Fantasmagorias de direita e de esquerda
18/08/2013
- Opinión
Não é de hoje que pontos de vista mais extremados de esquerda e outros de direita coincidem.
O melhor exemplo histórico é o da CLT, que nestes anos comemora seus 70 anos, embora legislação trabalhista tenha começado a ser promulgada já em 1931.
Durante décadas e até hoje grande parte da esquerda comprou acriticamente o ponto de vista liberal de que ela era inspirada na Carta del Lavoro, de Mussolini. Não o foi, embora ela e o governo Vargas tivessem traços autoritários – mas era de outra cepa, a positivista do século XIX. Os trabalhos do professor Alfredo Bosi – insuspeito de “gauchismo” – são cabais a respeito, como na entrevista que deu para o no. 13 da Revista do Brasil.
O que a Carta del Lavoro e a CLT têm em comum, além da relativa contempraneidade, é o caldo de cultura dos movimentos trabalhistas – dentro da ótica, sim, de responder se antecipando aos movimentos comunistas – que proliferavam na Europa (na França, na Inglaterra, na Alemanha anterior ao nazismo, nos Estados Unidos do New Deal), que Lindolfo Collor e seu grupo de trabalho estudaram extensamente para começar as por de pé a legislação brasileira. Aliás, a adoção destas leis a partir de 1931 foi uma das razões que levaram a burguesia paulista a se insurgir em 1932.
Mas quase toda a esquerda enchia a boca e os ouvidos com a tal de inspiração na Carta del Lavoro – para hoje falar nas “conquistas históricas” dos trabalhadores contidas na legislação trabalhista sempre sob cerrado ataque dos neoliberais. O que não quer dizer que a nossa legislação sobre o mundo do trabaho não deva ser revista sob a ótica, hoje mais avançada e articulada, dos movimentos de trabalhadores.
Algo análogo se passa hoje em relação aos governos Lula e Dilma. Durante quase todo o governo Lula um dos mottos do jornalismo conservador era o de que na verdade nada da linha de governo inaugurada em 2003 beneficiava os mais pobres e os trabalhadores, a não ser pelo viés do paternalismo e do cabresto político. Que os mais ricos continuavam a ser melhores beneficiários do governo Lula – e as distâncias sociais não diminuíam.
A ladainha continua hoje, continuamente retomada por vozes de esquerda. É verdade que a direita, inclusive no jornalismo, em geral tornou-se mais deliberadamente míope (nada contra a nobre classe dos biologicamente míopes, de que faço parte), negando abnegada ou raivosamente a realidade brasileira das melhorias. Mas por vezes estas vozes de esquerda não se fazem menos míopes, ou surdas ao que se passa no país.
Porem esta miopia surda tem raízes mais amplas do que apenas julgar o lulismo e seu seguimento no governo Dilma. Duas componentes conformam este quadro que aparece com freqüência nas pinturas que se repetem.
A primeira pode ser posta sob a forma de duas perguntas complementares: se o governo Lula foi tão ruim para trabalhadores e pobres, porque a popularidade deste continua tão imensa? E por que a direita – da mais grosseira à mais sofisticada (coisa rara hoje em dia) – odeia tanto o Lula e de quebra a Dilma? Não deveria haver nem uma coisa nem outra. Ou seria Lula um prestidigitador tão consumado que seria capaz de driblar aquela asserção de que é impossível enganar todos o tempo todo?
Por trás da incapacidade de responder a estas perguntas – ou sequer de considerá-las relevantes – está o velho pensamento fantasmagórico – que coincide com as direitas – de que o povo é mesmo uma massa ignara que precisa de luminares – as vanguardas – para saber o que pensar. Parece que o destino das classes populares é mesmo o de apenas aguardarem o fermento histórico que virá de outras partes da sociedade, nunca de si mesmas, de sua capacidade de discernir o que, no momento, é melhor para elas. Claro, há exemplos históricos de prestidigitação horrivelmente eficiente, como no nazismo e no fascismo. Mas isto não deve impedir o reconhecimento e o estudo de cada contexto particular, e hoje o caso brasileiro, tanto quanto o dom contexto maior latino-americano, merece estudos e considerações específicas.
Aqui chegamos à segunda fantasmagoria. Cobra-se uma radicalidade maior dos governos Lula/Dilma, como se o resto do mundo estivesse prestes a uma explosão revolucionária, enquanto no Brasil as classes populares permanecem anestesiadas pelas políticas paliativas daqueles, privando-nos e o restante do planeta da revolução que está ao alcance de todos. Ora, basta dar uma rápida olhada para este restante de planeta para se ver que os dois últimos governos brasileiros e outros da América Latina estão tirando literalmente leite de pedra, enquanto na Europa e alhures os movimentos de trabalhadores amargam recuos de grande monta, num prejuízo de que levarão provavelmente décadas e gerações para se recuperarem.
Não é provável que o Brasil sozinho venha a recompor as bandeiras do socialismo internacional – embora seja verdade que tanto o nosso caso quanto o da América Latina como um todo esteja a merecer uma reflexão mais ousada que aprofunde a análise, ao invés de repetir preconceitos históricos.
O melhor exemplo histórico é o da CLT, que nestes anos comemora seus 70 anos, embora legislação trabalhista tenha começado a ser promulgada já em 1931.
Durante décadas e até hoje grande parte da esquerda comprou acriticamente o ponto de vista liberal de que ela era inspirada na Carta del Lavoro, de Mussolini. Não o foi, embora ela e o governo Vargas tivessem traços autoritários – mas era de outra cepa, a positivista do século XIX. Os trabalhos do professor Alfredo Bosi – insuspeito de “gauchismo” – são cabais a respeito, como na entrevista que deu para o no. 13 da Revista do Brasil.
O que a Carta del Lavoro e a CLT têm em comum, além da relativa contempraneidade, é o caldo de cultura dos movimentos trabalhistas – dentro da ótica, sim, de responder se antecipando aos movimentos comunistas – que proliferavam na Europa (na França, na Inglaterra, na Alemanha anterior ao nazismo, nos Estados Unidos do New Deal), que Lindolfo Collor e seu grupo de trabalho estudaram extensamente para começar as por de pé a legislação brasileira. Aliás, a adoção destas leis a partir de 1931 foi uma das razões que levaram a burguesia paulista a se insurgir em 1932.
Mas quase toda a esquerda enchia a boca e os ouvidos com a tal de inspiração na Carta del Lavoro – para hoje falar nas “conquistas históricas” dos trabalhadores contidas na legislação trabalhista sempre sob cerrado ataque dos neoliberais. O que não quer dizer que a nossa legislação sobre o mundo do trabaho não deva ser revista sob a ótica, hoje mais avançada e articulada, dos movimentos de trabalhadores.
Algo análogo se passa hoje em relação aos governos Lula e Dilma. Durante quase todo o governo Lula um dos mottos do jornalismo conservador era o de que na verdade nada da linha de governo inaugurada em 2003 beneficiava os mais pobres e os trabalhadores, a não ser pelo viés do paternalismo e do cabresto político. Que os mais ricos continuavam a ser melhores beneficiários do governo Lula – e as distâncias sociais não diminuíam.
A ladainha continua hoje, continuamente retomada por vozes de esquerda. É verdade que a direita, inclusive no jornalismo, em geral tornou-se mais deliberadamente míope (nada contra a nobre classe dos biologicamente míopes, de que faço parte), negando abnegada ou raivosamente a realidade brasileira das melhorias. Mas por vezes estas vozes de esquerda não se fazem menos míopes, ou surdas ao que se passa no país.
Porem esta miopia surda tem raízes mais amplas do que apenas julgar o lulismo e seu seguimento no governo Dilma. Duas componentes conformam este quadro que aparece com freqüência nas pinturas que se repetem.
A primeira pode ser posta sob a forma de duas perguntas complementares: se o governo Lula foi tão ruim para trabalhadores e pobres, porque a popularidade deste continua tão imensa? E por que a direita – da mais grosseira à mais sofisticada (coisa rara hoje em dia) – odeia tanto o Lula e de quebra a Dilma? Não deveria haver nem uma coisa nem outra. Ou seria Lula um prestidigitador tão consumado que seria capaz de driblar aquela asserção de que é impossível enganar todos o tempo todo?
Por trás da incapacidade de responder a estas perguntas – ou sequer de considerá-las relevantes – está o velho pensamento fantasmagórico – que coincide com as direitas – de que o povo é mesmo uma massa ignara que precisa de luminares – as vanguardas – para saber o que pensar. Parece que o destino das classes populares é mesmo o de apenas aguardarem o fermento histórico que virá de outras partes da sociedade, nunca de si mesmas, de sua capacidade de discernir o que, no momento, é melhor para elas. Claro, há exemplos históricos de prestidigitação horrivelmente eficiente, como no nazismo e no fascismo. Mas isto não deve impedir o reconhecimento e o estudo de cada contexto particular, e hoje o caso brasileiro, tanto quanto o dom contexto maior latino-americano, merece estudos e considerações específicas.
Aqui chegamos à segunda fantasmagoria. Cobra-se uma radicalidade maior dos governos Lula/Dilma, como se o resto do mundo estivesse prestes a uma explosão revolucionária, enquanto no Brasil as classes populares permanecem anestesiadas pelas políticas paliativas daqueles, privando-nos e o restante do planeta da revolução que está ao alcance de todos. Ora, basta dar uma rápida olhada para este restante de planeta para se ver que os dois últimos governos brasileiros e outros da América Latina estão tirando literalmente leite de pedra, enquanto na Europa e alhures os movimentos de trabalhadores amargam recuos de grande monta, num prejuízo de que levarão provavelmente décadas e gerações para se recuperarem.
Não é provável que o Brasil sozinho venha a recompor as bandeiras do socialismo internacional – embora seja verdade que tanto o nosso caso quanto o da América Latina como um todo esteja a merecer uma reflexão mais ousada que aprofunde a análise, ao invés de repetir preconceitos históricos.
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.
17/08/2013
https://www.alainet.org/es/node/78513
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