Espionagem
Estamos em guerra. A guerra quase silenciosa do século XXI
03/09/2013
- Opinión
A guerra cibernética já começou e para ela não estamos preparados, como não estávamos em 1914 nem em 1942. E desta guerra já somos alvo
Por que estamos em guerra? Porque esta é a principal característica da pax americana: Kosovo, Irã-Iraque, Iraque, Afeganistão, Líbano, Palestina, Líbia, Síria, Israel. Por enquanto, enquanto durarem os escudos chinês e russo, descansam os eurasianos. Mesmo assim, Rússia e China não estão livres da espionagem eletrônica. Neste ponto, fazem companhia a Brasil, México, Venezuela, Irã e Paquistão.
Mas a pergunta é esta: que faz o Brasil nesse rol, se não temos fronteira com os EUA, se não temos arsenal nuclear e não pretendemos fabricar a bomba, não abrigamos terroristas, não estamos em guerra interna e não alimentamos a esperança de superar economicamente o gigante imperial e com eles temos relações mais que amistosas? Contra o Brasil, o capricho da prepotência chegou ao gabinete da presidente Dilma, que teve telefonemas seus, e-mails e outras mensagens de texto rastreados pela Agência Nacional de Segurança, NSA, dos EUA. Contra nós foram assestados pelos menos três programas, capazes de acompanhar o tráfego de telefonia e dados. Para quê? Dizem os documentos até aqui revelados por Edward Snowden, ex-funcionário da NSA, que os objetivos da espionagem eram político-estratégicos e comerciais. De um lado pretendia ‘melhorar a compreensão dos métodos de comunicação e dos interlocutores da presidente e seus principais assessores’ e de outro, atendendo tanto aos interesses do Departamento de Estado quanto aos do Departamento de Comércio, antecipar para os negociadores dos EUA os estudos do Itamaraty, e fornecer aos seus empresários informações de seus concorrentes brasileiros em eventuais disputas comerciais.
Neste último caso agem aqui e em todo o mundo.
Assim é a guerra do III milênio: terrorismo de Estado e guerras assimétricas.
Não obstante seu declínio, que requer anos e anos para completar-se, aprofunda-se a hegemonia (militar, científica, ideológica) dos EUA e nada amaina sua agressividade. Nem a crise interna, nem o fracasso rotundo das incursões no Afeganistão e no Iraque. Ao contrário, coincidindo com a crise do capitalismo financeiro monopolista, que corrói a economia da União Europeia e determina a dilapidação de direitos sociais, previdenciários, salariais e trabalhistas em geral —, a política dos EUA (que independe dos Bushs e dos Obamas, como dos Nixons e dos Clintons) prima por iniciativas aventureiras, que vão desde intervenções militares e assassinatos ‘cirúrgicos’, à invasão dos sistemas internacional e nacionais de comunicação, desrespeitando a soberania de Estados, e destroçando a ordem jurídica internacional. A insânia, que só a impunidade pode explicar, chega ao ponto de interceptar, as comunicações de presidentes de países com os quais não têm, ou não tinham, qualquer sorte de beligerância.
Esta política, que associa intervencionismo e expansionismo sem reservas, desrespeito ao multilateralismo e aos organismos internacionais, que virtualmente decreta a inutilidade da ONU, se não pode ser contida, e não pode no horizonte a olho nu, começa a despertar mal-estar e indignação. Pelo menos entre os povos ofendidos. Embora os europeus tenham sido bastante ‘compreensivos’ ante a espionagem eletrônica, da qual muitos deles, aliás, são sócios. Encolheram as unhas.
A direita alemã, leia-se Angela Merkel, acossada pela opinião pública em ano eleitoral, calou-se sobre intervenção. O agravamento da crise francesa silenciou o boquirrotismo do presidente Hollande. Barack Obama, para acalmar a opinião pública interna, que ainda não esqueceu seus mortos no Vietnã e tem presentes os fracassos das incursões ‘cirúrgicas’ no Iraque e no Afeganistão, garante que usará apenas mísseis de longo alcance e jamais tropas do exército, tropas de ocupação. Ou seja, promete matar sem que seus soldados entrem em combate.
O fato objetivo é que a guerra já começou e que para ela não estamos preparados, como não estávamos nem 1914 nem em 1942. E desta guerra já somos alvo, e dessa condição temos ciência desde pelo menos 2001, segundo depoimento do general Alberto Cardoso, na qualidade de ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência no governo FHC. O então responsável pela nossa inteligência referia-se ao projeto Echelon – comandado pelos EUA (leia-se NSA), e, nas suas palavras, integrado ainda pelo Reino Unido, Canadá e Alemanha –, que, naquela altura já tinha capacidade de interceptar comunicações por e-mail, voz e fac-símile. Em depoimento prestado ao Congresso brasileiro em 2008, no segundo governo Lula, portanto, o engenheiro eletrônico Otávio Carlos Cunha da Silva, diretor do Cepesc (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento para Segurança das Informações, da Agência Brasileira de Inteligência-ABIN), confirmou aos parlamentares: “O Echelon intercepta todas as comunicações […] tudo o que está no ar, em satélites, links de micro-ondas, torres”.
Mais recentemente, em 2012, em palestra em Seminário de que resultou a publicação Política de defesa e Projeto nacional de desenvolvimento, o general José Carlos dos Santos, comandante do Centro de Defesa Cibernética-CDCiber, dá conta da Guerra Cibernética e cita vários de seus empregos, pela Rússia, pelos EUA e por Israel, entre os quais a ação combinada entre norte-americanos e israelenses para atrasar o programa nuclear iraniano: “Foi desenvolvido um malware, um vírus que, aplicado aos sistemas de controle das ultra centrífugas, fazia com que estas atingissem velocidades de operação bem acima de sua zona de conforto, provocando superaquecimento e destruição física das máquinas”.
Mais e mais a diplomacia dos EUA é exercida pelo Departamento de Defesa, em permanente guerra não declarada na qual avulta o papel de agências de inteligência e ataques cibernéticos a alvos civis ou militares, incluindo assassinatos de adversários escolhidos, líderes políticos ou cientistas. E não há razão objetiva para não suspeitarmos que pelo menos China e Rússia, além da Otan, trabalhem com os mesmos objetivos e as mesmas armas. Estaremos nós preocupados com essa dependência tecnológica? Teremos já consciência de suas consequências industriais e militares? Captura de dados de GPS pode ser usada para teleguiar mísseis balísticos com vistas ao assassinato, como sabe o governo de Israel. Provocando um blecaute é possível congelar uma estrutura, ou promover dano físico de instalações industriais, hidroelétricas, nucleares, militares etc., como foi o exemplo da Usina de Natanz, no Irã. É inimaginável o que pode ser alcançado como interferência nos sistemas aéreos e espaciais.
Em depoimento à Comissão de Relações Exteriores do Senado Federal após a revelação da espionagem dos EUA no Brasil, o ministro da Defesa, Celso Amorim, reconheceu que nossas vulnerabilidades “existem e são muitas”, porque, além de os softwares de segurança serem todos estrangeiros, todas as comunicações, inclusive as de segurança, passam por um satélite que não é brasileiro. “No meu computador, por exemplo, eu aperto um botão e ele deve ligar direto com a Microsoft. E sou Ministro da Defesa”. E acrescenta: “O que eu tenho de importante a dizer não faço na internet, faço por outros meios”. Quais?
O Ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, pretende resolver o desafio da espionagem com projeto de lei de proteção de dados individuais que promete enviar ao Congresso Nacional, bem como com a aprovação do Marco Civil da Internet, “que prevê o armazenamento de dados de brasileiros em território nacional”. A questão, porém, não é de legislação interna, mas de política de Defesa e supõe suporte tecnológico, especialmente na garantia do livre e seguro trânsito de informações, estratégicas ou não. Que não possuímos. Depende de uma agência de informação, que não possuímos (a ABIN é um triste arremedo) e depende de serviços de contra-espionagem, que dependem de decisões políticas, de tecnologia e de muitos recursos. Depende de estarmos preparados para ciberguerra. E depende, apenas para cuidar da imagem ferida do pais, de diplomacia. Até aqui temos falado muito e agido muito pouco, porque a única coisa a fazer é, ab initio, suspender a viagem da presidente Dilma aos EUA em outubro. O resto, não passa do resto.
Fonte: Carta Capital - Internacional
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