiana, de
muito valor como expressão da forma de resistência contra a ocupação
do seu país, estende cada vez mais seus atentados, afetando agora
não apenas a soldados estrangeiros, mas a acusados de colaboração e,
mais do que isso, de forma indiscriminada, fazendo ações que têm
população civil, para procurar demonstrar que os EUA não capazes de
garantir a ordem interna.
Os que lutamos pela resolução pacífica e negociada dos conflitos
mundiais e locais temos que ser capazes de propor não somente uma
política de democratização das relações políticas mundiais, mas
também um plano de paz para o Iraque e para outras zonas de maior
conflito no mundo hoje. Temos que saber demonstrar que uma outra
via, que não a do terror de lado a lado, é possível, necessária e
urgente.
As guerras atualmente têm nos povos desarmados suas principais
vítimas, da mesma forma que os atentados terroristas. Elas
representam o triunfo dos mais fortes, que se valem dos recursos que
lograram acumular para transformá-lo em força técnica e militar para
oprimir aos povos e às nações que não se submetem a seus desígnios.
A linha de ação dos EUA, de militarizar os conflitos, é a de tentar
impor sua superioridade material sobre os outros, fazendo dela o
instrumento essencial de sua dominação.
A hegemonia norte-americana no mundo, um ano depois do fim oficial
da guerra do Iraque, está em crise? Quais os elementos de força e de
debilidade na construção de uma hegemonia alternativa? Estas são
questões fundamentais para nossa luta hoje. Qualquer superestimação
ou subestimação da força de cada um dos campos nos afastará da
correlação real de forças existente no mundo e nos deixará
despreparados para enfrentar os desafios presentes e futuros.
Força dos valores americanos
A maior força dos EUA hoje no mundo não está na sua superioridade
militar. Vietnã e Cuba já demonstraram que ela pode ser vencida. A
superioridade norte-americana, responsável pela sua hegemonia
mundial, está na força da sua ideologia, dos valores cotidianos que
propagam pelo mundo afora, na forma de vida que fabricam, praticam e
exportam para todos os rincões do planeta. Nisso reside sua força
maior. Com o desaparecimento do "campo socialista", os EUA
praticamente ocupam sozinho o espaço das formas de vida em sociedade
hoje no mundo. O contraponto vem de formas de organização social
mais atrasadas, como as do fundamentalismo islâmico, conservadoras,
religiosas, repressivas. Até a China se deixa influenciar pelas
formas de vida norte-americanas, depois de ter passado séculos
fechada em sua cultura e forma de vida. Apóiam-se não apenas na
crise do socialismo, mas também numa máquina publicitária e
informativa mundial, com uma poderosa capacidade de influência no
mundo todo.
A economia dos EUA, embora não tenha hoje o ímpeto que teve há
algumas décadas, é mais forte, comparada com as outras – a soviética
desapareceu, a japonesa e a alemã se enfraqueceram –, constituindo-
se na locomotiva da economia mundial, embora com graves debilidades
e dependendo muito do exterior. Mas praticamente todos os outros
países também dependem da economia norte-americana.
Não devemos superestimar a força dos EUA, mas tampouco acreditar que
se trata de um "tigre de papel", que eles têm "dominação sem
hegemonia", isto é, tem o poder pela força. Estas são versões
simplistas, que não dão conta da força do inimigo e, ao subestima-
lo, pode não acumular a força suficiente para derrota-lo. Isto
aconteceu no passado recente, com as versões do tipo "o mundo
caminho para o socialismo", como se os destinos da humanidade
caminhassem independentemente da capacidade de organização, de
consciência e de luta dos homens e mulheres concretamente
existentes.
Temos que dar o combate em todas as frentes, mas privilegiar a
mobilização popular, a consciência política e a criação e formas de
vida alternativas, que prefigurem o tipo de sociedade que queremos.
A luta contra a hegemonia norte-americana é assim uma luta global –
econômica, política, militar, ideológica –, pela construção de um
tipo de mundo alternativo. A força dos EUA fica mais clara diante da
debilidade das outras forças, muitas delas com divergências
secundárias com Washington – como os países europeus e o Japão, por
exemplo – ou porque pregam formas retrógradas de vida – como os
fundamentalistas islâmicos.
Daí o desafio de retomar nossa luta, a partir do dia 20 deste mês,
para nos apropriarmos da luta antiimperialista, com bandeiras de
paz, de solidariedade, de humanismo – aquelas que caracterizam nossa
luta por "um outro mundo possível". Esta é a nossa guerra, a guerra
pela paz e pela fraternidade entre os povos, pela igualdade e pela
justiça.
* Emir Sader é professor da Universidade de São Paulo (USP) e da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Publicado jornal "
Brasil de Fato" 17 de março.
https://www.alainet.org/fr/node/109601?language=en
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