Vinte anos do Zapatismo em Chiapas 1984-2004

03/03/2004
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Setembro 2003 "Há um tempo para pedir, outro para exigir e outro para exercer" No dia 17 de novembro de 2003 completaram-se vinte anos da fundação do Exército Zapatista de Libertação Nacional, em algum lugar da Selva Lacandona. No dia 1º de janeiro de 2004 cumpriram-se dez anos de luta pública, de resistência, criatividade e paradoxos de um movimento que, nessa data, chegou para ficar. É hora de comemorações e de recontagem, de olhar para atrás, de fazer um balanço, falar de acertos e erros, estratégias e surpresas. É hora, pois, de reflexionar sobre essa caminhada. Faz vinte anos que centenas de povos rebeldes, centenas de milhares de indígenas, mantém-se na luta. Os primeiros dez anos foram de clandestinidade, tecendo um trabalho político pessoa à pessoa, família à família, comunidade à comunidade. Como foram possíveis esses dez anos sem que ninguém fica-se sabendo. Como é que se consegue guardar um segredo que inclui milhares e milhares de indígenas rebeldes. Vinte anos depois, continua pendente um reconto da quotidiana dose de heroísmo e determinação desses primeiros povos, uma história que apenas pode ser imaginada se levarmos em conta que tudo o que se seguiu, e o que falta, é possível pela existência e resistência desse núcleo duro, esse grupo que completou vinte e dez de fogo e de palavra. O Subcomandante Insurgente Marcos, chefe militar e porta-voz do movimento rebelde, faz um balanço duma década de luta e resistência zapatista. Na primeira entrevista concedida desde a Marcha da Cor da Terra, acede a responder às perguntas que a revista Rebeldia e o jornal A jornada, no contexto desta edição, fizeram-lhe chegar às montanhas do sudeste mexicano. Marcos aceita a sugestão e não responde escrevendo. Fala diante dum gravador e apenas, diante dum microfone, fala sem pausa. Estas, são perguntas as quais responde, imaginamos, sem capuz e sem mais testemunhas do que a chuva e os foguetes que de pronto ouvem-se à distância. O Sub lembra o início da guerra, fala desses doze primeiros dias, dos combates iniciais e, mais adiante, refere-se pela primeira vez numa entrevista, ao Subcomandante Insurgente Pedro e a sua morte em combate na madrugada do 1º de janeiro de 1994. 1. Início e motivações da guerra, as lembranças, os combates Hoje, nove anos e nove messes depois - estamos em setembro de 2003, sempre há que insistir em remarcar a data porque depois mudam as circunstâncias -, nós continuamos entendendo a guerra que se iniciou o 1º de janeiro de 1994, e que ainda desenvolvemos, como uma guerra que se desencadeou pela desesperação, mas que então a vimos como necessária. Nove anos e nove messes depois, continuamos pensando que foi necessária. Pensamos que se não tivesse começado a guerra, se não fosse iniciado o levantamento armado do Exército Zapatista de Libertação Nacional, muitas coisas em benefício dos povos indígenas e do povo do México, inclusive do mundo, não teriam acontecido da forma em que aconteceram. Por um lado, a lembrança desses dias de ataques e combates, desses inícios, é uma lembrança dolorosa. Lembramos, pois, aos nossos companheiros caídos nesses primeiros dias, aos companheiros que caíram em Ocosingo, em Las Margaritas, em Altamirano. Companheiros com os quais compartimos muitos anos prévios ao 1º de janeiro, preparando-nos e pensando como ia a ser o começo da guerra e o que iria acontecer depois. Companheiros com os quais compartimos muitas coisas, entre outros, lembro do companheiro Sub Pedro, quem então era o chefe do Estado Maior e o segundo no mando do EZLN. Ele morre em Las Margaritas nas primeiras horas do 1º de janeiro. Também lembro do comandante Hugo ou senhor Ik, como lhe chamávamos, o qual morre em Ocosingo, nos combates contra o exército federal nessa localidade. Dos companheiros insurgentes de Materiais de Guerra, lembramos de Álvaro e de Fredy, os quais também caíram combatendo em Ocosingo... lembramos aos companheiros milicianos que caíram numa ou noutra localidade. Também está a lembrança da resposta brutal - sem nenhuma honra militar - do exército federal, que não foi apenas combater nossas tropas, nós estávamos ali para isso, senão que começou a liquidar civis e dá-los como se fossem baixas nossas, atirando a esmo, em todas direções, naqueles primeiros dias, sobretudo no que foi o massacre de Ocosingo. Lembro, pois, essa falta de honra militar que demonstrou o exército federal desde então, e que repetiria ao longo destes dez anos de guerra intermitente que temos mantido contra eles. Nós temo-nos defrontado (e essa é a lembrança que temos dos federais) com essa falta de honra militar na hora de lutar e com as sujas trapaças às quais apela para tentar levantar o seu decaído prestígio. Da nossa parte, lembramos os nossos combatentes, não apenas aos caídos, também aos que continuam em pé de luta, com destaque para as companheiras insurgentes, que em muitos casos, revelaram-se melhores combatentes que os homens. Também está a atitude e firmeza dos nossos companheiros comandantes, os membros do Comité Clandestino Revolucionário Indígena - a grande maioria deles foi na frente nos combates, junto com nós e nossas tropas, e provaram o que poucos, hoje, mostram nas organizações: que o dirigente deve estar junto com a sua gente, não ao margem dela, ou afastado ou atrás dela. Isso é o que hoje lembramos. Em resumo, a leitura que fazemos desse começo da guerra, nove anos e nove messes depois, é a de que foi uma guerra desesperada mas necessária - tanto - para os povos indígenas de Chiapas e do México que até então permaneciam no esquecimento, no canto mais esquecido da pátria, como nós dizíamos. E era a única maneira de que mudaram as coisas, não apenas no sentido do modo em que as via o governo federal, mas também a sociedade mexicana, inclusive a sociedade internacional. O início da guerra representa para nós a dor mas também a esperança. Segundo a leitura que fazemos hoje isso foi o que marcou e permitiu tudo o que tem acontecido depois. Estes mais de nove anos não teriam sido possíveis no seu êxito sem essas primeiras horas do levantamento armado. Além da leitura interna, a leitura que fazemos, desse início da guerra, também é algo que vai marcar até hoje a história pública do EZLN. Isso porque vemos que, além dos combates entre o EZLN e o Exército federal, há uma outra briga que não é propriamente agressiva entre o EZLN e o que nós chamamos a sociedade civil. Desde os primeiros minutos do começo do levantamento se produz esse encontro e, de alguma maneira, começa a ser aventada uma das partes, o exército federal, como algo inteiramente externo ao conflito. Se são revisadas as fotos daquele 1º de janeiro de 1994, vê-se a convivência, essa relação quase promíscua entre as forças zapatistas e a sociedade civil. Hoje, o que eu tenho na minha memória visual, é essa surpresa dos civis rodeando aos insurgentes, a surpresa de vê- los e também a surpresa e o embaraço que nós tínhamos, nos olhares e nas nossas faces, ao nos encontrar com essas pessoas. Não havia camaradagem mas também não havia agressividade de nenhuma das duas partes. Como se os dois estivéssemos seguros de que o outro não era o inimigo. Desde o começo, isso vai marcar o que será a relação entre o EZLN e a sociedade civil ao longo de todos estes anos de encontros, desencontros e reencontros. É importante assinalar, nesta leitura que estamos tentando fazer que desde o início se produz esse encontro, e desde o início o governo e o Exército começam a ficar marginalizados. Estão, sim, como uma força agressiva, contra a qual combate-se, mas que pouco e nada tem a ver com o que vai ser construído - não no que vai ser destruído - ao longo destes quase dez anos. Essa é a relação de surpresa, primeiro de embaraço: Ah, estás cá!, de um e doutro lado, zapatistas e civis, a partir desse 1º de janeiro de 1994. Isto vai ser importante - digo e repito - porque durante todos os dias de luta, a atitude da sociedade civil em relação aos insurgentes foi a de tentar saber quem eles são, como é que são, o que pensam e o que querem. Tentar entender o que os tinha levado a tomar essa decisão. Enquanto que a atitude do governo federal e do exército federal era aniquilá-los, reprimi-los, destruí-los, desaparece-los. E digamos que nós, após os primeiros combates nos quais foram tomadas as cabeceiras, estávamos mais ocupados em combater, em possibilitar o recuo das nossas tropas e em sobreviver. Supõe-se que numa guerra os civis apareçam como refugiados ou como vítimas, e neste caso não eram nem uma coisa nem a outra, porém, claro, houve casos, nos quais ocorreu dessa maneira, naqueles dias houve refugiados e deslocados. Mas na maioria dos casos ali andavam, pelo menos nas cabeceiras que tomamos, nas localidades onde lutamos, nas localidades pelas quais nós movimentamos, onde houve combates, onde estivemos presentes. A maioria da população civil não fugia diante da presença das nossas tropas. Então, desde as primeiras horas desta guerra que já vai para dez anos, dá-se este encontro y desde então, desloca-se o lugar que sempre quiseram disputar o governo federal e suas tropas, o lugar predominante. Eu acredito que tem sido determinante para muitas coisas que foram aparecendo depois. Tem uma outra coisa, a maneira dos zapatistas tomar as decisões, ou seja construir as coisas desde abaixo, não decidi-las acima. Isso é que dá para nós a força e a confiança de que estamos fazendo o correcto na hora em que começamos a guerra. É uma das dúvidas, entre muitas outras, que com frequência carrega um combatente: se é correcto o que está fazendo. Nós tínhamos muitas dúvidas, se íamos conseguir, se tínhamos a capacidade, qual ia a ser a resposta das pessoas, qual ia ser a resposta do exército inimigo, qual ia ser a resposta dos meios. Muitas dúvidas tínhamos, mas não tínhamos a dúvida da legitimidade do que estávamos fazendo. Não estou me referindo à decisão pessoal da cada combatente - que pesa e muito - de estar determinado a lutar até a morte para conquistar algo. Não, estou me referindo ao que significa agir com um respaldo coletivo, neste caso de milhares de indígenas e milhares de combatentes. 2.Dez anos: o fogo e a palavra, consolidar a autonomia Mais do que dividir em grandes etapas esse período, nós diferenciamos três grandes eixos ao longo de estes quase dez anos. O que nós chamamos de eixo de fogo, refere-se às ações, os preparativos, os combates, as movimentações propriamente militares. O eixo da palavra, refere-se a encontros, diálogos, comunicações, onde a palavra ou o silêncio, isto é, a ausência de palavra. O terceiro eixo vem a ser a coluna vertebral e refere-se ao processo organizacional ou à maneira pela qual vai se desenvolvendo a organização dos povos zapatistas. Esses três eixos, o eixo do fogo e o eixo da palavra, articulados pelo eixo dos povos, do seu processo de organização, marcam os dez anos de vida pública do EZLN. O eixo do fogo e o eixo da palavra, aparecem com maior ou menor intensidade, em períodos determinados também com maior ou menor duração, e com maior ou menor incidência na vida do EZLN e o seu entorno, ou na vida nacional ou no mundo. Mas os dois eixos sempre têm a ver e estão determinados pela estrutura que vão adquirindo os povos, que não somente sustentam o EZLN, senão que também, como temos afirmado muitas vezes, são o caminho pelo qual anda o EZLN. O ritmo do seu passo, o intervalo entre um passo e outra, a velocidade, tem a ver, tanto no fogo como na palavra, com o processo de organização dos povos. Em alguns casos é o fogo, quero dizer a parte militar, a preparação dos combates, movimentações, manobras, o combate propriamente dito, ações de avanço ou de recuo, os mais importantes ou os que aparecem com mais evidência. Em outros casos a palavra é predominante, ou os silêncios que se constróem ao redor da palavra, neste caso para dizer calando, como nós falamos. Ao longo destes quase dez anos marca-se um ou outro eixo, mas sempre tem a ver com a maneira em que os povos estão se organizando. Não é a mesma coisa como estão organizadas as bases de apoio do EZLN para a guerra, que como se organizam para dialogar com o governo ou com a sociedade civil, ou para resistir, ou para construir a autonomia, ou para construir formas de governo, ou para se relacionar com outros movimentos, ou com outras organizações, ou com gente que não é movimento nem têm organização. Neste caso, os povos, as bases de apoio zapatista, adoptam formas que vão construindo-se, que não estão em nenhum livro nem em nenhum manual, nem, claro, que nós lhes tenhamos dito. São formas de organização que têm muito a ver com a sua experiência, e não estou me referindo apenas à sua experiência ancestral e histórica que vêm de tantos séculos de resistência, senão da experiência que construíram já organizados como zapatistas. Nesse sentido, 1994 está fundamentalmente marcado, ao meu modo de ver, pelo eixo de fogo; não tão somente pelo início da guerra e os combates ao longo de janeiro, senão também porque todo esse ano se caracterizou pelas movimentações militares, tanto do governo como as nossas. E a parte da palavra estava incipiente, mais como tenteando. As grandes mobilizações militares são as de janeiro de 1994 e dezembro desse mesmo ano, quando se dá a ruptura do cerco. Elas implicam grandes mobilizações de milhares de combatentes. Ao longo desse ano, se estão lembrados, quando há aparições públicas do EZLN sempre se sublinha ou remarca-se o aspecto militar. Há desfiles e deslocamentos militares para insistir em que somos um exército. Pelo lado da palavra se produzem encontros importantes, mas na avaliação dos dez anos são vistos como esforços incipientes, em comparação com o que vai acontecer depois. Um exemplo, temos o diálogo de Catedral, que mais do que um diálogo com o governo era um diálogo com a sociedade civil. É, pois, a continuação desse encontro surpreendente que existe entre o EZLN e os civis, do qual falava o dia 1º de janeiro de 1994, mas no decurso do diálogo de Catedral ocorre de maneira mais aperfeiçoada, porque mais do que dialogar com o governo, o EZLN dedicou-se a falar com as pessoas, neste caso, através dos meios de comunicação. Realizaram-se muitas entrevistas, houve encontros, etc., onde o EZLN tentava dizer: isto é o que sou. Mas ainda continuava faltando a pergunta: e você quem é, referindo-se, claro, à sociedade civil. Na Convenção Nacional Democrática insiste-se ainda na parte do isto é o que eu sou. O EZLN tinha-se se dado conta que ao governo não lhe interessava acabar com o conflito e sim mantê-lo num nível que lhe permitisse terminar os seis anos, porém que, no fim, não conseguiu terminar bem devido às rupturas internas que provocaram o assassinato de Colosio e depois o de Ruiz Massieu... Mas, bom, na parte da palavra, isso foi o que também aconteceu, a CND. Ao mesmo tempo em 1994 o EZLN começa a tentar conhecer e definir um perfil do que é a classe política com a que também está-se encontrando. Além do encontro com a sociedade civil, dão-se os primeiros encontros com partidos políticos ou com líderes políticos, ainda tenteando no que se tratava. De qualquer maneira, mesmo com o diálogo, a CND e os encontros com a classe política, vejo que o 94 está marcado pela linha de fogo. O 1995 continua a linha de fogo, marcada pela traição do governo de Zedillo ao diálogo que estava só se iniciando com ele. Dá-se a ofensiva militar contra as posições do EZLN na Selva Lacandona, produzem-se combates, caem companheiros, caem soldados inimigos e se produz essa grande mobilização militar, a militarização que até hoje não só mantém-se senão que tem aumentado ao longo destes anos. Todo 1995 é isso, está marcado por isso. Inicia-se, pois, o diálogo com Zedillo mas ainda marcado pela ameaça militar, neste caso do governo federal, porque o ezln faz em agosto uma consulta prévia à entrada mais no estilo em que vai ser o diálogo de San Andrés: a primeira consulta nacional e internacional, onde pergunta-se sobre o futuro do EZLN. O EZLN está fazendo isso, a consulta, porque está pensando que se for entra-lhe ao diálogo é porque vai entra-lhe a sério. Na consulta boa parte das pessoas, um milhão duzentos mil, dizem que sim que há que se converter em força política. Então o EZLN tem que entrar ao diálogo com essa perspectiva, mas ainda está o problema da palavra muito embaixo. No decurso de 1995 continua sendo predominante a linha de fogo, mesmo com a consulta implicando uma aproximação mais aperfeiçoada que a Convenção Nacional Democrática de 1994. Em 1995 o EZLN recebe vários golpes. Depois chegamos a 1996. O EZLN começa a construir a palavra de maneira mais aperfeiçoada, como arma mas também como ponto de encontro. Em 1996 são o Foro Nacional Indígena que depois vai-se constituir em Congresso Nacional Indígena, é o Fórum da Reforma do Estado, é o Encontro Continental e Intercontinental. Graças às comunidades zapatistas, mas também a estes encontros, o EZLN começa a perguntar quem você é e a obter respostas do lado da sociedade civil. Começa a ser predominante o eixo da palavra. Em 1997 o EZLN vai respondendo a esta nova maneira de se organizarem as comunidades, que avançam cada vez mais, y lança de novo uma iniciativa de diálogo. Esta vez já não coloca comissões senão um grande contingente, que é a marcha dos 1111, que percorre grande parte da República para chegar à cidade de México, para exigir o cumprimento dos Acordos de San Andrés. Desde essa data, o cumprimento dos Acordos de San Andrés, que é o horizonte da guerra zapatista, converte-se num eixo muito importante das mobilizações do EZLN. Porém, para tentar voltar atrás esse avanço e diante das derrotas que está tendo o regime, são reactivados os grupos paramilitares, adquirem mais e mais beligerância e, finalmente, em dezembro de 1997, com Acteal, o ano adquire forma definitiva pela linha de fogo. E essa ferida, essa cicatriz, vai durar até hoje. O 1998 é sobretudo linha de fogo. O EZLN e sobretudo as comunidades ressentem uma ofensiva brutal da parte do governo, os ataques aos municípios autónomos, escaramuças, combates com baixas dos dois lados em várias regiões do movimento zapatista, combates de milhares de bases de apoio contra colunas do exército federal para impedir novos assentamentos militares. Enfim, tudo isso define que 1998 marque-se como linha de fogo. Em 1999, o EZLN tenta, como sempre tentou, virar a mesa. Volta a insistir na palavra porque está encontrando respostas do lado da sociedade civil, e também da classe política, à pergunta de quem você é. Já começa a se ver, a se definir, o ânimo da classe política que vai ser definitivo em 2001 e 2002. Em 1999 é lançada a Consulta Nacional pelos Direitos e a Cultura Indígenas, e os povos zapatistas dão uma prova de força ao conseguir enviar 2.500 homens e 2.500 mulheres para percorrer toda a República. A Consulta Nacional representa um esforço organizacional não somente do EZLN, que já levávamos organizados muitos anos, mas também de muita gente que não têm organização e que se organiza não só para a consulta, senão também para receber aos delegados, transportá-los, preparar actividades de informação e para a consulta propriamente dita. Toda essa mobilização dá ao EZLN, além dum apoio fundamental para a lei sobre os Direitos e a Cultura Indígenas, uma clara medida da relação que tem estado construindo com a sociedade civil nesse tempo todo. Em Rebeldia deve ter alguns dados do esforço de organização que significou essa consulta para a sociedade civil. Para nós 1999 é uma resposta ao governo federal e à política agressiva que tinha desenvolvido em 1998, é uma resposta aos poderes da União sobre a importância da lei indígena, mas, sobretudo, é uma resposta ao EZLN de um grande sector da sociedade que estava esperando construir uma relação política com nós. No ano de 2000, diante do período eleitoral, o EZLN recua e utiliza outra vez o eixo da palavra, mas dessa vez com o silêncio. Acontecem as eleições, a derrota do PRI, a subida de Fox e o EZLN mostra o naipe. Depois de valorizar a Consulta Nacional e os encontros que teve com vários sectores sociais no ano 2000, lança a Marcha da Cor da Terra. Na Marcha da Cor da Terra, o EZLN começa a tentar se aproximar mais dessa sociedade que percebe a partir da Consulta de 1999, essa sociedade que tem interesse em construir algo novo, que é também o que os zapatistas querem. Y também o ezln está-se fazendo uma pergunta fundamental sobre a classe política mexicana - se vem ao caso ou não continuar construindo uma relação assim. Acontece a marcha com todos os actos que não vou repetir cá. O EZLN, depois que se produz a votação no Senado, no Congresso da União, obtém uma resposta definitiva sobre a classe política mexicana. O 2002 dedica-se então à preparação do que vai ser essa intercomunicação com a sociedade civil, e a construir, nos fatos, o que tem demandado ao longo de tanto tempo. No 2003, agora que anuncia-se a construção das Assembleias de Bom Governo, avança-se na autonomia indígena e o EZLN já se apresenta como uma alternativa não só na palavra, mas também na prática. Não estou falando dum exemplo a seguir nem de guia para a ação, senão como uma referência. O EZLN tem um perfil político prático para oferecer na hora que dialoga com outros. Uma referência política e prática, civil e pacífica, porque o referente que tínhamos era duma organização armada, o de que havia que se organizar e levantar-se em armas: A criação das Assembleias de Bom Governo e os municípios autónomos significam já uma outra alternativa, outra opção ou referente para a sociedade. Ao longo de todos esses anos, desde 1994 até 2003, sobretudo em 1996 e 1997, o EZLN começa a construir uma relação com o mundo, com pessoas e movimentos em nível internacional, uma relação que tem os seus altos e baixos mas que vai ser importante nesse processo de construção duma referência alternativa, civil e pacífica. Uma espécie de ensaio de um outro mundo possível que é o que está-se tentando construir nas comunidades indígenas. De uma maneira geral, é isso mais ou menos, o que posso assinalar desses três eixos: o eixo do fogo e o da palavra, dependendo da coluna vertebral que é o eixo da organização dos povos. E é a partir daí que se constrói a relação com a sociedade civil, com suas próprias características, e onde dá-se o processo ao qual eles nos levaram, os políticos, em 2001, com a sua rejeição ao reconhecimento dos direitos e da cultura indígenas. 3. Surpresas desses dez anos, acertos, encontros Assim, em ordem cronológica, a primeira surpresa é que o mundo que encontramos não tinha nada a ver com o que nós imaginávamos nas montanhas. Daí o mais importante é nos ter dado conta que as pessoas, em geral, tinham muito interesse em entender, em se informar, em saber o que era tudo isto; diferente do que poderia se esperar, de que as pessoas estivessem apáticas, que não lhes importasse o que fosse.. Neste sentido, fomos muito afortunados ao encontrarmos com esse México, com essa gente disposta a escutar e ver o que era que estava se passando com os zapatistas. Essa foi uma das grandes surpresas. Outra das surpresas que temos tido é a juventude. Nós pensamos que ia a estar totalmente céptica, receosa, cínica, pouco receptiva a qualquer movimento, mais egoísta, mais fechada em si mesma. E não, é uma juventude generosa, aberta, com vontade de aprender e vontade de se entregar numa causa justa. Mais uma surpresa é a grande participação das mulheres, do sector feminino como se dirá depois, em cada uma das iniciativas e em todos os níveis. Foi uma surpresa a decisão e a entrega dessas mulheres, dessa irmãs como dizemos nós, tanto em nível nacional como internacional. Uma surpresa política foi o impacto que teve a palavra zapatista em nível internacional e não me refiro apenas ao aspecto intelectual, mas também ao impacto que tem tido em movimentos e organizações em todo o mundo. Outra das surpresas, há que reconhece-lo, é o grau de deterioro da classe política mexicana, é tal que ousamos simplesmente dizer que não tem mais remédio. Nós pensamos que existiam sectores com os quais algo podia ser feito, mas já vimos que não. Isso, em grandes linhas. Se pudesse resumir tudo diria: a grande surpresa política é que se tenha dado um ponto de encontro, ou uma via de comunicação, entre este processo de organização dos povos e o que estava passando abaixo em nível nacional e internacional. E a última grande surpresa é a receptividade que existiu ao começo em todos os meios de comunicação (porém que a maioria foi se fechando segundo passavam os anos) para que se soubesse o que realmente acontecia nas comunidades indígenas, não só de Chiapas como de todo México. Eu penso que o acerto maior que temos tido é a disposição e a capacidade de aprender, primeiro de aprender a lutar, de aprender a reconhecer o inimigo, de aprender a reconhecer quem não é inimigo, de aprender a falar, de aprender a escutar e aprender a caminhar junto com outros, de aprender a respeitar e a admitir a diferença. E, sobretudo, de aprender a nos ver a nós mesmos como somos e como os outros nos vêm. Isso, penso, é o acerto maior dos zapatistas: temos aprendido a aprender, mesmo que pareça um refrão pedagógico. 4. A autocrítica, o que não se voltaria a fazer Se pudesse regressar o tempo, o que não voltaríamos a fazer é permitir e... estimular... que se tenha superestimado a figura de Marcos. O que mais não voltaríamos a fazer. Penso, honestamente, que tudo o que fizemos, bem ou mal, o fizemos pensando - depois de analisar - que nesse momento essa decisão era a melhor. Se então tivéssemos valorizado outras coisas que não enxergamos, talvez haveríamos tomado outra decisão, mas nesse momento não podíamos ter feito outra coisa. Fizemos o que pensamos que podíamos fazer. Umas vezes erramos e noutras acertamos. 5. O aprendizado Entre as muitas coisas que temos aprendido está a riqueza da diversidade. A grande vantagem de ter entrado em contacto com a sociedade civil é ter entrado em contacto com muitos pensamentos e não um somente. E isso nos têm permitido construir o pensamento de que, diante da homogeneidade e da hegemonia, é preferível o respeito e a convivência com os diferentes. Outra coisa que temos aprendido é a valorizar e a respeitar, e a levar em conta, sempre, a nobreza da maioria das pessoas, que se tem entregado em diferentes ocasiões fundamentais para a vida do ezln e das comunidades indígenas sem pedir nada em troca, e não só isso, também pondo muito da sua parte, nalguns casos arriscando tudo para apoiar uma causa que consideram justa. O processo de encontro com ela, com a sociedade civil, o conversei em trechos de Um Treze avos da Estela de Chiapas, mas que pode ser resumido nisto: tem sido um encontro marcado pela nossa aprendizagem e a aprendizagem da sociedade civil para nos reconhecer um ao outro, e reconhecermos a nós mesmos. Ir construindo uma linguagem, uma ponte de comunicação, uma maneira de nós entender. 6. A palavra como arma e o silêncio como estratégia Damo-nos conta do valor da palavra, na realidade, até os diálogos de Catedral ou um pouco depois. Aí começamos a aventar muitas palavras, sobretudo através dos meios de comunicação, e logo vimos que produzia bons resultados. Viemos descobrir o silêncio mais adiante, na hora que descobrimos que o governo estava mais interessado em que falássemos, sem importar que xingássemos às mães, mas que falássemos alguma coisa porque pensava que assim sabia o que estávamos fazendo. E quando estamos em silêncio não sabe o que estamos fazendo. Um exército que tem usado a palavra de uma maneira tão fundamental como arma, quando cala, lhes desperta preocupação. Não saberia precisar quando mais o silêncio adquire peso... É definitivamente com Zedillo, lá pelo 1996-1997, quando se construiu, mas onde teve mais efeito foi em 1998, precisamente justo antes do segundo encontro com a sociedade civil, que se realizou em San Cristóbal de las Casas. 7. O caminho da palavra A Guerra, o Diálogo de San Cristóbal, a Convenção Nacional Democrática, a primeira Consulta Nacional pela Paz, o diálogo de San Andrés Sacamch´en dos Pobres, os Fóruns Especiais sobre Direitos e Cultura Indígenas e sobre a Reforma do Estado, os Encontros Continental e Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, a construção da Frente Zapatista de Libertação Nacional, a participação no nascimento do Congresso Nacional Indígena, a saída da Comandante Ramona à cidade de México, a marcha das 1111 bases de apoio zapatistas, a Consulta Nacional e Internacional pelo Reconhecimento dos Povos Indígenas, que incluiu o percurso de 5 mil zapatistas por todo o território nacional, a Marcha da Cor da Terra e, finalmente, a instalação das Assembleias de Bom Governo e o nascimento dos Caracóis, entre muitos outros eventos, chamados, saudações e convocatórias. Mesmo faltando algumas que não tiveram eco ou foram de menor repercussão, trata-se de iniciativas públicas, que têm como coluna vertebral ou são construídas com base no processo de organização dos povos zapatistas, no desenvolvimento da sua organização. Estamos falando duma organização que está de tal maneira fusionada com o seu povo, com a sua base de apoio, que dificilmente pode tirar uma iniciativa que seja distanciada, que não implique ou não tenha relação com essa base social. Então, digamos, nessa linha da palavra, nessa linha de fogo, o processo de construção e de avanço das formas de se organizarem as comunidades zapatistas, tem muito a ver com o reconhecimento do outro, neste caso da sociedade civil. Então, uma boa parte das iniciativas nomeadas, são as tentativas, terminadas ou não, com êxito ou sem êxito, com as quais as comunidades do ezln tentam construir a comunicação e o diálogo de ida e volta com uns e com outros. Na construção dessa intercomunicação, nesse saber como é o outro e mostrarmos como nós somos., ao mesmo tempo, o EZLN - junto com as comunidades - está construindo a legitimidade do seu movimento, explicando as suas causas, as condições que o originaram, suas formas de organização, e convidando a cada um não a que nos siga senão para que siga o seu próprio caminho, que, como dizem, se estão de acordo dois (ou vários) que vão ser o que sejam. Às vezes a intercomunicação com a sociedade se produz entre sectores, dada a raiz indígena do ezln, muito acentuada com os povos indígenas. Também, produto do impacto que teve o ezln e a repercussão e apoio internacional que recebeu, é posto especial acento à intercomunicação com pessoas e movimentos em nível internacional. Mais em geral, com a sociedade civil - assim sem definir uma classe ou um sector social específico. Sempre dando-lhe preferência à intercomunicação com indígenas, com as mulheres e com os jovens. Até então, a estratégia, até onde pode ser dito, é construir a legitimidade de um movimento, conhecer o outro, conhecer o seu médio, conhecer a situação em nível nacional e internacional. 8. Balanço do diálogo de San Cristóbal de las Casas e Carlos Salinas de Gortari Carlos Salinas de Gortari é um ladrão cínico, é o que o define então e hoje. O primeiro diálogo com o seu governo em San Cristóbal, nos serviu como meio para olhar para outro lado. Nesse momento começou a estratégia do EZLN de virar a mesa, quer dizer, terminar com o esquema de janelinha nos diálogos governamentais e aproveitar esses espaços para dialogar com os outros, com as pessoas, com a sociedade civil como nós falamos. No caso do diálogo da Catedral em San Cristóbal de las Casas, como não tínhamos a maneira e nós não imaginávamos como íamos fazer para dialogar com a sociedade civil, então o diálogo se produziu sobretudo com os meios de comunicação, esperando que as pessoas, a sociedade civil, fica-se sabendo através deles, do que queríamos dizer: isto sou, isto é o que quero e isto é o que fui, para dizer isso serviu o diálogo de Catedral. Foi um diálogo que serviu-nos bastante; foi muito desgaste porque foi muito intenso. Muito trabalho em poucos dias e à distância pensamos que o final foi bom, porque como resultado desse diálogo mais gente nos conheceu, mais gente ficou bem esclarecida. Essas eram as nossas intenções e os nossos propósitos e foi o ponto de partida para que o ezln construísse a legitimidade que tem hoje. 9. Diálogos de San Andrés e Ernesto Zedillo Ponce de León Zedillo é um criminoso que, fora isso, é economista ou pretende sê- lo. O balanço do diálogo de San Andrés, com o seu governo, é muito positivo para nós, porque permitiu estruturar melhor o que tentávamos em San Cristóbal. Conseguimos que na mesa se sentaram todos os que chegamos a convidar e representou, nesse sentido, sem levar em conta ainda os acordos, uma experiência que ainda não tem sido valorizada nem no México nem no mundo. Uma experiência de diálogo, de encontro duma força que não pretende a exclusividade numa mesa na qual está sendo respondida a sua demanda, senão que convida todos. Isto já se tem escrito nalguns lugares. O principal aporte de San Andrés é a maneira em que se constrói o diálogo entre o governo e o EZLN. Mas, alem disso, da parte do EZLN abre-se a porta para outros lados, inclusive para organizações e colocações muito críticas ou até rivais do EZLN. No que refere-se aos acordos alcançados sobre Direitos e Cultura Indígenas, significavam a concretização do ponto fundamental que o levantamento de janeiro de 1994 introduziu na agenda nacional, isto é, a situação dos povos indígenas do México. Significaram a possibilidade de incorporar não somente as experiências dos zapatistas, senão também de povos de todas partes do México, e sintetizá-las na demanda do reconhecimento constitucional dos seus direitos. Precisamente pela maneira em que se construiu esse processo de diálogo, por como haviam-se construído os resultados, o cumprimento dos Acordos de San Andrés significava nem mais nem menos do que a saída do ezln à vida pública. Por tudo isso, como se vê depois, a classe política aliou-se para impedir o reconhecimento dos povos indígenas, dos seus direitos, e para impedir o trabalho do EZLN na arena civil e política. 10. Vicente Fox, o fracasso da classe política Em relação a Vicente Fox: sendo sintético diria apenas que o processo de negociação foi um fracasso por toda a classe política, não só por Vicente Fox, senão por todos os poderes da nação, por todos os partidos políticos, por toda a classe política, esse processo fracassou. Se tivesse triunfado não somente teria sido exemplar para México, senão para o mundo. Teria marcado uma ruptura e um precedente para orientar processos de diálogo e negociação no mundo inteiro. Mas, em lugar disso eles preferiram fechar-se no seu quarto para contagem do dinheiro que desfrutam, em vez de resolver o problema e marcar um precedente para conflitos internacionais. 11.O EZLN e a luta indígena Há que se levar em conta que alguns sectores têm dito que o EZLN pega a luta indígena depois do levantamento, já avançado o movimento. Segundo esta versão, de maneira oportunista, diz por exemplo a Assembleia Nacional Indígena Plural pela Autonomia (ANIPA), quando o EZLN se percebe de que o tema indígena está na moda, começa a rumar o seu discurso para esse ramo. A acusação é ridícula, como tudo o que faz ANIPA. Se a gente leva em conta o acto fundamental do 1º de janeiro de 1994, no discurso da Primeira Declaração da Selva Lacandona é explicado quem somos, e se diz: "somos produto de 500 anos de lutas e etc.", e não existe nenhum grupo social que possa dizer isso no México mais do que o indígena: nem operários, nem camponeses, nem intelectuais podem dizer isso de estar 500 anos... A outra razão que há que levar em conta é que num exército que se apresenta como o EZLN, onde há dois ou três mestiços e milhares de indígenas, não acredito que seja necessário dizer que é importante a questão indígena. Depois, quando o EZLN abre à imprensa as suas fronteiras, para chamá-las de alguma maneira, permite-se o acesso da imprensa às comunidades indígenas e falam com as pessoas, tudo isto no momento em que estão desenvolvendo os combates. Isto é muito mais eloquente que qualquer declaração dessas que fazem os dirigentes da ANIPA e os seus assessores. Somente os que disputam-se o osso de representar aos indígenas pelo simples interesse económico ou quota de poder, os que chamam-se os indígenas profissionais, os que vivem de aparentar ou fingir que são indígenas, podem disputar-lhe isto ao EZLN. Sobretudo levando em conta que o EZLN jamais se tem apresentado como o representante, o líder ou o condutor de todos os povos indígenas do México. O EZLN sempre tem afirmado que somente fala pelos povos indígenas que estão organizados dentro do EZLN, de fato, no sudeste mexicano. Bom, além do mais, esse assinalamento crítico ou calúnia que circula nalguns sectores, sempre se faz pelas nossas costas, nunca na nossa frente, porque sabem que não o podem defender. Seguindo a história, nossa história, quando estão sendo discutidas as leis revolucionárias em 1993, no que já estava-se formando com o nome de Comité Clandestino Revolucionário Indígena, isto é, os chefes dos vários povos indígenas - tzeltal, tzotzil, tojolabal, chol, zoque e mam -, discutiu-se se seriam destacadas algumas demandas indígenas do EZLN no momento do levantamento, e a parte que argumentou melhor e que ganhou foi a que dizia que tinha que ser dado um carácter nacional, de tal maneira que não se identificara o movimento com aspirações regionais ou "étnicas", porque se dizia que o perigo é que a nossa guerra fosse vista como uma guerra de indígenas contra mestiços, e que era um perigo que tinha que ser evitado. Parece-me que a decisão foi acertada, que a Primeira Declaração da Selva Lacandona é contundente e é clara, que a definição mais clara da questão indígena segundo foi avançando o movimento já depois de se fazer público, já depois do início da guerra, foi também acertada e foi modesta. Em nenhum momento se pretendeu encabeçar nem falar em nome de todos os povos indígenas do México. Então não sei porque colocam isso - se por si mesmo lhes dão o osso, de todas maneiras acomodam-se. Hoje, o ezln já de maneira pública não se apresenta nem se concebe a si mesmo como o divisor de águas da luta indígena. Nós nos apresentamos, como afirma a Primeira Declaração, como parte dum processo de luta que vem de muitos anos e que está em muitos lugares. No caso do México, a luta indígena não começa em 1994 nem começa em Chiapas, existem antes de janeiro de 1994 muitas lutas de resistência, de experiências valiosas em muitas partes do México, com outros povos indígenas em diferentes regiões do pais. E o ezln sempre o tem dito. A mesa de San Andrés, a Mesa Um que refere-se a Direitos e Cultura Indígenas não representou ao EZLN. Se tivéssemos pensado que nós éramos os dirigentes do movimento indígena nacional, teríamos entrado somente nós. Convidamos às organizações, grupos, intelectuais, todos os que têm trabalhado e que sabem quais são as demandas dos povos indígenas, que são diferenciadas mas que se agrupam de maneira geral nisto que se tem definido como autonomia. Isto era importante remarcá-lo desde o começo porque no início do movimento, nos primeiros messes, a classe política e muitos meios de comunicação afirmam que o problema principal, que o fundamento da questão indígena no México, é um problema de assistencialismo. Isto é, os indígenas são pobres e há que lhes dar esmola, neste caso, mais esmola, mais lástima. Marcos continua falando para o gravador. De pronto começam-se a escutar, ao longe, trovoadas de foguetes festivos. O subcomandante explica diante do microfone: "Isso que está troando agora é que estão dando O Grito as Assembleias de Bom Governo. É a madrugada do 16 de setembro, estamos comemorando a Independência do México. Bom, eu não porque estou num canto, mas lá está a Junta de Bom Governo" O sub tenta continuar a sua gravação mas o ruído dos foguetes volta a interromper. "Continua os foguetes, mas é pela comemoração da independência do México da Espanha, mas já...", desculpa-se. Bom, num começo se coloca o problema indígena como um problema de pobreza material e não como o tinham colocado não só o EZLN, senão, muito antes, outros povos e organizações indígenas no resto do país, os quais o definiram como algo mais complexo que implicava questões culturais, de autogoverno, de autonomia e não simplesmente a falta de uma esmola mais substanciosa. No começo boa parte da opinião pública nacional e internacional vê o problema como de "coitados indígenas, há que ajudá-los um pouco, para que tenham boa moradia e para se eduquem", pensando que a educação é a maneira pela qual o indígena deixa de ser indígena, apreende espanhol, esquece a sua língua, se mestiça ou se ladiniza, como antes se dizia, e isso significa que já melhorou, o momento em que deixou de ser indígena. Então, vamos dizer, essa é uma primeira etapa da luta indígena. É sabido que no México e no mundo as condições de vida dos indígenas são um desastre, são pré-históricas. E compara-se a sua situação com o projecto de Salinas de Gortari, um projeto de ingresso ao primeiro mundo, o de um pais capaz de lhe dar fôlego à globalização. Mas, é evidente, o problema indígena não estava sozinho nessa comparação. Na segunda etapa, que é próxima dos diálogos de San Andrés, podem-se agrupar todas estas experiências e demandas que existem no momento em que o ezln renuncia explicitamente - e o cumpre - ao papel de vanguarda ou de encabeçar esse movimento indígena muito rico e muito diversificado. As pessoas então se dão conta que o problema indígena não é somente um problema económico, é também cultural, político e social. E começam a serem colocadas as experiências que existem em outros lugares, começam a dar-se a conhecer e articular-se no que são os Acordos de San Andrés, onde já são incluídas demandas de autonomia, de autogoverno, culturais. Isto é o que vai ser articulado a seguir nos municípios autónomos zapatistas e nas Assembleias de Bom Governo, não só como produto da experiência zapatista senão que, agora, recolhendo tudo o que tínhamos aprendido do nosso contacto com o movimento indígena nacional, e nalguns casos com o movimento internacional. Nesta segunda etapa, o movimento indígena constrói no México, junto com o EZLN - não dirigido por ele -, essa espécie de ponte ou de causa comum que unifica a todos, que seriam os Acordos de San Andrés, o reconhecimento constitucional dos povos indígenas para governar e se governar e dizer um monte de coisas. Porque no momento em que se colocam as coisas somente em nível assistencialista, é onde o pri, o pan e o prd, vêm uma brecha: bom - dizem - se trata-se de dar mais dinheiro tudo bem, nós quedamo-nos com uma parte e lhes damos outra, assim compramos votos, etc. Mas no momento em que se colocam as demandas dos povos indígenas sobre a organização política e formas de governo, os partidos políticos não estão de acordo. Como o provaram no Congresso da União e hoje nas suas campanhas. Então, pois, na segunda etapa começa-se a construir um consenso sobre as demandas indígenas. Na terceira etapa, que vai da assinatura dos Acordos de San Andrés até a Marcha da Cor da Terra, começam a se generalizar estas demandas, a difundir-se ao interior do movimento indígena nacional e também para o exterior, à sociedade civil, aos meios de comunicação, através de outras organizações sociais. Essa terceira etapa termina quando o Congresso da União legisla contra esses direitos com o apoio do Executivo, e depois essa decisão é avalizada pela Suprema Corte de Justiça da Nação. Nesse momento termina essa etapa e começa a etapa na qual estamos. Em resumo: na primeira etapa se coloca a necessidade de alguns direitos; noutra etapa demanda-se o cumprimento desses direitos e na última etapa são exercidos esses direitos, é nessa que estamos hoje. 12. A classe política O EZLN sai à luz pública e, deslumbrado por essa saída, começa a tentear e a reconhecer o terreno de quem é quem realmente. Não só respeito à classe política, mas também respeito à classe política, o ezln estava aprendendo. Uma organização que dá tanto valor à palavra, da por certo que do outro lado ocorre a mesma coisa e tardamos um tempo para entender que não, que precisamente para a classe política a palavra não tem absolutamente nenhum valor. Mas até nós aprender isso passaram-se várias luas, como diz um compa. Então, aí nós fomos tenteando, fomos falando com vários sectores e o primeiro que aprendemos deste período foi que para o político a palavra não tem nenhum valor. O segundo que aprendemos é que não existem princípios, já não digamos morais, não existe nenhum princípio político que mantenham. Um dia dizem uma coisa e depois outra. Inclusive vêm com maus olhos quem faz o contrário. Refiro-me em geral a toda a classe política sem importar a qual partido político pertença. A diferença entre uns e outros pode ser que existem alguns honestos, isto é, que não roubam. Não me refiro a serem consequentes, que seriam os menos. O que os faz políticos, esse desprezo pela palavra comprometida, essa falta de princípios e de horizonte político é em geral para todos, não faria nenhuma distinção. São a mesma coisa enquanto a que não existem princípios nem têm moral. Podem ser um dia de direita se por aí vai o ´rating´ ou ser de esquerda se mudou o ´rating´, ou podem ser de centro. Por isso a procura do centro, porque assim é mais fácil deslocar-se de um extremo ao outro. Porém que existem partidos que fazem isso com grande versatilidade. Tudo isso o fomos aprendendo pouco a pouco. Todavia com a amargura de saber o que estávamos enfrentando, tentamos com a Marcha da Cor da Terra de obrigá-los de alguma maneira a que tomaram juízo ou que se perceberam, já não enfrentados com o ezln senão com todos os povos indígenas e com uma mobilização nacional e internacional como foi a Marcha da Cor da Terra. Mesmo assim se comportaram como políticos. O principal aprendizado nesta década é que com a classe política mexicana não há o que se fazer, definitivamente, já nem se rir, pois. 13. As mudanças entre o México de 1994 e o de hoje Existe uma diferença fundamental entre o México de hoje, 2003, e o de 1994. Já houve o início de uma guerra e começaram a acontecer coisas a partir de janeiro de 1994, coisas que não tinham acontecido em muito tempo na história do México moderno: o assassinato do candidato presidencial do partido no poder, o assassinato do secretário do partido que está no poder, os ajustes internos disfarçados de litígios judiciais e de acusações, a derrota do PRI após tantos anos. Tudo isso dentro da classe política. Por outro lado, ao mesmo tempo, as pessoas também enfrentam um processo. Hoje as pessoas são mais críticas, estão mais dispostas do que anos atrás, a participar e a mobilizar-se. Mas, graças ao trabalho corrosivo da classe política, hoje as pessoas são também mais cépticas, mas esse cepticismo não é como antigamente, em que diziam "sempre ganha o PRI". Hoje existe algo de rancor e de coragem na maioria das pessoas contra a classe política. E o que está acontecendo é que os meios de comunicação (a maioria deles) está abraçando à classe política, sem perceber que o voo é de queda não de elevação. Sem perceber que o descrédito, a falta de credibilidade, de interesse, e o rancor que está acumulando a classe política, o estão acumulando também os meios de comunicação que, entusiasmados na sua nova tarefa de Ministério Público, esquecem que quem estão levando do braço é alguém ilegítimo. A legalidade não tem nenhuma sustentação se lhe faltar legitimidade. A mudança fundamental a temos visto nas pessoas. Enquanto ao sistema político, a alternância é uma mudança mas não significa de nenhuma maneira democracia, e as últimas eleições o provaram porque o cidadão esteve ausente. O modelo económico que o PRI tinha em 1994 não somente continua, senão que se tem aprofundado. Aí é que está o ataque aos fundamentos da soberania nacional. No social acelera-se o processo de desagregação, precisamente com políticas económicas que destruem o tecido social. Aí está o cinismo da classe política que não tem nenhuma alternativa real para a maioria da gente. Em resumo, tanto no político quanto no económico e social, México está numa crise mais profunda que a que tinha em 1994. 14. O mundo entre 1994 e 2003 O mundo que encontramos em janeiro de 1994 sim já tínhamos pensado ou adivinhado como ia ser. Já se tinha dado a queda do campo socialista e a luta armada na América Latina não era muito popular, nem se diga em outras partes do mundo. Isso já o esperávamos. Mas o avanço que tinha tido o neoliberalismo e a globalização em todo o mundo resultou uma surpresa, porque então detectamos não somente que havia avançado o processo de destruição e reconstrução que temos mencionado em alguns dos textos, senão que também havia avançado o nascimento e a manutenção de formas de resistência e de luta em todo o mundo. As internacionais socialistas ou comunistas, ou essas redes internacionais mútuas para se opor ao capitalismo, tinham desaparecido, mas haviam surgido focos de resistência em vários lugares e estavam-se multiplicando. A isso deve-se que o levantamento tenha tido receptividade numa parte importante da comunidade internacional, em gente organizada ou com vontade de se organizar. E refiro-me a algo além do sentimento de lástima ou de comoção, legítima, certamente, de emoção diante do que significava o levantamento do EZLN e, através dele, poder conhecer as condições indignas nas que viviam os povos indígenas antes desse 1º de janeiro de 1994. Isso foi para muita gente; para outros, além disso, significou uma escolha política séria. Esse mundo que encontramos em 1994, se bem que o imaginávamos, não alcançávamos a entendê-lo, e por isso não alcançamos a entender a receptividade que teve em muitos grupos, sobretudo em grupos de jovens de todas as tendências e concepções políticas. Não alcançávamos a entender por que o movimento zapatista provocou esta simpatia e que se criaram comités de solidariedade praticamente nos cinco continentes. O mundo que existe hoje, dez anos depois, está mais polarizado. É o que nós previmos, que a globalização não estava produzindo a aldeia global senão um arquipélago mundial que está se agudizando, e não somente enquanto aos interesses económicos, políticos e sociais de esta grande sociedade, do poder em geral, como nós dizemos, de este reparto, conquista e destruição do mundo, senão também enquanto no que refere-se à resistência, à rebeldia que está crescendo de maneira autónoma, independente, não como linha de consequência, não como uma resistência que pode ser levada a todas partes do mundo, senão que está adquirindo a sua maneira em cada local. 15. O movimento antiglobalização. Não fomos os primeiros O movimento antiglobalização ou, como hoje se diz, alterglobalização - porque não se trata de opor-se a que o mundo seja mundo, senão de criar um outro mundo, como se diz por ai - não pensamos que seja um movimento linear, com antecedentes e consequentes, nem que tenha que ver com situações geográficas e de calendário, de datas, de dizer que primeiro foi Chiapas, depois Seattle e depois Génova e hoje Cancún. Não é que um preceda ao outro e o herde. Nós concebemos nosso movimento, e o declaramos em 1994 para meios internacionais, como um sintoma de algo que estava acontecendo ou que estava para acontecer. Utilizamos então a metáfora do iceberg, somos, dissemos, a ponta do iceberg que está assomando e daqui a pouco vão assomar pontas por outros lados, de algo que está embaixo, que está-se gerando e que está a ponto de explodir, dissemos então. Nesse sentido, Chiapas não precede Seattle enquanto que o anuncie ou Seattle seja a continuação. Seattle é uma outra manifestação dessa rebeldia mundial que se está gerando fora dos partidos políticos, fora dos canais tradicionais do trabalho político. E assim cada uma das manifestações, e não me refiro às que seguiram à Organização Mundial do Comércio e que têm-se convertido no seu pesadelo mais quotidiana, senão a outros tipos de manifestações ou mobilizações ou movimentos mais duradouros contra dessa globalização da morte e da destruição. Somos mais modestos enquanto ao nosso lugar. Somos um sintoma y pensamos que nosso dever é nos manter o mais possível como apoio e referente, mas não como um modelo para ser seguido. Por isso nunca temos disputado, nem o faremos, dizer que o começo foi Chiapas e os Encontros Continental e Intercontinental. A rebeldia que existe em Chiapas se chama zapatista, mas em Seattle se chama de uma outra maneira, na União Europeia de uma forma e na Ásia de outra, em Oceânia, de outra. Inclusive dentro do México, em outras partes a rebeldia se chama de outra maneira. Nós vemos muito positivamente esse movimento alterglobalizador, no sentido que não repete o modelo vertical de tomada de decisões, de cima para abaixo, e isto lhe ajuda para que não tenha um comando central, órgãos de direção ou algo assim. E que o movimento tenha sabido respeitar as diferentes maneiras que manifestam-se no seu interior, os pensamentos, as correntes, os modos, os interesses e a forma em que são tomadas as suas decisões. Pelo pouco que sei de Cancún até hoje, pelo que aparece na imprensa, particularmente no jornal A Jornada, vê-se que esta dinâmica se mantém e que continua sendo um movimento plural, não muito numeroso, mas entende-se porque se deslocam de todas partes do mundo. Não é a mesma coisa se mobilizar cá, em Chiapas, em solidariedade a alguém que está muito próximo, do que mobilizar-se por alguém que está na Coreia do Sul, para falar do exemplo que hoje está mais cadente. Mas continua existindo esta pluralidade de interesses, esta diversidade e esta riqueza, e também essas formas de luta e de se manifestar. Neste sentido vemos que o movimento antiglobalização ou alterglobalização continua sendo rico em experiências, ainda tem muito que aportar e pensamos que vai dar muito, sempre e quando não caia na tentação das estruturas e das passarelas. Quer dizer, o risco que sempre existe é de que um movimento se converta numa passarela de personalidades, sem que essas personalidade tenham apoio de mobilizações nos seus locais. Nós pensamos que esse movimento está-se traduzindo não somente na crítica ao modelo que, neste caso, representa a OMC, senão que, em muitos aspectos, estão sendo construídas alternativas não no papel, senão em formas de organização social em diversos lugares, onde pode se dizer que existem embriões desse outro mundo possível. Afirma-se que diversos movimentos tanto do México quanto de outras partes do mundo, têm visto no zapatismo um exemplo de luta e, inclusive, de que alguns têm retomado seus princípios para a construção das suas próprias resistências. Nós lhes dizemos: aos que seguem o exemplo para não seguí-lo. Pensamos que cada quem tem que construir a sua própria experiência e não repetir modelos. Nesse sentido, o que lhes oferece o zapatismo é um espelho, mas um espelho não é você, em todo caso te ajuda apenas para ver como te vês, para te penteares desta maneira, para te arrumar. Então, lhes dizemos que vejam em nossos erros e acertos, se é que existem, as coisas que lhes possam servir para construir os seus próprios processos, mas não se trata de exportar o zapatismo ou de importá-lo. Pensamos que as pessoas têm a coragem suficiente e a sabedoria para construir o seu próprio processo e o seu próprio movimento, porque têm a sua própria história. Isso não somente há que saudá-lo, senão que há que propiciá-lo. 16. Os desafios, os erros, as escolhas; o que continua? Ou seja que querem o programa de acção... Mhhhm... Primeiro tem que ser esclarecido que não todas as convocatórias nem iniciativas zapatistas tiveram resposta significativa da sociedade civil nacional e internacional. Nós pensamos que quando isto tem acontecido a culpa não foi das pessoas, senão de erros, neste caso meus, porque é o meu trabalho, porque cá no EZLN os erros conjugam- se em primeira pessoa do singular e os acertos na terceira pessoa do plural. Por nomear duas dessas convocatórias zapatistas que não tiveram resposta significativa, estão, por uma parte, a de "Uma oportunidade à palavra", referente à problemática do Pais Vasco, que era também com o que ia ser aberta a incursão do ezln na Europa; e a outra refere-se ao momento em que difundia-se nos meios a guerra dos Estados Unidos contra o Iraque. Nesse contexto nós fizemos um chamado para assinar um manifesto que elaborou um grupo de intelectuais. Chamamos às pessoas para organizar mesas, discussões, mas não teve eco. Nessas duas convocatórias não houve resposta significativa, pelo menos nessas duas, mas pode ter mais por ai. Isto para dizer que não tenho acertado a tudo, porque os erros são na primeira pessoa do singular. Mas na realidade este apartado está interrogando sobre o que continua, e o objectivo do ezln hoje não é outro que consolidar esse exercer os direitos das comunidades, porque, como explicava no começo, o eixo fundamental ou a coluna vertebral destes dois braços ou linhas de ação, a do fogo e a da palavra, é o eixo da organização política e o desenvolvimento dessa organização política, social e cultural que existe nas comunidades. E hoje trata-se das Assembleias de Bom Governo e os municípios autónomos. Ai existe um pacote. Como se queira a aposta está definida com clareza nos discursos do Comando o dia 9 de agosto, o dia em que morrem os Águas-quentes e nascem os Caracóis. Existem apostas no internacional. Existe uma aposta muito clara no nacional, que tenta generalizar estas formas de autogoverno ou de autogestão (que cá são possíveis de uma determinada maneira) em outros locais. Do governo e da classe política não vale a pena ocupar-se muito, tendo em vista que tampouco ocupam-se da gente. Então não há que se desvelar muito nesse aspecto. 17. Os povos zapatistas, a resistência Em grandes linhas, isso que seria a coluna vertebral do movimento zapatista, o que refere-se ao processo de organização dos povos, poderia ser agrupado desta maneira: Temos que nos remontar ao momento em que os povos organizam-se numa organização política e militar e o que implica isso, sempre em coletivo. Neste caso, passando do núcleo familiar ao da comunidade. Depois da comunidade à região com diversas comunidades, e depois da região à área com diversas regiões, depois da área a todo o EZLN, aos diversos povos indígenas que se agrupam. Já depois do levantamento, devido ao contacto que se tem com a sociedade civil nacional e acentuadamente com a sociedade civil internacional, os povos enriquecem a sua experiência cultural, o seu horizonte, como nós dizemos, e podem enfrentar mais comodamente, já afastados da tentação do fundamentalismo étnico - esse que é tão querido pela ANIPA - um processo de autogoverno, nada mais que ele fica um pouco retido porque faz parte das demandas nacionais. Digamos que começam a serem construídas as formas mais avançadas de autogestão e de autogoverno, que já funcionavam em nível comunitário inclusive antes de que o EZLN chegara em Chiapas, mas logo avançam para um estágio mais desenvolvido, ao dos municípios autónomos, em torno de 1995 e 1996, mas este avanço dá-se de maneira irregular. Alguns municípios têm mais experiência nesse processo de autogoverno, o constróem e é produto da sua própria luta e do seu próprio desenvolvimento, e é ai onde puxam ao EZLN para que aprenda e fosse adequando-se. Noutros locais não ocorre dessa maneira, são lugares nos quais supõe-se que existiam municípios autónomos mas não funcionavam realmente. Noutros locais sim desenvolviam-se como um governo, e com a característica de que mandam obedecendo, com mudança de funcionários, remoção, sanções pela corrupção, etc. Tudo isto, em nosso caso, nas comunidades zapatistas, não é palavra ou promessa ou utopia, senão que é uma realidade, e tampouco é aporte nosso, é aporte das comunidades desde antes de que nós chegáramos. Isto vai se desenvolvendo mais cada vez mas de maneira desigual. Nos últimos dois anos, depois de que o Congresso da União e de que o Executivo federal traíram a mobilização nacional e internacional em favor dos direitos e cultura indígena, começa-se a tentar de igualar o desenvolvimento dos municípios autónomos, começam-se a consolidar os que já o estão, a desenvolver-se os que vão um pouco atrasados, e a partir da declaração da Suprema Corte de Justiça que cancelava este reconhecimento, começam-se a encaminhar para essa nova etapa que chamamos as Assembleias de Bom Governo, que são relações entre municípios autónomos para resolver problemas que foram sendo detectados ao longo da sua existência. Como eu dizia nas Estelas - remito vocês para elas -, particularmente no Um Treze avos da Estela, tudo isto se produz num processo de guerra, de perseguição, e de ataques de paramilitares, de campanhas contra muito fortes nos meios, de doenças, de desastres naturais, e tudo obstáculo que se possa imaginar. Tudo isto enfrentaram os povos zapatistas, e ainda assim, constróem essa alternativa de bom governo que são as Assembleias, porém que falta ver se o cumprem, como dizemos nós. Eles se têm organizado de maneira coletiva. Isto é fácil de dizer mas difícil de entender e mais ainda de fazer. Nisso o que ajuda muito é a experiência ancestral, agora sim que vem de séculos, das comunidades, primeiro para desenvolver-se dentro das suas culturas e depois para sobreviver às numerosas tentativas de aniquilamento e de etnocídio que têm sofrido ao longo da história, desde o descobrimento da América até os dias atuais. Essa maneira coletiva que lhes permitiu desenvolver-se cultural, social e economicamente, depois sobreviver à Conquista, à Colonização, ao México independente e ao México moderno, é o que depois lhes permite construir a resistência à maneira das comunidades. O aspecto fundamental dessa resistência é que é possível porque é coletiva, e ademais tem a vantagem de que graças a esta intercomunicação que construiu o zapatismo com a sociedade civil nacional e internacional, a resistência começou a gerar a possibilidade de construir uma alternativa, e não somente tratava-se de resistir até que um dia foram cumpridos os acordos, senão que paralelamente a isso resistir, ir construindo os meios de cumprimento ou de exercício desses direitos que estavam sendo demandados. O que faz que os zapatistas não se rendam aos diversos governos, aos oferecimentos, é a experiência, a história e a consciência dessa história. Tudo o que tem acontecido antes, as palavras, as promessas e o que acontece depois dessas promessas, nos faz acreditar firmemente, sempre, que estão tentando nos enganar. Em consequência disso não estamos pedindo dêem para nós, senão que nos deixem fazer sem que deixemos de ser o que somos, indígenas e mexicanos. O mesmo coletivo, o trabalho político, o controle que se faz, o desenvolvimento das formas de comunicação que temos ao interior de nossas comunidades, faz que seja possível que a comunidade abrigue a todos e cada um dos seus membros, que por vontade própria decidem se manter na resistência. Fizemos uma pesquisa, e os povos priístas não estão em melhores condições de vida do que as comunidades zapatistas, para pôr um exemplo. As comunidades rebeldes zapatistas, não todas, são as únicas que contam com o serviço de saúde gratuito. Não existe nenhuma comunidade fora das zapatistas e mesmo que não sejam todas, que possa dizer o mesmo. Em educação, a questão não é se pagam, senão se têm ou não, e as comunidades zapatistas, em média, têm mais centros educacionais do que as comunidades priístas. Isso no que refere-se a saúde e educação. A alimentação, essa sim é igual para um e outro. A ajuda que lhes da o governo aos priístas gastam em bebida não melhoram nada a sua alimentação nem a sua vestimenta. Enquanto ao problema da terra, esse é igual para todos, porém que o fato de que o zapatismo propicie, promova e alente a produção coletiva, tem permitido, um pouco, que a situação não se agudize tanto como nas comunidades priístas. Não estamos melhor que antes do levantamento. Além do mais, estas melhoras não são produto das esmolas ou de nos termos vendido, senão produto da organização interna das comunidades, da organização entre comunidades e do apoio heróico da sociedade civil nacional e internacional. Não é o que queremos, falta muito para conquistar o que queremos, mas estamos em melhores condições que antes do levantamento e, ademais, com a convicção de que a nossa pobreza e nossas carências têm rumo e tem fim, ou seja, têm uma esperança que as alimente. 18. As mulheres no EZLN Enquanto à luta das mulheres indígenas rebeldes, da sua tríplice marginalização pelo fato de serem mulheres, indígenas e pobres, as companheiras organizam-se em dois níveis. Historicamente, digamos que as mulheres das comunidades estavam mais marginalizadas, postas de lado, e no momento em que algumas jovens indígenas vão-se para a montanha e se desenvolvem mais, isso produz efeitos nas comunidades. Naquele então, as insurgentes estavam mais avançadas ou em melhores condições enquanto mulheres, do que as mulheres das comunidades.. Mas esse impacto que se produz nas comunidades começa a ter seu desenvolvimento. E hoje nas comunidades este processo de organização também tem avançado muito, porém que longe do que deveria ser. No que se alcança a ver assim, em grandes traços, um é que nos postos de direção, em áreas onde não existiam mulheres comités, comandantas, como na área tzeltal, de dois ou três anos para cá já há companheiras, porque as mulheres dos povos se organizaram para escolher as suas próprias representantes ou responsáveis, como nós dizemos. Isto acontece há muito na área tzotzil. Mas noutras partes, há dois ou três anos que começam a surgir mais mulheres. Pode-se detectar melhor no momento em que começou-se a generalizar o sistema educacional zapatista, no qual as mulheres, as meninas que em geral passavam-se na cozinha ou tomando conta dos irmãos pequenos, já concorrem à escola, porém que ainda não conseguimos generalizá-lo. Já não existe praticamente o casamento através da compra, ou seja, que casem uma companheira com alguém de quem não gosta. Pelo menos em comunidades zapatistas. Mas ainda continua existindo a violência familiar contra as mulheres, os ataques sexuais, porém que não existe essa figura nas legislações das comunidades. O que acontece é que ai não posso ser eu a dize-lo, senão que as mulheres dissessem os problemas que estão enfrentando. Enquanto EZLN nós pensamos que este movimento de libertação, de emancipação da mulher, tem muito a ver com as condições materiais, isto é, não pode ser independente e livre a mulher que depende economicamente do homem. Nesse sentido, o avanço das cooperativas indígenas de mulheres lhes permite a elas ter um ingresso e ter a independência económica, lhes permite fazer muitas coisas que antes não se podia. E isso se está tentando generalizar, porém não sempre em nível de cooperativa, mas trata-se de propiciar que as companheiras possam trabalhar ou obter uma renda que lhes permita mais independência, e que isso propicie outras coisas. Mas disso estamos muito longe ainda, porque tem muito a ver com as condições económicas das comunidades zapatistas. Nós vemos que existe maior participação de mulheres no CCRI. De três anos até a data, a porcentagem de comandantas cresceu até chegar a mais de um 30 porcento, e antes andava entre o 10 e o 15 porcento em todo o comité. Hoje sim existem comandantas de todos os povos indígenas e antes não era assim. Participam mais, têm as suas reuniões aparte. Eu percebo mais respeito de parte dos comandantes para com as comandantas, coisa que não acontecia, mas falta muito ainda. Esperamos algum dia poder contar boas novas respeito disso. 19. Os desafios das Assembleias de Bom Governo O principal desafio é o que temos enfrentado todos: o aprendizado. As assembleias de Bom Governo estão hoje nesse processo de aprendizagem, onde vão ter que delimitar bem as suas funções respeito dos municípios autónomos, porque nestes primeiros dias têm- se dado casos de invasão de funções. Está acontecendo que as Assembleias de Bom Governo começam a tomar decisões que correspondem ao município autónomo e, noutros casos, funções que sim lhes correspondem são delegadas para os municípios autónomos. Hoje estão no processo de assentamento, de definir o seu horizonte e o seu perímetro de ação com os municípios autónomos, com outros municípios que não são zapatistas e com outras Assembleias de Bom Governo. Então, estão-se organizando para esse aprendizado. Em cada lugar estão representantes de cada município autónomo, acompanhados duma delegação do CCRI de cada área que lhes explica e ajuda a explicar a cada pessoa que chega. O papel do CCRI é que tudo seja transparente para as comunidades, que saibam o que é que está sendo feito em cada momento, quanto dinheiro se está recebendo, para o que ele está sendo destinado, para que possa ser exercido esse mecanismo de vigilância que tem dado resultados ao longo de séculos, onde o coletivo fiscaliza para que o indivíduo não se corrompa, etc. O problema que está sendo encontrando hoje é que as pessoas que vêm falar com as Assembleias de Bom Governo pensam que elas são o EZLN, e lhes fazem perguntas que correspondem ao ezln e não sobre as formas de governo. E não há que esquecer que existem mais comunidades zapatistas do que as que estão organizadas em municípios autónomos e em Assembleias de Bom Governo. Existem comunidades indígenas que não têm alcançado a coesão, ou não alcançam ainda a tecer territorialmente a capacidade para serem um município autónomo, e muito menos para ter uma Assembleia de Bom Governo e, proporcionalmente, são maioria as que não têm representação autónoma num município ou numa Assembleia de Bom Governo. Então, pensar que o EZLN é mesma coisa que a Assembleia de Bom Governo ainda é não terminar de entender o que coloca o ezln e pelo tanto, demandar das Assembleias de Bom Governo posições, opiniões, funções que competem ao EZLN, à organização que une aos povos em resistência. Isso ainda é algo que tem que aprender a outra parte, a sociedade civil. Nós pensamos que tudo isto vai-se resolver com essa capacidade da qual falei ao começo, da que estamos orgulhosos os zapatistas, a capacidade de aprender. * Texto extraído de Livro recentemente publicado no México, DF Tradução: Juan Alberto Pezuto
https://www.alainet.org/fr/node/109517
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