O colapso ético
Estamos em face do colapso do sistema partidário, atingido pela inautenticidade, falência representativa e absoluta renúncia a qualquer ordem de opção ideológica ou programática.
- Opinión
Estamos em face do colapso do sistema partidário, atingido pela inautenticidade, falência representativa e absoluta renúncia a qualquer ordem de opção ideológica ou programática.
Nada menos do que 117 deputados federais respondem a inquéritos, alguns de natureza penal, outros por compra de votos, quase todos acusados de corrupção.
Por seu turno, e coroando o escândalo que só não é visto por quem não quer, mais de uma dezena de senadores são alvos de processos de natureza vária, desde delitos eleitorais a crimes comuns.
Um deles, então líder do governo, foi preso em pleno exercício do mandato, o que denota tanto o caráter da composição da câmara alta quanto sua pusilanimidade.
Seu ainda presidente sobrevive toureando os processos que lhe move o Ministério Público, alguns já acatados pelo Supremo Tribunal Federal.
Esse quadro, que sugere um colapso ético, que revela a iminente tragédia política, se reproduz, como fractal, por todo o país, nos parlamentos estaduais e nos municipais, indicando os riscos que ameaçam a mambembe democracia representativa de nossos tristes dias, infectada pelo vírus letal da ilegitimidade, que mais a distancia da soberania popular.
O deputado Eduardo Cunha, afastado do mandato parlamentar por inédita ordem do STF e presentemente aguardando a inevitável cassação de seu mandato (não obstante a solidariedade cúmplice de seus correligionários), é réu em processos da mais vária natureza.
Do inefável ex-presidente da Câmara dos Deputados pode-se dizer que se trata de profissional, com rica folha corrida, figura icônica da nova ordem política brasileira, esta que aos trancos e barrancos nos governa, violando a ordem constitucional e ferindo tudo o que se assemelhe a hora e dignidade.
Dessa ordem política de hoje, mesquinha e pobre, pedestre, aflora o nanismo de personagens da linhagem de Michel Temer, Jair Bolsonaro, Ronaldo Caiado, Eliseu Padilha, Romero Jucá, Geddel Vieira Lima ..., nossos governantes de hoje, e, dentre outros, esse lamentável Waldir Maranhão, ora retornado ao ostracismo, cuja alçada à presidência interina da Câmara dos Deputados por si só é a mais contundente demonstração da falência de um Parlamento que não se dá a respeito.
A sobrevida parlamentar de Cunha, por sinal, deriva diretamente de sua condição como líder do ‘Centrão’, o valhacouto que o elegeu e o sustenta ainda, depois de abrir, por mesquinharia, o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Nesse ‘Centrão’ se reúnem – e dele partem para o assalto à República – o que há de pior do fisiologismo e do assistencialismo, o pior da representação do agronegócio, dos grileiros e dos latifundiários assassinos de índios e quilombolas, o pior do fundamentalismo neopentecostal, o pior das bancadas dos empreiteiros, o pior do lobby dos sonegadores de impostos financiados pelas FIESPs da vida.
O pior do atraso. O ‘Centrão’, recuperado por Temer e hoje majoritário, é certeza de restauração do passado.
A questão grave, crucial, o caruncho que está a construir nossa tragédia institucional, é que somos hoje governados por essa horda dos piores, senhores de baraço e cutelo dos três poderes da República.
Esse condomínio de interesses pérfidos reúne algo mais que a maioria absoluta do Congresso Nacional e, assim, liderado ideologicamente pelo atraso, apoiado pela grande mídia, dispõe das condições objetivas para promover a restauração conservadora, a ressurreição do Brasil arcaico, dependente, oligárquico, reacionário.
Essa coalizão – resultado do encontro do pior da base de Dilma Rousseff com o pior da oposição ao seu governo e ao lulismo – tem no Palácio do Planalto de hoje o comando do processo (e aí atuam de braços dados Legislativo, Executivo e Judiciário) de retomada do atraso que lembra os piores momentos da ditadura militar, com o agravante do entreguismo e do sentimento antinacional, de que não podem ser acusados os militares.
A disfunção institucional, porém, é profunda, é estrutural, e sua gravidade independe das figuras e figurinhas que compõem nosso cenário político.
Estamos em face do colapso do sistema partidário, atingido pela inautenticidade, falência representativa e absoluta renúncia a qualquer ordem de opção ideológica ou programática.
Proliferando graças à irresponsabilidade da dupla STF-TSE, os partidos, na sua maioria – e relembremos sempre as exceções oferecidas pelos partidos de esquerda, em que pese sua crise coletiva – nada mais são hoje que meras siglas, ‘sopas de letrinhas’ sem significado, quase todos transformados em projetos empresariais que se beneficiam do fundo partidário e vendem tempo de televisão no processo eleitoral, além de apoios no Congresso a cada votação do interesse do Governo ou dos lobbies, chantageando a ambos.
Por fora dos partidos formais, corroendo-os, ultrapassando-os, desmoralizando-os, agem os ‘partidos reais’, as bancadas interpartidárias, como as mais notórias, as bancadas do boi, da bola, da bíblia e a dos bancos, a bancada dos donos de emissoras de radio e tevê, e, até, as bancadas sérias, como a da saúde e a dos educadores, dentre outras, mas significando sempre o fracasso organizacional e programático e doutrinário dos partidos.
O chamado ‘presidencialismo de coalizão’ vive seus estertores, após haver levado o governo Dilma à debacle política conhecida.
A necessidade de reforma profunda, estrutural, aquilo que Darcy Ribeiro chamaria ainda hoje de “passar o Brasil a limpo”, é porém, tarefa do Congresso que temos, o grande beneficiário de todas essas mazelas.
O que fazer? Sem respostas objetivas, mas apenas sonhos, resta-nos crer que a exaustão política, aguçando a crise, levará esse Congresso, ou o que se instalar em seu lugar em 2019 (se assim chegarmos até lá), a, pressionado pelo clamor das ruas, finalmente realizar as reformas sem as quais poderá estar escrevendo seu necrológio.
A eleição na Câmara dos Deputados
A disputa pela sucessão de Cunha-Maranhão (retrato de corpo inteiro da degenerescência que invade todo o organismo político brasileiro) travou-se entre um representante do ‘Centrão’ profundo e um líder orgânico da direita, vitorioso.
Em seu discurso, ao assumir a Presidência da Câmara, o representante do DEM, ex-PFL, ex-Arena, um dos líderes do golpismo em curso, agradeceu a todos os que o apoiaram, agradeceu ao interino Temer que por ele tanto batalhou, mas, significativamente, agradeceu também ao PT e ao PCdoB.
Uma vez mais e desta feita mais imperdoavelmente do que nunca, a esquerda parlamentar revelou-se incapaz de interpretar corretamente a realidade e assim, falha em estratégia, terminou por renunciar ao papel de sujeito, imobilizada por uma falsa dúvida hamletiana entre as vias pragmática e programática, sem saber que nenhuma opção é em si boa ou má, pois o que as qualifica são as circunstâncias.
Por fim, e por tudo isso, a esquerda ficou sem papel, nem marcou a posição política necessária nem interferiu no processo eleitoral, e ainda ficou devendo aos seus militantes uma explicação por, já lançada a candidatura de Luiza Erundina, haver ora optado por apoiar o candidato do PMDB, desidratado por seu correligionário Temer, ora por lançar mais uma anticandidatura.
Ao fim e ao cabo, com nossas dúvidas, nossas vacilações, nossos erros de avaliação, nossa ausência de estratégias, nosso apego às táticas como fatos isolados, a eleição do deputado Rodrigo Maia como presidente-tampão representou mais uma vitória da direita brasileira, passo importante na implementação de sua restauração conservadora, ansiada e frustrada ao longo de nada menos que quatro eleições presidenciais!
O próximo pilar político será, tudo o indica, fincado em agosto, quando da decisão sobre o impeachment no Senado Federal.
Fica a velha lição: quem não aprende com a experiência está condenado a repetir seus erros.
Bases dos EUA na Argentina – Luis Tibiletti, ex-Secretário de Segurança da Argentina e Secretário Acadêmico do CEE do Ministério da Defesa do governo Nestor Kischner, escreve-me para informar a inexistência de qualquer acordo visando a cessão de território argentino para instalação de bases militares dos EUA, objeto de comentário meu na última coluna.
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
Leia mais em: www.ramaral.org
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