A reinvenção do golpe

28/03/2016
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A moçada que desfilou em São Paulo na sexta feira 18 foi com as ideias claras   Foto: Nicole Presotto cartel sao paulo
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Ensaia-se um novo, inédito modelo de golpe de Estado e os impávidos inovadores mostram a cara. De Sergio Moro e Gilmar Mendes a José Serra e Fernando Henrique Cardoso. Da Globo, jornalões e revistões a Eduardo Cunha. Da facção peemedebista em busca da rasteira mais eficaz nos aliados a risco ao vice-presidente Michel Temer, que já conta as favas e monta o futuro governo.

 

O golpe de Estado não é incomum na história brasileira. De um golpe nasceu a República. Uns não passaram do ensaio, outros deram certo. Depois do suicídio de Getúlio Vargas, houve duas tentativas fracassadas antes de 1964, e por este pagamos até hoje. A rigor, houve golpe inclusive na posse de José Sarney, o vice que foi para o trono antes que o falecido titular o ocupasse. No caso, pode-se falar em usurpação.

 

A origem é sempre a mesma, a casa-grande ainda de pé, o nosso establishment medieval, exemplar único no mundo contemporâneo que se apresenta como civilizado e democrático. Não cabe rotular os mandantes à luz das ideologias tradicionais, dizê-los de direita, conservadores, reacionários não exprime sua autêntica natureza. Agem como se fossem investidos pelo direito divino, embora se dignem a formular elevadas motivações para justificar sua prepotência, até anteontem amparada na convocação dos militares para executar o serviço sujo. Outrora chamavam os jagunços. O tanque, contudo, é mais moderno e impõe maior respeito.

 

O golpe de 64 foi desfechado para salvar a democracia e resolver a crise econômica. Agora um golpe judicial-policial-midiático sem tanques na rua arvora-se a salvar o País da praga petista e, como então, resolver a crise econômica. Trata-se de eliminar o estorvo eleitoral para atender à pesquisa de opinião que aponta o desfavor popular em relação ao governo, e talvez fosse do interesse do mundo curvar-se diante de mais uma fórmula criada pela genialidade brasileira. Com isso, igual a 64, vai a pique é a democracia. Nas barbas da lei, derruba-se Dilma, prende-se Lula e o PT soçobra natural e automaticamente.

 

Em lugar dos soldados, entram em cena agentes da polícia. Uma Justiça politizada e um Legislativo guiado na sagrada missão do impeachment por um notório corrupto acuam o Executivo ao sabor de uma enxurrada de acusações a serem provadas, veiculadas com o estardalhaço de declarações de guerra pela mídia do pensamento único. Em benefício da trama, de Curitiba um juiz de primeira instância cuida de ameaçar de prisão o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao alegar razões absolutamente inconsistentes.

 

Neste caldo de cultura move-se a urdidura golpista, amparada em pesquisas destinadas a demonstrar a imaturidade de uma classe média (média até hoje não entendo por quê) ignorante, vulgar e arrogante, e de quantos, sonhadores de ascensão social, acreditam em uma encenação midiática nutrida de invencionices e mentiras, empenhada em transformar suposições em verdade factual. Como sempre, a casa-grande aposta na resignação da senzala.

 

As manifestações da sexta 18 a favor do governo e de Lula dizem, porém, da presença de um contingente conspícuo de cidadãos de olhos abertos e fé intacta. O ex-presidente, que compareceu à passeata paulistana, teve bons motivos para se comover “com o carinho do povo”, como ele próprio diz ao acentuar a presença preponderante dos jovens que nele enxergam o líder.

 

Diante da inoperância das instituições e da ausência de Estado de Direito, é especialmente difícil hierarquizar os atentados cometidos impunemente contra a razão e contra a lei. A lista é infinda. Afundo destemidamente a ponta dos dedos neste autêntico mar de lama, a expressão me agrada ao ser empregada ao contrário do que costuma se dar. Pinço com o devido cuidado o ministro Gilmar Mendes, com quem José Serra se reúne na sincera busca de afinidades, permito-me imaginar. É do conhecimento de quem respeita a lei, e até do mundo mineral, que Mendes teria de se declarar impedido para julgar o pedido de habeas corpus de seu grande desafeto Luiz Inácio Lula da Silva (leiam mais adiante a coluna de Wálter Fanganiello Maierovitch).

 

Assim fez o ministro Luiz Edson Fachin, de bom relacionamento com o ex-presidente, ciente do seu papel de magistrado. Sobrou o julgamento para a ministra Rosa Weber, a qual, poderia ter-se declarado impedida por já ter trabalhado com Sergio Moro. Graças a outro ministro a agir corretamente, Teori Zavascki, Moro não está habilitado a realizar seu velho sonho de prender Lula antes da decisão final do colegiado do STF.

 

Do juiz curitibano tudo é possível esperar, e já fez largamente das suas. Não é acaso que Sergio Moro e os promotores Carlos Fernando dos Santos Lima e Deltan Dallagnol, aquele que prega do púlpito da igreja para convocar à luta os paroquianos, ostentem ter-se formado nos Estados Unidos, onde se especializaram em lavagem de dinheiro à sombra do Departamento de Estado, com a possível contribuição da CIA. De raspão: aos EUA, tão presentes por trás do golpe de 64, não deve interessar um governo disposto a fortalecer o grupo dos BRICS. O juiz Moro se diz apolítico, nem por isso deixa de discursar em tertúlias organizadas por João Doria, candidato de Geraldo Alckmin à Prefeitura de São Paulo, e na Fiesp, envolvida declaradamente na operação golpista sob a liderança de Paulo Skaf.

 

Causa espanto, muito mais que surpresa, a esmerada sintonia dos lances da manobra. A afinação impecável ao longo da fase do pré-golpe exigiu algo mais que o automatismo dos sentimentos e dos propósitos comuns, de força inegável, mas insuficiente. Os ensaístas do golpe agora conspiram às claras, ninguém se engane, entretanto, há tempo agem na calada da noite e nas pregas obscuras do dia.

 

Somente agora o ex-ministro da Justiça e atual advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, cai na real para perceber o alcance do complô desencadeado pela Lava Jato, a partir de um escândalo verdadeiro, do qual o envolvimento petista representa apenas o derradeiro capítulo. A corrupção na estatal começa com o presidente nomeado pelo ditador Ernesto Geisel, um certo Shigeaki Ueki, disposto a cobrar pedágio sobre cada barril importado ou produzido, e prossegue implacavelmente desde então. De todo modo, na qualidade de maior bandalheira da história do Brasil, nada supera a privatização das Comunicações, que aliás funcionam mal, como tantas coisas mais nas nossas tristes latitudes.

 

Nesta moldura, figuras como José Serra e Fernando Henrique Cardoso são típicas de uma categoria movida pela ambição desmedida, a justificar desfaçatez e oportunismo. Disseram-se, em algum dia remoto, de esquerda, de fato não acreditam em coisa alguma, a não ser sua vontade de poder. No caso de Serra, o Brasil não o elegeu, foi ele quem elegeu o Brasil, e desta vez vislumbra a si mesmo chamado pelo destino a seguir pelo mesmo caminho percorrido por Fernando Henrique após a queda de Collor.

 

É tradição tucana bandear-se sempre. Não fosse Mário Covas, FHC aceitaria ser chanceler de Collor. Deteve-o o então futuro governador de São Paulo a partir de 1995, ao se declarar pronto a abandonar o PSDB, partido de fancaria desde quando chegou ao poder.

 

Nas campanhas contra o PT, em 2002, 2006, 2010, 2014, o PSDB assumiu em definitivo o papel de partido da direita, e a mais reacionária possível. Gilmar Mendes, com sua imponente presença, vem do tempo tucano, e não me consta que então tivesse a intenção, por mais vaga, de combater a corrupção, tampouco depois, em época petista, a de desenterrar o passado. Nesta ribalta, Serra disputa o ponto melhor iluminado, e tudo fará para alcançá-lo, escravo da sua obsessão.

 

E eis quem aparece de repente ao lado do senador? Arminio Fraga, com sua expressão de inquisidor espanhol. Ele me lembra Luiz Carlos Mendonça de Barros, hoje riquíssimo senhor de exposição opaca, ou André Lara Resende, que leva de avião cavalos de montaria para a sua quinta em Portugal, ou para Londres, onde se recomenda cavalgar no Hyde Park. Cavalheiros deste porte e suas façanhas pregressas porventura incomodam o ministro Gilmar Mendes e o juiz Sergio Moro?

 

Magistrados, policiais, políticos, portam-se como se o novo modelo de golpe estivesse na iminência de atingir o alvo. Quem supõe que seja este o antídoto da crise, engana-se tristemente. Se inédito seria o golpe, inédito seria o dia seguinte. De confusão, de balbúrdia, de caos, com duração por tempo indeterminado. Desejáveis para o cidadão consciente a frustração dos golpistas e o respeito da lei.

 

28/03/2016

http://www.cartacapital.com.br/revista/894/a-reinvencao-do-golpe

 

https://www.alainet.org/es/node/176331?language=es

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