Capitalismo: violência contra a mulher, violência contra a terra

Precisamos construir uma alternativa que reconheça o papel central da mulher nas lutas econômicas, sociais e políticas.

22/04/2019
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«A violência contra o ciclo da água é provavelmente a pior e também a mais invisível forma de violência porque ameaça a vida de todos.»

Vandana Shiva

 

O Observatório de Igualdade de Gênero da Comissâo Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) divulga anualmente o número de homicídios de mulheres a partir de 15 anos de idade ligados à razões de gênero na região. Em 2017, foram 2.795 mulheres assassinadas, sendo que o Brasil, com 1.133 vítimas confirmadas, foi o líder neste tipo de crime na América Latina, sendo registrado como o país com a quinta taxa mais alta do mundo em feminicídio.

 

Ao mesmo tempo, o Brasil também é o país de crimes ambientais como os de Mariana e Brumadinho e o campeão mundial no uso de pesticidas. Vandana Shiva, no livro «Staying Alive», chama a atenção para o fato de que «a violência fazia parte do próprio contexto em que os pesticidas foram descobertos durante a Primeira Guerra Mundial. A produção de explosivos teve um efeito direto no desenvolvimento de inseticidas sintéticos. Descobriu-se em 1916 que o gás lacrimogêneo poderia ser utilizado como inseticida, mudando-se assim o uso de um produto de tempos de guerra para tempos de paz. A descoberta do DDT foi o ápice de um esforço de pesquisa motivado apenas por interesses comerciais, mas a adoção deste componente estava intrinsicamente ligada à política da guerra.»

 

A lógica de um sistema econômico que leva aos crimes ambientais de Marina e Brumadino é a mesma que leva ao envenenamento dos solos, água, fauna, flora e seres humanos através do uso de pesticidas. E a mesma lógica também que conduz à violência crescente contra a mulher, chegando ao assassinato. A violência contra a Terra e a violência contra a mulher estão relacionadas e são consequências diretas da lógica do sistema patriarcal capitalista neoliberal que hoje tenta se impor em todo o mundo. A historiadora feminista Silvia Federici, em « Witches, Witch-hunting and Women» (Bruxas, caça às bruxas e mulheres), assim descreveu este fenômeno:

 

«(…) testemunhamos hoje uma escalada da violência contra a mulher, especialmente as afro-descendentes e as indígenas, porque a «globalização» é um processo de recolonização política que pretende dar ao capital o controle total sobre as riquezas naturais e o trabalho humano. Isto não pode ser conseguido sem atacar as mulheres que são diretamente responsáveis pela reprodução em suas comunidades. Não é surpreendente que a violência contra as mulheres seja mais intensa nas partes do mundo (África Sub-saariana, América Latina, sudoeste da Ásia) que são as mais ricas em recursos naturais e que agora são objeto de exploração comercial e onde as lutas anticoloniais foram mais fortes. Brutalizar as mulheres (…) pavimenta o caminho para o acaparamento de terras, para as privatizações (…). Sobretudo, o ataque às mulheres tem sua origem na necessidade do capital de destruir aquilo que ele não pode controlar e degradar o que ele mais necessita para a sua reprodução, o corpo das mulheres, pois mesmo nesta época de super-automação, nenhum trabalho, nenhuma produção existiria sem o que é o resultado da nossa gestação.»

 

Esta dupla violência - contra a mulher e contra a Terra – fazem parte da própria origem e desenvolvimento do sistema capitalista. Outra importante historiadora feminista, Carolyn Merchant, no livro fundamental «A Morte da Natureza», resumiu do seguinte modo esta história:

 

«Entre 1500 e 1700 uma transformação incrível aconteceu (…) Uma economia de subsistência onde recursos naturais, dinheiro e trabalho eram trocados por bens e objetos manufaturados, foi substituída em muitas partes pela acumulação incessante de lucros em um mercado internacional. A natureza viva e animada morreu, ao mesmo tempo em que o dinheiro inanimado foi dotado de vida. O capital e o mercado cada vez mais assumiriam os atributos orgânicos de crescimento, atividade, gestação, fraqueza e envelhecimento, obscurecendo e mistificando as novas relações sociais de produção e reprodução que tornavam possível o crescimento e o progresso econômico. A natureza, as mulheres, os negros, ganharam um novo «status» como recursos naturais e humanos para o novo sistema mundial.»

 

A violência do nascente sistema capitalista contra a Terra, sua necessidade de exploração desenfreada dos recursos naturais, conduz à «morte» da natureza na consciência coletiva: a natureza tem ser «morta» para que sua exploração como «recurso» não tenha limites, pois limites colocados à exploração da natureza seriam limites colocados também aos lucros obtidos por esta mesma exploração. No livro acima citado, Carolyn Merchant explica como a ciência ocidental se desenvolveu internalizando esta visão de uma natureza a ser dominada e submetida – como as mulheres – à ordem patriarcal. O homem, o sexo masculino, é colocado além e acima da «feminina» natureza, justamente para melhor dominar e explorar tanto as mulheres como a natureza. Corroborando o trabalho de Carolyn Merchant, Silvia Federici chamou a atenção para o fato de que a «caça às bruxas» na Europa, quando milhares de mulheres foram queimadas vivas em fogueiras, foi um fenõmeno exatamente contemporâneo da revolução científica. E foram as conquistas da revolução científica em vários domínios que permitiram a expansão colonial européia e o desenvolvimento do capitalismo.

 

À violência colonial, que une a exploração das riquezas naturais das colônias à exploração do trabalho escravo, corresponde uma outra colonização, a do espírito: uma repatriarcalização da sociedade que legitima o poder e a «superioridade» - racial, intelectual e moral – do homem branco, ao qual a mulher deve se submeter. Em parte, a caça às bruxas na Europa foi uma ampla campanha de terror para submeter as mulheres «rebeldes», que desafiavam o poder masculino, que resistiam a esta colonização espiritual e que, sobretudo, mantinham e defendiam uma outra relação com a natureza.

 

O capitalismo neoliberal atual é a retomada do projeto colonial europeu e de sua consequente repatriarcalização da sociedade. Não é por acaso que o processo iniciado com o golpe de estado que depôs a Presidente Dilma Rousseff tenha levado à implantação do Governo Bolsonaro. As forças econômicas e sociais por trás do golpe são as mesmas que estão por trás da manutenção do Governo Bolsonaro e de suas escolhas. O objetivo maior por trás do golpe e do atual governo sempre foi entregar as riquezas – naturais e públicas – do Brasil ao capital internacional; ou seja, transformar o Brasil numa neocolônia. Já a repatriarcalização da sociedade brasileira, fundamental para a manutenção no poder do neoliberalismo, tem sido desde muito tempo a tarefa de certas igrejas evangélicas, como a Igreja Universal do Reino de Deus. Esta repatriarcalização é a responsável direta pelo aumento da violência contra a mulher e por todo o obscurantismo que se alastra e que procura apagar todas as conquistas socias e culturais que vêm sobretudo das lutas da década de 60 do século passado. A indicação de Damares Alves para Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e a escolha, primeiro, de Ricardo Vélez e agora de Abraham Weintraub para comandar o Ministério da Educação e Cultura -MEC – bem como o interesse declarado da bancada evangélica no congresso nacional por este Ministério, são exemplos claros da tentativa de colocar a educação de todo o país a serviço do projeto de repatriarcalização da sociedade brasileira e revela também a centralidade desta proposta dentro do projeto neoliberal.

 

Já as escolhas de Ricardo Salles para comandar o Ministério do Meio Ambiente e de Tereza Cristina, justamente conhecida como a «Musa do Veneno», para o Ministério da Agricultura, indicam que o aumento da violência contra a Terra é parte integral da política do atual Governo. Ao envenenamento do solo e da água pelos pesticidas defendidos pela Ministra Tereza Cristina, corresponde o envenenamento da sociedade pelo obscurantismo pregado pela Ministra Damares Alves e seus colegas do MEC. Como escreveu Silvia Federici em «Re-enchanting the World», para deixar bem claro a relação de classes que o projeto neoliberal procura ocultar, «a mesma classe política que torna praticamente impossível para as mulheres obter o seu próprio sustento e o de suas famílias, é a que as criminaliza quando elas tentam fazer um aborto».

 

A violência contra a mulher e contra Terra vai continuar enquanto o modelo neoliberal e a classe a que ele serve persistirem no poder. Precisamos construir uma alternativa que reconheça o papel central da mulher nas lutas econômicas, sociais e políticas de nosso tempo. E que recupere uma relação de reverência, gratidão e carinho com nossa mãe comum, a Terra.

 

https://www.alainet.org/es/node/199438?language=en
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