A sociologia da claridade e da escuridão

A claridade e a escuridão e todos os graus intermédios de luminosidade condicionam o modo como vivemos, como nos movemos, como nos comunicamos, como avaliamos o que está perante nós, como criamos obras de arte.

02/07/2021
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Este é o terceiro mini-ensaio sobre a luz e a sombra, a claridade e a escuridão. Nele procuro analisar o modo como a claridade e a escuridão não só afectam as relações sociais e com a natureza como as criam. Numa perspectiva sociológica, são fenómenos naturais-sociais de enorme ductilidade ou ambiguidade, o que lhes permite ter valências múltiplas e contraditórias com o poder social, político e cultural. A claridade e a escuridão e todos os graus intermédios de luminosidade condicionam o modo como vivemos, como nos movemos, como nos comunicamos, como avaliamos o que está perante nós, como criamos obras de arte, sejam elas pintura, poesia, romance, cinema, teatro ou música. Basta recordar o filme noir com os seus contrastes chiaroscuro, sob influência do expressionismo alemão, ou o novo género musical, surgido no século XVIII, o notturno (Nachtmusik), música instrumental para ser tocada à noite. Haydn compôs oito notturni e Mozart a Serenata notturna (k239). Neste texto, concentro-me no modo como a claridade e a escuridão do espaço e do tempo intervêm em relações de poder, seja ele de natureza capitalista, racista, sexista ou religiosa, e também em relações de resistência e de convivência.

 

O dia e a noite. O dia e a noite são desde tempos imemoriais os marcos divisores das formas de sociabilidade e das relações com a natureza. O escuro da noite foi sempre fundamental para ver o céu e interpretar os astros. A auscultação dos astros era crucial para saber as horas, prever as condições meteorológicas, navegar em águas desconhecidas, decidir os trabalhos e os ritmos agrícolas, adivinhar o futuro, etc. Também a vida dos animais se regulava pelos astros. Durante milénios, a vida social foi estruturada pela claridade do tempo diurno em total contraste com o tempo nocturno em que as formas de sociabilidade eram totalmente distintas. A noite era o tempo do descanso, dos perigos, dos excessos e dos prazeres ilícitos. Nas cidades medievais, andar de noite pela rua era perigoso, não só por causa dos ladrões, dos assassinos ou das bruxas, mas também das fezes e outros lixos atirados das janelas. Dentro das casas, as velas criavam pequenos pontos de luz que mal competiam com a escuridão envolvente. É certo que as pessoas se orientavam pelos cheiros, pelos sons e pelo tacto com uma eficiência que hoje só se encontra entre os invisuais. Segundo os diários da vida doméstica medieval que chegaram até nós, tipicamente um casal deitava-se pouco depois do sol pôr, dormia o primeiro sono de quatro horas, acordava e ficava na cama mais duas horas a conversar e a amar e ao raiar do dia levantava-se para ir trabalhar ou iniciar as tarefas diárias.

 

A sedução da luz estava associada à revelação desde o tempo bíblico. Não foi por acaso que a afirmação da racionalidade moderna se designou por Iluminismo, ainda que, como referi em textos anteriores, tivesse havido muitos outros iluminismos e renascimentos além dos europeus. Foi também por essa razão que a idade média se passou a designar, sobretudo no século XIX, por “a idade das trevas”, quase ao mesmo tempo em que o colonialismo foi afirmando a superioridade da Europa sobre o “continente escuro” habitado por “gente escura”, qualquer que fosse a sua cor de pele. Entretanto, o desenvolvimento do capitalismo exigia uma forte disciplina dos trabalhadores e isso traduziu-se numa crescente vigilância da noite, o período em que a burguesia tinha menos controle sobre as “classes perigosas”. A escuridão dos bairros pobres ou periféricos sublinhava ainda mais a suspeita de possíveis comportamentos depravados ou revoltosos. A iluminação pública surgiu assim como uma forma de biopolítica, disciplinar os corpos por via de maior vigilância em nome do progresso e da manutenção da ordem. A noite foi, assim, banida da cidade e passou a ser sinónimo de perigo, de crime. Mas nada disto ocorreu sem resistência porque a noite tinha uma sedução que ia muito para além da vida monótona do casal burguês. A noite era também o espaço da autonomia. Por isso, a escuridão da noite sempre foi usada para escapar aos detentores do poder, como bem ilustra o caso dos escravos fugitivos.

 

A luz natural e a luz artificial. A difusão da luz artificial a partir do século XIX veio transformar profundamente as relações entre a noite e o dia. Foi um progresso extraordinário, mas, como todos os outros, não era politicamente inócuo e acabou por produzir efeitos perversos. A luz artificial permitia clarear a noite e nocturnizar a vida e de tal modo que muitas actividades, antes separadas pelo ritmo natural do dia e da noite, podiam ser realizadas indistintamente de dia ou de noite. O glamour da “cidade que não dorme” tornou-se irresistível. Nada disto ocorreu sem resistência nem custos. Os primeiros candeeiros públicos a gás foram apedrejados por aqueles e aquelas para quem a escuridão da noite era considerada uma condição essencial da sua sobrevivência ou profissão, fossem ladrões, prostitutas, artistas, traficantes de drogas, boémios ou revolucionários. Com a crescente invasão da luminosidade artificial, os artistas, ainda que menos condicionados pela divisão do dia e da noite, passaram a preferir a escuridão para a sua criatividade e tiveram de a procurar em caves, bares, túneis, canais de esgoto, periferias urbanas ou no campo. Uma vez desprovida da sua presença natural, a escuridão transformou-se numa nova atracção, um divertimento público, ambiente propício para a evocação de espíritos em sessões espiritistas ou para filmes de terror. Prospera hoje uma economia da noite em que a escuridão é um elemento fundamental do sublime urbano nocturno.

 

Os custos, para além dos gastos de energia, traduzem-se hoje num novo conceito, a poluição da luminosidade, entendendo-se por tal a excessiva e invasiva iluminação do espaço público nas cidades do Norte global. A iluminação excessiva produz uma nova forma de cegueira. Até ao início do século XX, era possível ver à noite e a olho nu cerca de 2.500 estrelas. Hoje, vêem-se menos de uma dúzia. Em 1994, ocorreu um terramoto na Califórnia que provocou um apagão na cidade de Los Angeles. Muitos residentes telefonaram para a polícia em pânico, dizendo estar a ver “uma imensa nuvem prateada no céu”. Era a Via Láctea…que eles viam pela primeira vez. Calcula-se que hoje mais de um terço da humanidade não pode ver a Via Láctea. Quanto mais brilha a terra, mais o firmamento se esconde. Para o comum das pessoas, o firmamento deixou de ser uma complexa e rica fonte de informação e de contemplação e passou a ser uma abóbada tão transparente quanto opaca. Isto é certamente um problema para os astrónomos, mas tem muitas outras ramificações, na vida dos animais humanos e não humanos, na saúde mental, na aprendizagem, nos ciclos de vida.

 

Em alguns países, a luta contra a poluição luminosa tem hoje alguma semelhança com a luta contra a poluição atmosférica. Emergem parques nacionais para preservar o céu escuro com estrelas e os urbanistas e arquitectos são incitados a equilibrar as relações entre a claridade e a escuridão, desde que ressalvadas as situações de perigo e de insegurança (ver adiante). A poluição da luminosidade assume três formas principais: o clarão, os raios de luz intensos apontados aos olhos; a luz invasora, a luz intensa que invade as casas e perturba o descanso; o brilho do céu, o efeito da iluminação em zonas densamente povoadas e iluminadas disseminada por poeiras e gazes que tornam o céu mais claro. Numa grande cidade do Norte global, o céu à noite é 25 a 50 vezes mais claro que o céu nocturno natural. As aves migratórias são algumas das vítimas da poluição da luminosidade.

 

O fim do dia e da noite. Quando excessiva, a luz artificial revela o seu lado escuro, a desconexão que cria com a natureza, com os astros e o consequente empobrecimento da relação com o mundo mais amplo em que nos inserimos. Além disso, os seres vivos têm ciclos regulados pela luz e pela escuridão. Designa-se por ritmo ou ciclo circadiano o ciclo do período de 24 horas regulado pelas variações da luz, temperatura, marés e ventos entre o dia e a noite. A perturbação do ciclo circadiano produz fadiga e desorientação e, se for prolongado, pode causar doenças graves. Não é por acaso que os torturadores de prisioneiros políticos submetem as suas vítimas à tortura da luz. Na prisão da CIA em Guantánamo, manter os presos sob a mesma intensidade de luz artificial, tanto de dia como de noite, é parte integrante das técnicas de privação sensorial. O fim da diferenciação entre o dia e a noite significa um empobrecimento da experiência humana ainda hoje difícil de imaginar e pode envolver novas dimensões de desigualdade de poder, por exemplo, as que decorrem das assimetrias de percepção. Durante a invasão do Iraque em 2003 foram usados em larga escala pelos EUA equipamentos de visão nocturna que permitiam identificar os soldados inimigos na escuridão. O poder de ver sem ser visto transformava o campo de batalha num exercício macabro de magia maléfica evocando espíritos todo-poderosos.

 

A intimidade e a violência de género. A escuridão tanto pode ser factor de segurança e de protecção, como de insegurança e de perigo. Não poder circular tranquilamente à noite no espaço público tem sido uma das reivindicações básicas das lutas feministas contra a violência de género (incluindo toda a violência contra orientações sexuais supostamente menos comuns). Enquanto esta perdurar, é preferível perder a vista das estrelas no céu do que perder vidas na terra. Por sua vez, no espaço privado da casa, a escuridão tanto pode ser factor de relaxamento como de temor, de intimidade e de violência. E a escuridão tanto pode facilitar a agressão como a intimidade. Por sua vez, a intimidade da casa é vivida de modo bem diferente pelos que nela habitam e pelas empregadas domésticas que nela trabalham, por vezes a milhares de quilómetros de distância da sua casa. Os fenomenologistas têm chamado a atenção para o facto de o sentido da subjectividade ser sensível ao contraste entre claridade e escuridão. Para Merleau-Ponty, na escuridão, a percepção dos contornos físicos da pessoa tornam-se mais ambíguos na escuridão, o que facilita a abertura e a entrega ao outro. Quanta confidência ou quanto êxtase sexual exige voz baixa e escuridão ou semi-escuridão!

 

 

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