Globalização solidária
15/02/2002
- Opinión
O primeiro Fórum Social Mundial de Porto Alegre representou a ruptura com a
tentativa de impor um ''pensamento único'' à humanidade. Abriu-se um espaço de
elaboração de alternativas, que rompia o esquema entre ''globalização e Estado
nacional''. Começava a definir-se ali um projeto de globalização alternativa,
solidária, para disputar hegemonia no plano internacional com o
neoliberalismo, que já demonstrava sinais de esgotamento.
O segundo Fórum representou a ruptura com a tentativa de encerrar as
alternativas da humanidade entre dois fundamentalismos belicistas - entre Bush
e Bin Laden -, deslocando o debate entre os adeptos e os críticos da ordem
econômica neoliberal. Refutando apressados editoriais que declaravam o fim dos
movimentos antiglobalização liberal, dando por estabelecida sua assimilação a
movimentos ''terroristas'', Porto Alegre testemunhou como a força do movimento
da globalização alternativa sobrepujou também esse obstáculo e demonstra um
vigor que revela que veio para ficar.
A presença de 80 mil pessoas de 150 países, seu pluralismo, a paz que reinou,
o clima de festa e congraçamento, a força e a diversidade das contribuições
teóricas e políticas já seriam suficientes para confirmar o sucesso de Porto
Alegre. Enquanto isso, em Nova York, o Fórum Econômico de Davos - tendo um
militar norte-americano, Colin Powell, como sua estrela - tentava acertar as
contas com seu filho legítimo, a desagregação da Argentina sob o impacto das
políticas pregadas pelas instituições patrocinadoras de Davos. Do lado de
fora, faziam a festa, acossados pela polícia, 30 mil manifestantes que
protestavam.
Antes de se iniciar oficialmente o Fórum, algumas definições feitas pelo
Conselho Internacional - composto por cerca de 60 redes de movimentos e
organizações e que assumiu a partir de agora a direção dos Foros - permitiram
esclarecer melhor a sua natureza. Foi aprovada a resolução de que anualmente
serão realizados Foros, o que significa defini-los como um processo de
elaboração de um projeto de mundo alternativo ao neoliberalismo. Em segundo
lugar, definiu-se que o Fórum será sempre denominado de Fórum de Porto Alegre
- como o Econômico é o Fórum de Davos -, mesmo quando se realize fora da
capital gaúcha, o que deverá acontecer em 2004, em alguma cidade da Índia. Em
2003, o terceiro Fórum Social Mundial se realizará de novo em Porto Alegre,
por decisão do Conselho Internacional, contradizendo a proposta original do
comitê organizador, composto majoritariamente por ONGs brasileiras, que
pretendia que não houvesse Fórum centralizado no ano que vem.
O principal evento interno do Fórum foi uma conferência denominada ''Um mundo
sem guerras é possível'', aberta pela mais importante palestra, a de Noam
Chomsky, cuja abrangência deu o marco geral em que se realizou o segundo Fórum
e que teve o seu centro na crítica dos projetos imperiais norte-americanos e
seu caráter belicista. Em seguida foram apresentadas propostas de paz para a
Palestina, para a Colômbia, para Chiapas e para o País Basco, por comitês de
paz desses países, presididas por prêmios Nobel da Paz - Rigoberta Menchu,
Adolfo Perez Esquivel e o diretor geral de Médicos sem Fronteira, que ao final
da conferência realizaram uma mesa-redonda sobre a paz e a guerra no mundo de
hoje.
Vinte e sete mesas-redondas compuseram a programação oficial, sobre os mais
diferentes aspectos do mundo contemporâneo - do comércio à identidade
cultural, da soberania à discriminação racial e de gênero -, num mosaico que
confirma que é em Porto Alegre - e não em Davos - que a humanidade discute
seus grandes problemas no novo século.
O primeiro Fórum tinha constatado um consenso básico entre todos os diversos e
múltiplos movimentos e organizações presentes - na condenação de um mundo em
que tudo se vende e tudo se compra, e na rejeição a que o mundo seja uma
mercadoria e esteja à venda. Sindicalistas, ecologistas, feministas, todos
enfim, encontram nessa rejeição o horizonte negativo para sua luta. O primeiro
Fórum afirmou que ''Um outro mundo é possível''. O atual começou a definir os
caminhos desse novo mundo e as formas de lutar por ele. Um balanço das
propostas e sua qualidade terá de esperar que os materiais sejam colocados à
disposição de todos - no site www.forumsocialmundial.org.br -, por sua
quantidade e diversidade. A partir desse acesso será possível realizar uma
fotografia do estado atual de elaboração de alternativas. Um seminário do
Conselho Internacional será realizado em abril, provavelmente em Barcelona,
para definir os rumos futuros dos Foros, incluído o formato do terceiro deles,
a ser inaugurado em 30 de janeiro em Porto Alegre.
De qualquer forma, se consolida o espaço do Fórum Social Mundial como o único
de transcendência internacional independente da influência determinante dos
Estados Unidos e voltado para a construção de um modelo alternativo de mundo -
solidário, humanista, internacional.
Mortos e mortos
Segundo levantamento realizado por um professor de economia da Universidade de
New Hampshire, nos EUA, 3.767 civis morreram pelos bombardeios norte-
americanos no Afeganistão - média de 62 por dia -, um número similar ou até
maior do que o dos mortos nos atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York
e Washington. Apesar das declarações de Donald Rumsfeld - ''Não posso imaginar
um conflito na história que tenha tido tão poucos efeitos colaterais...'' - e
da afirmação de um artigo do New York Times: ''O relativamente pequeno número
de vítimas civis ajudaram os EUA a manter o apoio dos nações islâmicas
amigas''. Enquanto esse jornal continua a publicar diariamente a biografia de
cada um dos mortos em Nova York e em Washington, com a menção ''vejam o que
foi perdido'',nenhuma publicação - norte-americana, afegã ou de qualquer outro
país - menciona sequer os nomes dos mortos no Afeganistão.
* Emir Sader é cientista político.
https://www.alainet.org/fr/node/105611?language=en
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