Para debater a crise da Venezuela

24/02/2019
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Diante do cerco dos EUA ao governo bolivariano, dirigente do MST afirma que a "defesa da soberania na Venezuela significa a defesa da autodeterminação dos povos contra o império".

 

João Pedro Stedile, membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), escreve alguns apontamentos para ajudar a entender a crise geopolítica na Venezuela e a ofensiva dos Estados Unidos para desestabilizar o projeto bolivariano.

 

O que está acontecendo na Venezuela?

 

1. Há uma crise internacional do modo de produção capitalista que vem se aprofundando desde 2008. A hegemonia do capital financeiro estabelece que apenas as grandes corporações e os bancos acumulem; ao contrário disso, as economias dos países se mantêm à margem e as populações, em especial os trabalhadores, pagam com mais desemprego, aumento da desigualdade, migrações, conflitos sociais e perda de direitos, além da diminuição dos serviços públicos básicos de educação, saúde, moradia, etc.

 

2. Com a eclosão da crise econômica, os governos construídos em pactos de conciliação de classe e estabilidade política não conseguem mais se sustentar, porque o Estado e suas finanças se transformam em disputa das classes.

 

3. Há também uma crise da chamada democracia formal burguesa. As eleições e seus governos não conseguem mais representar os interesses reais da maioria da sociedade, porque suas vitórias são fraudulentas, manipuladas e custeadas a base de milhões. Dessa maneira, como reflexo dessa crise, a população não acredita mais nos políticos e no regime de representação formal.

 

4. Diante desse contexto internacional, o capital dominante, por meio das corporações e bancos, volta-se prioritariamente para a apropriação privada dos recursos da natureza: petróleo, minérios, água, árvores, biodiversidade e energia, como forma de obter altas taxas de lucro e, proveniente dessa renda extraordinária, voltar a acumular e a crescer. No entanto, nem todos os capitalistas: apenas aqueles que se apropriarem dos bens da natureza, que eram comuns, que não foram produzidos pelo trabalho e, ao se transformarem em mercadorias, adquirem um preço com uma renda fantástica.

 

5. Na disputa internacional por mercados e bens naturais, desenhou-se uma nova correlação de forças entre os Estados Unidos, a Europa Ocidental, a Eurásia (Rússia, Irã, China). Essas economias disputam entre si a apropriação de bens da natureza e os mercados. Isso levou a que os capitalistas dos EUA aumentassem suas pressões sobre a América Latina, para mantê-la como território refém de seus interesses, seu "pátio traseiro", como costumam nos chamar, e, assim, têm acesso a bens e mercados e se contrapõem em melhores condições frente a seus concorrentes internacionais.

 

6. No mundo da política e da ideologia, as crises fizeram emergir no mundo todo novas forças burguesas de ultradireita. Essas forças reacionárias se constroem ideologicamente com novos inimigos: os migrantes, os direitos dos trabalhadores, os costumes, a cultura, etc.

 

7. Infelizmente essas forças de ultradireita conquistaram, pelo voto, alguns governos, como o governo Donald Trump nos Estados Unidos; Itália, Hungria e Andaluzia na Europa; e na Índia e nas Filipinas na Ásia. Aqui na América Latina, conquistaram os governos de Argentina, Brasil, Paraguai, Chile, Peru e El Salvador.

 

8. Para vencer as eleições, as forças de ultradireita não expõem seus projetos e concepções ideológicas, porque sabem que não há apoio da maioria da população, então passam a manipular a opinião pública, com o uso intensivo da internet, da produção de mentiras sistematicamente contra a esquerda e os setores progressistas. Ainda se utilizam das igrejas pentecostais para iludir as populações mais pobres que delas são dependentes.

 

9. Tudo isso aconteceu também na crise da década de 1930, quando os capitalistas se utilizaram do discurso nacionalista e das ideias fascistas para controlar os governos e saírem da crise. E se utilizaram das guerras mundiais para disputar mercado e eliminar meios de produção com o custo de milhões de vidas humanas.

 

10. É neste contexto que se pode entender as derrotas de governos progressistas na América Latina, que atuavam em conciliação de classes e, embora não se tratasse de nenhum governo revolucionário, foram desalojados pelas burguesias com quem estavam aliados.

 

11. Assim, precisamos analisar a ofensiva política, ideológica e agora militar do capital dos Estados Unidos sobre a Venezuela para controlar de forma privada e internacional suas reservas de petróleo. A Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo e as mais próximas do mercado americano. Nenhum outro país ou território do mundo poderia garantir e ampliar o acesso a petróleo para os Estados Unidos.

 

12. Além do quê, todos os analistas preveem, por tudo isso, que os preços do petróleo devem voltar a margens superiores a cem dólares ao barril nos próximos dois anos, chegando já a 70 dólares o barril no final de 2019. Isso permitirá, para quem controlar as reservas, uma fantástica renda petroleira.

 

13. O povo da Venezuela está enfrentando essa guerra há vinte anos e, agora, aproxima-se uma nova etapa, que pode se transformar em um conflito militar.

 

14. Nesses anos desde que Hugo Chávez ganhou as eleições em 1998 e tomou posse em 1999, há um cenário permanente de ataque dos capitalistas venezuelanos e internacionais ao processo de mudança econômica e social na Venezuela. Poderiam até admitir um militar governando a Venezuela, como tantos fizeram na América Latina, porém não admitiram nunca que o petróleo passasse a ser utilizado como um bem fundamental para a reestruturação da economia venezuelana, para financiar a distribuição de renda e a solução dos problemas estruturais da população: moradia, saúde, educação, transporte público e infraestrutura social.

 

15. Nesses anos todos, os capitalistas do norte e o governo estadunidense aplicaram toda sua experiência histórica que haviam utilizado em outros países para tentar derrubar o governo e o processo bolivariano em curso.

 

16. Primeiro, tentaram construir um governo de composição de classe com Chávez, propondo políticas econômicas neoliberais. Indicaram ministros e um presidente do Banco Central. Não funcionou. Chávez respondeu com a convocação de uma Assembleia Constituinte e a redação de uma nova Constituição, que devolveu ao povo, e não aos partidos conservadores, a soberania do poder politico e dos destinos da nação.

 

17. Depois, apelaram para um golpe de Estado clássico, como fizeram em tantos países. Sequestraram o presidente Hugo Chávez do Palácio Miraflores, colocaram em seu lugar um empresário de presidente. Diante desse fato, o povo deu a resposta, cercou o palácio e, em 48 horas, o golpe foi derrotado pelo povo e por um grupo importante de cadetes e novos militares que entraram no serviço militar com uma formação bolivariana. Esse momento é de muita importância, pois marca a união cívico-militar desse novo momento que será fator de grande importância no desenvolvimento da revolução bolivariana, já que parte do alto mando das forcas armadas estava apoiando o golpe, por suas relações históricas com a oligarquia local.

 

18. Os empresários que ainda estavam na empresa petroleira PDVSA comandaram uma greve geral petroleira, paralisando todas as atividades e provocando o caos no país, causando um clima de desestabilidade social. O governo consegue, junto com os trabalhadores, reverter esse processo e promover uma grande renovação na estrutura da empresa, reorganizando o comando entre o governo e os trabalhadores.

 

19. Aplicaram, então, a tática chilena. Especulação com certos produtos para gerar pânico na população, esconder produtos que iam desde farinha até medicamentos ou bens com muito apelo popular, como papel higiênico, açúcar, leite, café e pasta de dente. O governo usou as reservas de petróleo para compras estatais e distribuição desses bens básicos para a população.

 

20. Passaram, então, para a tática ucraniana, do terrorismo público nas ruas com a prática das guarimbas, em que jovens pequeno-burgueses ou lúmpens, pagos em dólar, bloqueavam rodovias, queimavam locais simbólicos, jogavam bombas incendiárias em escolas infantis, hospitais e até bases militares, etc. Mais uma vez, não funcionou, e o povo enfrentou o terrorismo e derrotou as guarimbas.

 

21. Tentaram subverter e ganhar oficiais das forças armadas para seu projeto, compraram alguns, mas não conseguiram o levantamento e a divisão militar. Mesmo porque todos os militares que eles conseguiram comprar estão fora da Venezuela, o que significa dizer sem base de influência concreta.

 

22. Acusaram sistematicamente o governo venezuelano de ser ditador, tanto Chávez quanto agora também Maduro. No entanto, a oposição participou de 25 eleições, em vinte anos elegeram diversos governadores, prefeitos e deputados, fazem comícios em praça pública e controlam a maior parte dos meios de comunicação de massa. Como justificar que se trata de uma ditadura? Em nenhum país ocidental há condições semelhantes. Por outro lado, o processo eleitoral, com urnas eletrônicas e comprovante impresso se transformou no processo mais transparente existente comprovado por diversas fundações dos Estados Unidos que fiscalizaram as últimas eleições.

 

23. Nos últimos meses, intensificaram o bloqueio econômico para evitar que cheguem mercadorias do exterior - sendo uma economia petroleira, a Venezuela ainda é muito dependente de bens produzidos no exterior. E mais do que tudo, operam abertamente com a manipulação do câmbio na cotação do dólar com o bolívar, desde um portal inexplicável instalado em Miami. Sintomaticamente, a burguesia local, toma como referência esse portal, sem nenhuma base econômica real para especular com o dólar, que agora virou mais que uma moeda, virou uma mercadoria. Porém uma mercadoria que é referência para todas as demais.

 

24. Impulsaram uma campanha de estímulo e motivação para que milhares de pessoas saíssem do país com promessas de emprego e futuro risonho. Mais de 30% dos que saíram já retornaram ao país desiludidos, recebendo apoio do governo para retornarem. Ainda que a migração não seja um problema de venezuelanos, já que vivem no país mais de 5 milhões de colombianos, milhares de haitianos e também milhares de europeus que chegaram no boom do petróleo da década de 1970, como espanhóis, italianos, portugueses e também libaneses.

 

25. A tese de exigir novas eleições não tem paralelo na história das democracias burguesas modernas. Só porque a direita perdeu as eleições para Maduro, fiscalizadas por centenas de autoridades de todo mundo, então deve-se convocar novas eleições? Por quê? Não há base legal e moral para destituir um governo legítimo como foi eleito. Ou a mesma tese poderia se aplicar contra Bolsonaro, Macri? E sobre os mesmos deputados da Assembleia Nacional que quer destituir Maduro, foram eleitos pelo mesmo sistema.

 

26. Agora, entramos na etapa derradeira. O governo de Trump, encurtando-se, tem ainda menos de dois anos e deve perder as próximas eleições. O preço do petróleo tende a subir e, com a necessidade ideológica de barrar os governos progressistas e de esquerda, eles precisam derrubar Maduro. Como disse Trump: "primeiro vamos derrubar o governo Maduro, depois virá Cuba, Nicarágua", etc.

 

27. Antes de iniciar a fase de maior ofensiva externa, o governo Trump tentou criar as condições internas de desestabilização econômica e política, nomeando Guaidó, desconhecido das forças políticas do país e, inclusive, não representativo das forças burguesas de oposição, como sendo o novo governo legítimo. Ou seja, trataram de dar um golpe constitucional, porém ilegal. Repetindo a fórmula utilizada contra o presidente [Fernando] Lugo [do Paraguai], contra o presidente [Manuel] Zelaya [de Honduras] e contra a presidenta Dilma [Rousseff].

 

28. E essa nova etapa pode chegar a uma invasão militar. Criaram um governo fantoche, que nem sequer é conhecido no país, totalmente à margem de qualquer eleição ou legalidade. E agora, bastaria aumentar o cerco, a pressão internacional e, quem sabe, uma intervenção cirúrgica.

 

29. Porém essa tática derradeira depende de muitas variáveis. A sociedade americana não aceitaria perder seus soldados numa guerra injustificável, e então teriam que usar forças da OEA [Organização dos Estados Americanos]. Mas, na OEA, fizeram apenas 16 dos 34 votos. E não tiveram maioria nem autorização para uma invasão legalizada pela OEA. Tentaram no Conselho de Segurança da ONU [Organização das Nações Unidas], que também lhes negou direito para invadir a Venezuela, com os bloqueios da Rússia, China e outros países. Sobrariam as forças armadas da Colômbia e do Brasil, e não parece ser fácil sua adesão, com consequências para a política interna e a disposição política das forças armadas destes países.

 

30. A última tática seria, então, uma intervenção militar cirúrgica, por aviação, como fizeram na Iugoslávia, Ucrânia, Líbia e Síria, para quebrar a sustentação econômica do governo e forçar a derrubada. Mas antes de uma intervenção militar, eles precisariam ainda romper com o elo de unidade existente na Venezuela entre as forças armadas bolivarianas e a maioria do povo. Essa unidade derrotará qualquer intervenção militar, causando um alto custo de vidas humanas e também político ao governo Trump.

 

31. Essa aventura militar poderia se transformar num conflito bélico internacional com a provável solidariedade da Rússia, do Irã e da Turquia, transformando a Venezuela numa Síria latino-americana, com desfechos improváveis e altos custos aos norte-americanos, como de fato está acontecendo na Síria.

 

32. Ainda como consequência dessa intervenção militar, uma grave contradição para as forças imperialistas: com uma provável derrota das forças direitistas invasoras, os Estados Unidos teriam então que receber uma nova e grande migração de toda burguesia venezuelana, que, numa derrota militar, não teria mais espaço político e social no país, como aconteceu depois da derrota militar da invasão na Baía dos Porcos, em Cuba.

 

33. As próximas semanas e os próximos meses serão decisivos para o desfecho de qual tática os americanos adotarão. Naquele território, estamos travando a batalha da luta de classes mundial, que poderá demarcar a geopolítica para todo o século 21, assim como foi simbólica a Guerra Civil Espanhola para os desdobramentos numa Segunda Guerra Mundial.

 

34. De parte do governo venezuelano, será necessário, nesta batalha, manter a unidade das forças armadas bolivarianas e manter a maioria do povo chavista mobilizado na defesa da pátria. No curto e médio prazo, desenvolver um novo programa econômico, que logre superar os enormes desafios impostos pelo bloqueio ocidental e pela dependência do petróleo para desenvolver um novo programa de desenvolvimento econômico com igualdade social.

 

35. Hoje, a defesa da soberania na Venezuela significa a defesa da autodeterminação dos povos contra o império. Precisamos estar ativos e bem-informados das movimentações. Os próximos passos serão decisivos, e todas as forças populares e de esquerda, do continente e do mundo devemos manifestarmos claramente em defesa do processo bolivariano - que tem suas contradições e desafios, que são próprios de todo processo de mudanças estruturais numa sociedade.

 

22 de fevereiro de 2019

www.mst.org.br

 

https://www.alainet.org/es/node/198360?language=es
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