A extradição de Assange: será que um toque francês conseguiria furar uma farsa neo-orwelliana?
- Análisis
Paris.- Faz muito sentido que o destino judicial - imperialmente pré-determinado - de Julian Assange esteja se desenrolando na Grã-Bretanha, país de George Orwell.
Segundo o cáustico e doloroso relato do Embaixador Craig Murray, o que vem acontecendo no tribunal de Woolwich Crown é uma farsa sub-orwelliana com toques conradianos: o horror... o horror... remixado para os Frenéticos Anos Vinte. O coração de nossas trevas morais não está no Congo: está num sombrio tribunal anexo a um presídio, presidido por um lacaio subalterno do império.
Em um dos livros de Michel Onfray publicado no ano passado pela editora Robert Laffont, “Theorie de la Dictature” (A Teoria da Ditadura) – o maior filósofo dissidente e politicamente incorreto francês - parte exatamente de Orwell para examinar as principais características dessa ditadura nova-onda. Ele distingue sete caminhos para a destruição: destruir a liberdade, empobrecer a língua, abolir a verdade, suprimir a história, negar a natureza, propagar o ódio e aspirar ao império.
Para destruir a liberdade, ressalta Onfray, o poder tem que assegurar vigilância perpétua; arruinar a vida pessoal; suprimir a solidão; uniformizar a opinião e denunciar crimes de pensamento. Isso parece uma mapa da perseguição que o governo dos Estados Unidos move contra Assange.
Outros caminhos, como o empobrecimento da linguagem, inclui a prática da novilíngua; o uso de dupla linguagem; a destruição das palavras; a oralização da língua; o monolinguismo e a supressão dos clássicos. Isso soa como o modus operandi das classes dominantes do Hegêmona.
Para abolir a verdade, o poder tem que ensinar ideologia; instrumentalizar a imprensa; propagar fake news e produzir a realidade. Para propagar o ódio, o poder, entre outros instrumentos, tem que criar um inimigo, fomentar guerras e psiquiatrizar o pensamento crítico.
Não há a menor dúvida de que já estamos atolados nas profundezas dessa distopia neo-orwelliana.
John "Paraíso Perdido" Milton, em 1642, não poderia ter sido mais profético quando escreveu que "Aqueles que ferem os olhos das pessoas acusam-nas de serem cegas". Como não ver aí um paralelo direto com o exército do Le Petit Roi Emmanuel Macron, que mês após mês vem propositalmente cegando os manifestantes Gilets Jaunes/Coletes Amarelos nas ruas da França?
Orwell foi mais direito que Milton quando disse que falar de liberdade não faz qualquer sentido, a não ser se em referência ao direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir. E ele colocou essa ideia em contexto citando um verso de Milton: "Pelas regras conhecidas da antiga liberdade".
Nenhuma "regra conhecida da antiga liberdade" tem permissão para penetrar o coração das trevas do tribunal de Woolwich Crown.
Um espião a serviço do povo
Pode-se afirmar que Juan Branco é o mais brilhante dos jovens intelectuais franceses - herdeiro da nobre tradição Sartre/Foucault/ Deleuze. O establishment francês o detesta, principalmente em razão de seu best-seller "Crepuscule", no qual ele disseca o macronismo – taxado de regime criminoso – a partir de dentro, e acusa o presidente francês de ser criatura e instrumento de uma minúscula oligarquia.
Branco acaba de publicar pela Les Editions du Cerf "Assange: L’Antisouverain" (Assange: o Anti-soberano), um estudo absorvente e erudito que ele define como "um livro de filosofia sobre a figura do Anti-soberano". O Soberano, é claro, sendo o aparato estatal.
Aqui em francês vai uma excelente entrevista com Branco sobre o livro. Não há nada que possa ser remotamente comparado a ele na anglosfera, que sempre tratou Assange como um excêntrico desagradável, vomitando calúnias vulgares e empilhando tiradas sub-ideológicas disfarçadas como fatos.
O livro, basicamente, é estruturado como um seminário para a hiper-seletiva Ecole Normale Superieure, a augusta escola do Quartier Latin que forma as elites francesas, um ninho privilegiado de instituições de poder e de reprodução de privilégios. Branco conduz o leitor até o coração desse universo apenas para fazê-lo ou fazê-la descobrir Assange a partir do ponto de vista de um desses alunos.
Branco teve o privilégio de se beneficiar da interação entre a Ecole Normale Superieure e Yale. Ele conheceu Assange na Embaixada do Equador, em janeiro de 2014, "em um estado de confinamento radical", e então acompanhou-o como consultor jurídico e em seguida advogado, "dia após dia", até reencontrá-lo em setembro de 2016, "preparando-se para nada menos que mudar o curso da eleição presidencial americana, e arquitetando a queda daquela que havia jurado esmagá-lo, uma tal de Hillary Rodham Clinton".
Branco é fascinado pelo "jornalismo científico" de Assange, e por sua capacidade de "intervir no espaço político sem ocupar um lugar específico". Assange é retratado como um oráculo contemporâneo, maníaco por livre acesso à informação, alguém que "nunca buscou recompensa, nem inserção, nem proteção jurídica", o que é um modus operandi totalmente diverso do de qualquer mídia.
Branco mostra como o WikiLeaks "permitiu a ação dos whistleblowers", acumulando um arquivo paralelo à "produção de dados relacionados ao mecanismo do aparato de poder contemporâneo". Nesse sistema, qualquer cidadão é capaz de se tornar um pesquisador".
O trabalho de Assange, portanto, sempre foi a redistribuição de poder. É como se Assange tivesse se tornado "um espião a serviço do povo". E isso leva Branco a traçar a conexão com os Gilets Jaunes/Coletes Amarelos. Quando o WikiLeaks, em 2017, publicou os "Vazamentos de Macron", a luta dos Coletes Amarelos pela democracia direta viu-se legitimada.
Branco descreve Assange como "uma figura estranha, uma ponte entre a pré-história da civilização digital e sua penetração definitiva como um elemento estrutural, primordial do espaço político e social".
Mas é possível afirmar que sua melhor descrição de Assange é a de "um dissidente de seu próprio espaço interno, interessado principalmente na esfera da dominação cultural, econômica e social na qual ele nasceu, a do imperium americano, do qual sua Austrália natal é um dos mais dedicados aliados, e que domina o ciberespaço onde ele se constituiu em um ator político".
No que pode ser entendido como a principal razão para a ilimitada sede de vingança do governo dos Estados Unidos contra Assange, ele denunciou o fato de que "os atos americanos têm uma função regulatória natural para o resto do mundo, resultado de seu hiper-domínio sobre o espaço geopolítico contemporâneo".
Está tudo no algoritmo
A vista a partir da Galeria de Membros da Bolsa de Valores de Nova York, agosto de 2008. (Ryan Lawler, Wikimedia Commons)
E isso nos traz ao cerne da questão: os algoritmos. Na síntese de Branco, "a revelação de documentos em estado bruto visa a reinvestir no espaço político aqueles que foram descartados devido à sua submissão a uma palavra de autoridade cujos algoritmos foram mascarados".
Onfray já havia advertido quanto à "destruição das palavras", ao "empobrecimento da língua" e ao uso da novilíngua - mas Branco leva tudo isso ainda mais longe. Uma vez que "a palavra do poder é uma palavra assimilada ao algoritmo, no sentido de que ela se beneficia de uma presunção de verdade, ela não revela, para continuar tendo efeito, nenhum de seus recursos, estabelecendo a enunciação de uma verdade impossível de contestar".
Branco tem o cuidado de explicar que "O algoritmo não teria se transformado em um poder social sem o apoio de uma pressuposição ética (a consagração do Homo Economicus), sem uma postulação de cientificismo (e portanto de universalidade) e sem uma ruptura tecnológica (os megadados)".
Branco reduz sua análise à fórmula "A algoritmização é a base da soberania". E foi exatamente isso que Assange desafiou. E é por isso que ele é uma figura tão contenciosa, tão eternamente controversa, ao contrário de Edward Snowden, que basicamente é um cara normal - com um QI brilhante - que apenas quer reformar um sistema.
Uma chance para a Liberdade, Igualdade e Fraternidade?
Quando ele trabalhava a favor de Assange, Branco, essencialmente, coordenava uma equipe de advogados subordinados ao juiz-estrela Baltasar Garzon, que estava presente no tribunal de Woolwich Crown no início desta semana. Na semana passada, os advogados de Assange disseram que iriam pedir asilo à França. Branco não pode de modo algum participar dessa equipe devido ao seu "Crepuscule" – que eviscera Macron.
O Petit Roi, por seu lado, talvez tenha agora a oportunidade suprema de uma jogada de Relações Públicas de alcance global. Ao por fim a uma horrenda pantomima neo-orwelliana, oferecer asilo a Assange e ridicularizar Trump e Boris Johnson ao mesmo tempo, ele elevaria seu status em uma miríade de latitudes europeias e em todo o Sul Global.
Mas que não haja ilusões. Em 3 de julho de 2015, a conselho de seus advogados, Assange escreveu um artigo assinado para o Le Monde perguntando sobre a possibilidade de asilo. Apenas uma hora após a publicação, o Palácio Elysée - sob François Hollande – emitiu uma firme negativa. Não houve vazamentos quanto ao tipo de pressões aplicadas pelo Deep State norte-americano.
Geoffrey Robertson, advogado de Assange, não tem ilusões: "Ele não será perdoado pelo Presidente Trump, embora um [futuro] presidente Sanders talvez o perdoe. Creio que seja esse o objetivo do Pentágono. Encarcerá-lo pelo resto de sua vida".
Uma medida do grau de covardia de todos os jornais convencionais que tanto lucraram com o trabalho de Assange e com o WikiLeaks é este desprezível editorial do Le Monde, que em tom morno finge defendê-lo como jornalista e editor.
É perda de tempo esperar da imprensa empresarial anglo-americana sequer um mínimo da decência para admitir que jornalistas não devem ser tratados como espiões ou criminosos perigosos. A criminalização do pensamento crítico - capaz de provocar, desmascarar e denunciar o poder bruto - é um ponto-chave da plataforma da nova ditadura examinada por Onfray, e já em vigor. Agora cabe a Onfray e a Branco não se perderem na tradução - e demonstrar vigorosamente à anglosfera que o coração das trevas não deve prevalecer.
- Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais. Especial para o Consortium News
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
28 de fevereiro de 2020
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