GM: desoneração e demissão

09/01/2014
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O caso atual de uma das unidades da multinacional General Motors, localizada em São José dos Campos (SP), é bastante emblemático da profunda desigualdade com que ainda são tratados os trabalhadores e o capital em nosso País. A decisão unilateral adotada por uma das gigantes do setor automotivo vai contra qualquer tipo de recomendação de política corporativa, em que alguma preocupação com a questão social esteja minimamente envolvida.
 
O assunto ganhou as páginas dos jornais a partir do final do ano passado, quando a empresa passou a distribuir cartas de demissão aos empregados daquela planta, em que comunicava o desligamento funcional de cada um dos destinatários.
 
Simples assim! Um absurdo, ainda mais pelo fato de estarem todos em férias coletivas até 20 de janeiro, conforme previsto em um telegrama enviado pela própria empresa aos funcionários.
 
Não bastasse esse tipo de postura autoritária e sem nenhum compromisso com aspectos básicos da boa regra de condutas sociais e trabalhistas, a GM já havia assinado um acordo com o Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos em janeiro de 2013. Naquele momento, de acordo com o documento, ela se comprometia a não efetuar nenhuma demissão. Pelo contrário, o texto previa a realização de investimentos da ordem de R$ 500 milhões naquela unidade fabril, indicando a continuidade da linha de produção. Algumas meses depois, em julho, outro acordo definia também um volume de investimentos em nova unidade na cidade, com valores de R$ 2,5 bilhões.
 
Um caminhão de benesses concedidas ao capital
 
O setor automotivo tem sido um dos maiores beneficiados pela política de isenção tributária e por outras medidas baseadas na concessão de estímulos à continuidade da atividade econômica. Desde a eclosão da crise financeira nos Estados Unidos em 2008 e o aprofundamento de suas consequências pelo resto do mundo, a opção do governo tem sido pelo estímulo ao consumo. Para tanto, foi implementada também a desoneração parcial dos veículos, por meio da isenção e redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), tributo arrecadado pela União.
 
O mínimo que se deveria esperar de tamanha facilidade oferecida às multinacionais do setor seria a cobrança de um conjunto de ações em contrapartida. Entre tantas medidas possíveis e necessárias, poderíamos citar: i) o compromisso de não demitir os trabalhadores por um período de tempo; ii) o estabelecimento de uma pauta voltada para o tema da sustentabilidade, por meio do desenvolvimento de combustíveis menos agressivos ao meio ambiente;  iii) uma agenda para facilitar a política de mobilidade urbana, perturbada pelo excesso de novos veículos em circulação nos grandes centros urbanos; iv) o compromisso em elevar o índice de nacionalização dos produtos, de forma a reduzir a dependência de peças e componentes importados; v) medidas para auxiliar na redução da elevada mortalidade nos acidentes com veículos, que superam os 40 mil óbitos anuais; vi) limitação na remessa de lucros para as matrizes no exterior e o compromisso de reinvestir no Brasil os lucros aqui auferidos.
 
Porém, como ocorre com boa parte das políticas públicas por essas terras, aqui parece também terem sido comandadas diretamente pelo quartel-general do capital. Assim pouco ou quase nada foi feito no sentido das exigências acima mencionadas. A impressão que se tem é que os governantes se dão por contentes e satisfeitos com simples anúncios de que houve aumento da produção e das vendas. Tanto por tão pouco! As perspectivas a médio e a longo prazos de um setor reconhecidamente problemático para o futuro da humanidade pouco importam. O compromisso das empresas em atingir as metas definidas como a contraparte social dos recursos orçamentários oferecidos é sutilmente esquecido.
 
Em poucas palavras, a empresa se beneficia da desoneração e provoca a demissão. Tudo na mais cruel lógica fria de maximização de seus resultados, os lucros a serem distribuídos aos acionistas privados. Obviamente, não transparece nenhuma preocupação com a “função social da propriedade”, tal como estabelece o inciso XXIII do artigo 5º da Constituição Federal.
 
Desonerações: IPI e muito mais
 
Por outro lado, é importante recordar que a isenção do IPI é apenas um dos inúmeros benefícios com que o Estado brasileiro auxilia a GM e as demais empresas oligopolistas do setor. Ainda que um conjunto expressivo de áreas e ramos da economia sejam igualmente abrangidos por facilidades realizadas com recursos públicos, o núcleo automobilístico está entre os primeiros da lista. Para isso, as empresas contam com a verdadeira armadilha criada pelo modelo de sociedade que por aqui se consolidou. Sucateamento da rede de transportes ferroviários e aquáticos, com a lógica irracional de deslocamento de pessoas e mercadorias em veículos particulares, caminhões e ônibus por um país de dimensões continentais. Insuficiência quantitativa e qualitativa das redes de transporte público de massa nas grandes cidades e regiões metropolitanas, com maior dependência do veículo individual e do ônibus. Finalmente, a grande chantagem implícita a cada momento de negociação de representantes do setor com autoridades de governo, em razão do peso econômico inegável do ramo na geração de empregos e na rede de outros setores envolvidos na área de autopeças, distribuição, serviços, etc.
 
Além do IPI, as montadoras conseguem obter renúncias fiscais significativas também nas relações estabelecidas com os demais níveis de governo da federação. Trata-se da chamada “guerra fiscal”, onde todos perdemos, com exceção da multinacional. Para decidir a respeito de qual município instalar a unidade industrial, o grupo exige da prefeitura facilidades como doação de terreno e isenção do pagamento de tributos municipais como o IPTU e o ISS, por exemplo.
 
Em nome do suposto “progresso” local e dos dividendos político-eleitorais de curto prazo, as bondades são efetuadas depois de muita briga fratricida entre cidades que competem pela vinda da empresa.
 
Em uma etapa anterior, a decisão estratégica do oligopólio estrangeiro também focou em fomentar a disputa entre os estados, promovendo um verdadeiro leilão entre as unidades federativas, para obter as melhores condições de instalação. Isso significa também compromisso do governo estadual em oferecer a rede de infraestrutura e logística, além de outras facilidades tributárias na esfera da cobrança do ICMS.
 
Governo deve agir: demissão não se justifica
 
Além disso, um conjunto importante de setores que operam em relação articulada com as montadoras foi também beneficiado com a desoneração da contribuição previdenciária patronal incidente sobre a folha de pagamentos. Esse é o caso das fábricas de autopeças, que podem oferecer às indústrias de veículos produtos intermediários a preços mais reduzidos. As grandes multinacionais só não optaram pela desoneração pois passariam a recolher mais tributos com a sistemática de substituição da base arrecadadora - alíquota de 1% ou 2% incidentes sobre o faturamento.
 
Como se viu, é bastante amplo o leque de benefícios fiscais e tributários oferecidos às empresas automobilísticas, em geral, e à GM, em especial. Vale lembrar também toda a linha de empréstimos oferecidos pelo BNDES a taxa de juros subsidiados, aos quais os grupos não hesitam a recorrer. Isso significa que parcela expressiva de nossa sociedade está abrindo mão de recursos orçamentários, que poderiam estar sendo dirigidos para programas governamentais em áreas como educação, saúde, seguridade social, entre outros. E a resposta oferecida pela GM, nesse caso específico, é a demissão dos trabalhadores, sem nenhum programa de reacomodação, sem cronogramas de negociação ou etapas previsíveis e acordadas com o governo, com o sindicato e com os próprios trabalhadores.
 
E o que mais causa estranheza é a “banalização da normalidade” nesse tipo de ação que atenta contra princípios básicos da ordem social. Já é mais do que passada a hora para que um governo dirigido por um partido que se diz representante dos trabalhadores sinalize alguma medida para barrar esse tipo de violência. Para tanto, basta recorrer aos instrumentos políticos e jurídicos existentes para impedir mais essa tentativa do capital em ignorar regras e direitos daqueles que dependem exclusivamente de sua própria força de trabalho para sobreviver.
 
Parece evidente que esse tipo de ação da GM representa uma nova modalidade de vandalismo, termo que passou a frequentar as páginas dos meios de comunicação durante o ano passado. Aliás, não seria a ação da empresa uma forma de expressar a tal “guerra psicológica”, a que a Presidenta Dilma se referiu em seu pronunciamento de final de ano?
 
Desoneração ou demissão? O governo deve estabelecer as regras e os limites. A sociedade quer saber de que lado ele está, em mais essa pendência entre capital e trabalho.
 
- Jaciara Itaim  é economista e militante por um mundo mais justo em termos sociais e econômicos.
 
 
https://www.alainet.org/es/node/82209
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